as almas, os pássaros

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domingo, 20 de junho de 2010

Ânfora, vaso, cálice… O que quer que fosse, quebrou-se, em milhares de pequenos pedaços pontiagudos, como ínfimos diamantes distorcidos por forças inconcebíveis, mais o pó entre eles. Olho agora para as mãos vazias, espantada, sem saber como escorregou. Escorregou. Olho-os, como pequenas lágrimas desfeitas, e o pior nem é o pó entre eles, irrecuperável, é a água e a luz que continham. Perdidas. Ajoelho-me no chão e seguro pedaços do delicado invólucro na mão direita, enquanto com o dedo indicador da mão esquerda desenho pequenas serpentes no pó. Uma nuvem brilhante ergue-se do solo e desvanece-se no ar. A perda é tão imensa, tão infinitamente inalcançável pela mente, tão muda, que nada sinto. Ânfora, vaso ou cálice? Até a forma vai desaparecendo na memória e depois os cacos desfazem-se em pó, e mais pó e mais serpentes entre o pó e depois as serpentes tornam-se cada vez mais finas, como fios de seda e desaparecem, pois já nem o pó ali está. Ficam as mãos vazias. Olho-as de novo, tão pequenas, as minhas mãos, os dedos pontiagudos. Tão pequenas. O que posso segurar com elas? Olho em volta. Nada. Ergo-me e olho mais longe. Nada, nada, nada. Não há nada neste mundo que eu possa ou queira segurar. Só esta ideia, que não devia ter deixado cair… o quê?
Olho agora para o mundo inteiro, vejo tudo, o infinitamente grande e o infinitamente pequeno, é enorme o mundo e tudo nele tão grande, para dentro e para fora, sem fim, fractal, fracturado. Não quero nada deste mundo.Só queria o que continha o... cálice? Escorregou. A perda é muda. Regresso então às minhas mãos, com uma agarro a outra e sorrio. Entre elas surge de novo água e luz. Mergulho inteira nas minhas mãos e crio um novo mundo. Fractal, intacto.

 

Os grandes albatrozes, do género Diomedea têm a maior envergadura de asa de qualquer espécie não-extinta. Das 21 espécies de albatroz reconhecidas pela União Internacional para a Conservação da Natureza e dos Recursos Naturais (IUCN), 19 estão ameaçadas de extinção. Estabelecem relações monogâmicas entre macho e fêmea que duram até ao fim da vida.

Fonte: Wikipedia

sexta-feira, 18 de junho de 2010

Não gostava de Saramago, eu. Não por alguma razão em especial, mas por um erro de educação que me ficou. Em minha casa, não se gostava de Saramago. E o pior que dele se dizia era que não sabia escrever. Por isso, nunca me interessei pelo homem, ou pela sua obra. Coisa estranha que, em mim, que sempre fui do contra, não é normal acontecer. Criei contra ele um preconceito inconsciente e retirei-o do meu mundo. Um dia, por causa de um outro alguém que muito admirava o escritor, vi o preconceito. Vi também a minha profunda ignorância do escritor e do homem. E fiquei curiosa. Fui comprar alguns dos seus livros e comecei a ler. Ao contrário de muitos que consideram a sua leitura difícil, achei-a fácil. Para mim, era fácil ler Saramago, porque aquela maneira fluida que ele tinha de escrever, era irmã da minha maneira de pensar e sentir. Senti-me em casa com os seus livros, apreciei a sua ironia, a sua profundidade, a sua liberdade de pensamento. Aborrecida com o meu preconceito, interessei-me também pelo homem, a quem tantos chamavam arrogante e acabei a admirá-lo, a sua liberdade de pensamento, a sua crítica feroz, a sua coragem e, também o seu amor. Aquilo que mais admiro nos outros é a liberdade e o amor. E Saramago, diga-se dele o que se disser, tinha muito de ambos. Saramago podia ter sido um meu amigo. Por isso, desejo-lhe boa viagem, deixando aqui um momento dele.

