Nem mesmo com a serpente a beber-me a raíz, maldade pura, nunca bati num cavalo. Visto o xaile negro da fadista, o punhal entre os seios, arrastando a saudade debaixo dos pés descalços, mas não bato nos cavalos. Nem quando eles escouceiam ou me atiram ao chão, mais depressa pego na chibatinha e a ferro no pescoço de outros cavaleiros. Nem com a mão, não bato nos cavalos, mas bato nos cavaleiros, com a chibatinha ou com o punhal enfiado entre os olhos, tanto faz, se é de dia ou de noite, a chibatinha para o dia, o punhal para a noite. Prefiro o punhal, a chibatinha é de uma arrogância.
Cabra é o meu nome do meio, pensei eu hoje quando o homem me disse que os meus cigarros cheiravam bem e o olhei como se fosse lama. Se fosse ontem, ter-lhe-ia oferecido um diabinho preto, mas hoje não, cabra é o meu nome do meio, enquanto ele se enforcava com as cordas de uma guitarra. E agora vens tu, com a família, apareces-me aqui sem avisar e levas com a chibatinha ou com o punhal, talvez te atire uma panela à cabeça, o xaile negro a esvoaçar, sou portuguesa, podes ficar com elas, com a família e com a panela, não me batas à porta agora. Como se eu tivesse portas.
Hoje reparei nas pedras, umas sobre as outras. As pedras são lentas, tão lentas que parecem mortas, mas quando se movem bebem sangue e trilham ossos. Depois surgem aqueles monumentos, naturais ou feitos pelo homem, o sangue seco entre elas, hoje reparei em todas as vidas que as pedras bebem. Também nunca bati nas pedras. As únicas pedras que para mover não matam são as esculpidas. As pedras gostam de ser amadas, mas só o artista vê nelas alguma coisa e elas deixam-se esculpir, passando fome. Não bato nas pedras, nem com punhal, chibatinha, nem mesmo com maço ou cinzel, mais depressa racho a cabeça dos capatazes, que gostam de lhes dar homens a comer ou cavalos ou bois.
Não devias vir agora, estou a mudar de pele, carrego o xaile da saudade espezinhada, o punhal entre os seios, a chibatinha entre as saias, um maço e um cinzel nos bolsos, a serpente bebe-me a raíz como as pedras outrora o sangue dos escravos, tenho este barco dentro de mim, o punhal é para o barco romper amarras.
Fotografia de Johannes Hjorth