as almas, os pássaros

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domingo, 1 de março de 1987

Escorrem as saudades, como água, pelas pedras. Uma ave a arder contra um rio de pedra [do cais]. Iluminemos todas as manhãs de água. Uma pedra chora no vento e tomba na proa do teu barco, com um ruído surdo, de agonia. Recusemos o medo, de mãos dadas, sobre a pedra mais alta. No cimo da montanha estamos sós, mas respiramos o corpo do mar, solto no vento. Cala-te e deixa-me chover, o rosto contra esta espada. Tenho frio. Mas o amor é azul, como o céu por detrás das nuvens, a paixão dói quando chega ao mar, como um barco, de proa aberta, ferida [vingado que foi, o leito do rio, por cada brisa ou boca que nele tocou, solta, louca, antecipando o vento que nunca foi]. Sobrou apenas um canto, também azul, ou doce, ou amargo, como gritos ou rios de março, pelo chão.
Ficou um homem no cais, as mãos vazias, morre lentamente, os olhos a devorarem o rio. O barco, o barco, será que o barco parte?
Que sonho, o do barco, de querer arrancar o cais de terra e largar com ele! Agora, até as aves soltaram as mãos, como asas, de encontro ao mastro alto. Agora, um novo rumo se inscreveu, na luz matinal do meu corpo, largando amarras, do teu. Porque nem as tuas mãos cresceram nem a minha alma diminuiu. Mas o amor é azul, a paixão escalda, de luz. Azul era o mar na tua mão, em junho. Azuis eram as minhas mãos sobre o teu peito e a tua boca na minha. Azul foi Sesimbra, em março, o meu barco fundeado ao largo, na luz da tarde, transformou o homem em criança no meio dos destroços [da minha vida?]. Não devia ter olhado para trás, riu-se de mim. Ou será antes um pedido de socorro? A criança chora ou ri. O homem sofre. A vida é assim, a espreitar por entre os teus cabelos brancos, a tua pele a arder na minha, os olhos fechados. Já nem choram pedras. Choveram, até arder. As aves também ardem. Ou partem. Não olhes para mim com esses olhos. Porque é que tinhas que ser apenas cais? O cais não pode navegar. E o barco largou, ó esqueci-me das velas no cais! E a maré enche, até quando? Brisa a brisa, beber a pele poro a poro, não queiras agora vencer a corrente dos rios de março, vastos, tumultuosos. Lembras-te de como o amor era para ti um lago sombrio? Para mim era uma cascata. Podia ter sido um outro rio [levar-te comigo]. De qualquer forma, havia uma foz e, para além da foz, o mar. Como querias conquistar-me, preso ao cais? Amar não basta. Cada vez menos, quando os beijos são como mastros sem velas ou velas sem mastros, as palavras, ficaram pousadas do outro lado das mãos. E a maré enche, até quando? Porque olhos nos olhos, nunca! O medo nas tuas mãos macias! O medo no teu corpo a tremer no meu! Porque é que te refugiaste no ventre da terra? O sol nasce todos os dias, agora morreu nos nossos olhos, que nunca se cruzam. E a minha cor é azul, fundamentalmente no vento, quando o azul é branco, de luz. O vento, agora procuras-me no vento, mas fez-se tarde. Ficou a sede no coração das nascentes, entorpecidas, estonteadas [além de ti, é sempre o mesmo mar e eu sou barco]. E toda aquela prata, ali, espalhada no corpo da areia, era novembro. As falésias e a luz na água. E o vento a ensinar-me a amar. Nessa altura, ainda podia olhar para os teus olhos. Fascinavam-me. Nessa altura, os teus olhos eram ainda brilhantes e intensos rios de luz, em abril. A chuva esquecera-se de aparecer e o desejo pode despir-se. Fascinou-me a candura no teu olhar, a agressividade nas palavras, que mordiam o meu ventre. E a vida, a vida assim a espreitar por entre os teus cabelos brancos, o barco sonhou e sangrou. Mesmo assim, apesar das lágrimas e do caos, talvez o cais seja barco e seja ave, como a mulher que o amou, talvez a piedade abra ainda o seu caminho através dos escolhos, segundo Schopenhauer. Não sei. Naquela tarde, o cão da Berlenga, cego, pousou o focinho nos meus joelhos. Mais tarde. Mais tarde, pensei, construirei algo com ele. De forte e sólido. Como esta ilha. Como esta pedra. Como um barco. Naquele dia, de madrugada, choveram-me todos os cantos na boca vazia da tua. Um outro abril, a chuva, afinal, não está esclerosada. Mas sobrou ainda aquele canto azul, ou doce, ou amargo. Da ave ardida contra o rio de pedra. E as tuas mãos, pequenas, mas doces.

Março de 1987
2º Prémio DN Jovem

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