Uma muralha púrpura de água prenhe de memórias, sombras negras dos cadeados, das fechaduras, das correntes, riscos lilases luminosos dos segredos arrefecidos, como chamas moribundas, ergue-se a toda a largura da foz, a sua imensidão desequilibra-me, deixa-me tonta, quase embriagada de imaginar atravessá-la, beber dela, afogar-me nela, preferia voar, onde estão as asas? para voar precisas da leveza, ossos ocos e toda uma melodia aérea de corpo - que não tens quando a tristeza do lodo do rio te abraça venenosa a alma, as asas estão presas no leito do rio, descoladas do corpo, adiadas, a vida pesa como chumbo neste rio que devagar vou odiando cada vez mais, fujo para as margens, arquejos saltam-me do peito, fecho a boca, furiosa, corro para a floresta, percorro a correr toda a álea de palmeiras, o vento está quente, o verão prestes a morrer e a matar a esperança, como me irrita essa palavra, esperança, tanto como a palavra espera, corro, por isso é que corro, o vento traz-me o perfume das árvores e das flores, beija-me os pulmões, sento-me nos degraus de pedra do pequeno palácio escondido, em ruínas, estou quase em casa, aqui estou quase em casa, regresso devagar, abraço as árvores, enfrento a muralha na margem do rio.
um dia, com ou sem asas, irei para além de ti, coisa brutal... ou talvez descubra simplesmente que não existes.
Fonte da imagem: kendraseward