antigamente, quando escrevia, deixava entrever minha ternura
mas com muito medo. queria que todos os meus romances
cheirassem a sangue e viessem rotulados com o carimbo de:
machos pra burro. foi preciso que chegasse aos quarenta anos
para perder todo o terror de minha ternura a derramar por minhas
mãos que queimam de carinho (quase sempre sem ter ninguém
para o receber) a simplicidade deste meu livro. leia-o quem quiser.
de uma coisa estou certo: não tenho nada de que me desculpar
perante o público. apresento, pois, rosinha, minha canoa
José Mauro de Vasconcelos, introdução ao livro
Excerto do capítulo terceiro, olhos vegetais
[...]
impressionante o cheiro de terra que comprimia o seu corpo de semente. no começo, quando o vento a lançara sobre o solo, tinha algum movimento, mas depois o mesmo vento, como se cumprisse uma missão, viera rodopiando, até a cobrir de areia. aos poucos foi conseguindo respirar, até se acostumar com aquele aprisionamento. alguma coisa garantia não durar muito... uma angústia enorme invadia toda a insignificância do seu ser, porque a terra, sempre escura, não contava nada do que se passava do lado de fora. verdade era que tinha saudade do sol e dos cantos dos pássaros; entretanto, acalmava-se e tentava compreender que aquele mistério fazia parte necessariamente de sua transformação.
e os dias iam passando, compridos e iguais, aumentando cada vez mais as horas de calor. as vezes, vermes escorregadios tocavam no seu corpo nervoso e isso fazia com que desejasse voltar ao mundo antigo.
não podia falar porque a terra quente, abafando tudo, transformava suas palavras em silêncio. pensou em outras sementes aprisionadas, sofrendo também a mesma angústia da humilde espera.
até que um dia, uma absoluta calma substituiu seus pequenos frêmitos e uma espécie de sono paralisou-a; só foi despertada por um grande ruído. a terra estremecia de medo porque a natureza trovejava. sentiu o baque da chuva sobre o solo e o cheiro gostoso do chão que estava sendo molhado. depois... as gotas de chuva introduzindo-se, infiltrando-se, até ao âmago da terra... vinham cansadas da longa viagem feita do céu através do espaço zangado...
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