No dia seguinte ninguém morreu. o facto, por absolutamente contrário às normas da vida, causou nos espíritos uma perturbação enorme, efeito em todos os aspectos justificado, basta que nos lembremos de que não havia notícia nos quarenta volumes da história universal, nem ao menos um caso para amostra, de ter alguma vez ocorrido fenómeno semelhante, passar-se um dia completo, com todas as suas pródigas vinte e quatro horas, contadas entre diurnas e nocturnas, matutinas e vespertinas, sem que tivesse sucedido um falecimento por doença, uma queda mortal, um suicídio levado a bom fim, nada de nada, pela palavra nada.
[...]
No comunicado oficial, finalmente difundido já a noite ia adiantada, o chefe do governo ratificava que não se haviam registado quaisquer defunções em todo o país país teve de viver até hoje, não se trata disso, De que se trata então, eminência, é a todos os respeitos deplorável que, ao redigir a declaração que acabei de escutar, o senhor primeiro-ministro não se tenha lembrado daquilo que constitui o alicerce, a viga mestra, a pedra angular, a chave de abóbada da nossa santa religião, eminência, perdoe-me, temo não compreender aonde quer chegar, Sem morte, ouça-me bem, senhor primeiro-ministro, sem morte não há ressurreição, e sem ressurreição não há igreja, Ó diabo, não percebi o que acaba de dizer, repita, por favor, estava calado, eminência, provavelmente terá sido alguma interferência causada pela electricidade atmosférica, pela estática, ou mesmo um problema de cobertura, o satélite às vezes falha, dizia vossa eminência que, Dizia o que qualquer católico, e o senhor não é uma excepção, tem obrigação de saber, que sem ressurreição não há igreja, além disso, como lhe veio à cabeça que deus poderá querer o seu próprio fim, afirmá-lo é uma ideia absolutamente sacrílega, talvez a pior das blasfémias, eminência, eu não disse que deus queria o seu próprio fim, De facto, por essas exactas palavras, não, mas admitiu a possibilidade de que a imortalidade do corpo resultasse da vontade de deus, não será preciso ser-se doutorado em lógica transcendental para perceber que quem diz uma coisa, diz a outra, eminência, por favor, creia-me, foi uma simples frase de efeito destinada a impressionar, um remate de discurso, nada mais, bem sabe que a política tem destas necessidades, Também a igreja as tem, senhor primeiro-ministro, mas nós ponderamos muito antes de abrir a boca, não falamos por falar, calculamos os efeitos à distância, a nossa especialidade, se quer que lhe dê uma imagem para compreender melhor, é a balística, estou desolado, eminência, no seu lugar também o estaria. Como se estivesse a avaliar o tempo que a granada levaria a cair, o cardeal fez uma pausa, depois, em tom mais suave, mais cordial, continuou, Gostaria de saber se o senhor primeiro-ministro levou a declaração ao conhecimento de sua majestade antes de a ler aos meios de comunicação social, naturalmente, eminência, tratando-se de um assunto de tanto melindre, e que disse o rei, se não é segredo de estado, pareceu-lhe bem, Fez algum comentário ao terminar, estupendo, estupendo, quê, Foi o que sua majestade me disse, estupendo, Quer dizer que também blasfemou [...].

José Saramago, in Intermitências da Morte

quinta-feira, 10 de junho de 2010

Vi um anjo na pedra e lutei com ela até o libertar. 
Michelangelo

I know nothing in the world
that has as much power as a word.
Sometimes I write one, and I
look at it, until it begins to shine.
Emily Dickinson

Estes dois, o poeta da pedra e a poetisa da palavra, conseguem expressar o mais profundo significado que a poesia tem para mim. Imaginemos que as palavras são como pedrinhas. O não-poeta, o que se julga poeta, mas não o é, pega nas pedrinhas e junta-as, chamando a esse conjunto um poema. O poeta não. O poeta respeita as palavras, respeita as pedrinhas, como Michelangelo respeitava as pedras. Cada palavra tem em si um anjo aprisionado. Não basta juntar palavras bonitas e amontoá-las. O poeta sabe o lugar de cada uma em relação a todas as outras. Todas as palavras têm um anjo e são igualmente importantes, mas o anjo só é libertado pela sinergia entre elas, pela colocação de cada uma delas no lugar certo. Então, o poeta, junta as palavras, como pedras e sabe quais as palavras que ligam umas com as outras, quais as que pertencem a outro poema e guarda essas. Depois pega nas que sobraram e coloca-as no lugar certo umas em relação às outras e elas começam a emitir um ligeiro brilho. Mas não é o brilho da poesia. É o brilho do despertar da poesia. Há que guardar mais algumas palavras ou procurar uma que está escondida. E depois ainda há que baralhá-las de novo e respeitar a distância ou o amor entre elas. E polir o espaço entre elas e algumas palavras são como estrelas no céu, mas outras como laços de seda ou veludo da cor da noite, outras ainda como caules ou rios, umas pulsam, outras descansam. E começam a brilhar com a luz da poesia e o poeta apaixona-se por elas e é com esse amor que lhes dá o polimento final que liberta o anjo nelas. E só então temos um poema. E o conhecimento do poeta para fazer isto vem da sabedoria e verdade iniciais. De nenhum outro lugar. E é por esta razão que todo o poema, todo o poema verdadeiro, se inicia com um despertar. Não das palavras, mas do poeta.

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