as almas, os pássaros

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sexta-feira, 31 de julho de 2009



Uma muralha púrpura de água prenhe de memórias, sombras negras dos cadeados, das fechaduras, das correntes, riscos lilases luminosos dos segredos arrefecidos, como chamas moribundas, ergue-se a toda a largura da foz, a sua imensidão desequilibra-me, deixa-me tonta, quase embriagada de imaginar atravessá-la, beber dela, afogar-me nela, preferia voar, onde estão as asas? para voar precisas da leveza, ossos ocos e toda uma melodia aérea de corpo - que não tens quando a tristeza do lodo do rio te abraça venenosa a alma, as asas estão presas no leito do rio, descoladas do corpo, adiadas, a vida pesa como chumbo neste rio que devagar vou odiando cada vez mais, fujo para as margens, arquejos saltam-me do peito, fecho a boca, furiosa, corro para a floresta, percorro a correr toda a álea de palmeiras, o vento está quente, o verão prestes a morrer e a matar a esperança, como me irrita essa palavra, esperança, tanto como a palavra espera, corro, por isso é que corro, o vento traz-me o perfume das árvores e das flores, beija-me os pulmões, sento-me nos degraus de pedra do pequeno palácio escondido, em ruínas, estou quase em casa, aqui estou quase em casa, regresso devagar, abraço as árvores, enfrento a muralha na margem do rio.
um dia, com ou sem asas, irei para além de ti, coisa brutal... ou talvez descubra simplesmente que não existes.

Fonte da imagem: kendraseward

quinta-feira, 30 de julho de 2009



Por vezes solto-me do mundo, do rio. Paro à beira da estrada e mergulho numa pedra qualquer. Vejo a dor. Sintonizo-me com ela. Pedra cinzenta e negra, de respirar tão lento, que é quase como se pudesse não existir. Mas está ali. Nasceu de um vulcão e é lenta, apenas. Dor, como os outros. Então, o mundo desaparece e surge na pedra, em toda a sua plenitude inútil. Respiro fundo e toco-lhe. Surge este louco sonho de salvar a pedra e salvar o mundo. Interrompo a luz e chove. O frio desce sobre a estrada, a humidade inunda os ossos e congela a seiva. O tempo pára. O mundo à deriva, numa pedra. Vertigem. Tudo numa pedra. Solidão. As eras pesam-me, como mantos de lama. Apaixono-me pela pedra. Está tudo ali: as extinções em massa, as guerras, a fome, a morte. Tudo numa só pedra. Toco-lhe, tão ao de leve, e exorto-a: sê!

Então, subitamente, a pedra acorda. Sente-se o centro do universo e é-o, de facto, por um instante. Olha para mim, a luz eterna, e ri-se. Ri-se de mim, que reparei nela, na sua miséria, no seu negrume vazio que foi algo, talvez, no momento em que o meu olhar nela pousou. Mas o que faz a pedra? Incha. Ao inchar, esmaga-me. Tão forte e tão frágil sou.

É então que surge o abismo. Do inchaço da pedra, da sua vulgaridade, da sua ignorância, da sua fria e estúpida insensibilidade de pedra. Negro, imenso, magnético. A pedra vê-me cair e ri-se, uma última vez. Precipito-me no vazio, em voo picado. A velocidade é tal que as asas se rasgam, bocados esparsos de céu regressam à fonte. A luz da minha respiração destrói a prisão adivinhada. A energia do meu corpo embate, finalmente, contra o fundo, que aguarda, faminto, com mil e um rochedos afiados, como gumes de espadas rombas.

Tudo desaparece. Nasce um novo dia. O verão será curto este ano. Ou talvez nem exista, aqui onde permaneço. Milhões de pequenas partículas regressam ao mundo. Ninguém dá por elas. Minúsculas. Debaixo do meu voo, o abismo cerra-se, as espadas de novo adormecidas.



segunda-feira, 29 de junho de 2009


Por vezes saio do rio, trepo pelas margens da Cidade acima, escorrendo água doce. Ninguém parece surpreendido, talvez porque nas cidades, nestas metrópoles que são como manicómios ou gigantescas masmorras ao ar livre, nada seja estranho demais. Nunca me afasto muito da margem, não posso perder de vista o Mar, a Floresta, desencarno longe deles. Gosto apenas de observar as pessoas, enquanto descanso. O cheiro da maresia chega até mim. A chuva limpa-me, cai no verão, agora, em grandes chapadas de água fresca, nessas alturas não há ninguém na rua, porque é verão, não há guarda-chuvas, refugiam-se nas portas das lojas e dos cafés, nas paragens de autocarro, não houve tempo para se adaptarem. Quando vem o sol, algumas vêem para perto do rio, homens com canas de pesca, pares de jovens namorados, adolescentes de patins, skate ou bicicleta, joggers obcecados com a boa forma física, homens a passearem os cães, as trelas a penderem displicentemente da mão direita, alguns casais idosos, o rio está ali, uma longa serpente prateada ou cor de safira ou uma enorme chapa de oiro rubro ao crepúsculo, cavou aquele enorme, profundíssimo leito ao longo das eras, poucos apreciam a sua força, a sua determinação, a sua paixão, água a perfurar terra, a rebentar com pedra, a galgar colinas, nasceu algures, tão frágil, o rio é assim, se não chegar ao mar morre algures, num pântano como a maior parte das pessoas, não encontram o seu mar, perderam toda a chuva, descruzaram-se de todos os riachos, quebraram com cada obstáculo. O rio devia ensiná-las, como cada gota de chuva é um ensinamento, cada riacho que se cruza connosco nos fortalece, como as pedras e troncos que surgem no percurso nos ajudam a derrubar montanhas, o rio sabe para onde vai. Choro as minhas lágrimas para dentro do rio, ele já não precisa delas, mas é o melhor lugar para as lágrimas, um rio assim. Depois mergulho nele uma vez mais, digo adeus à Cidade, e flutuo de novo, também sei para onde quero ir, mas de nada me vale toda a chuva que me choveu por dentro e por fora, nem todos os outros riachos, nem os pedregulhos e troncos das minhas marés interiores, por vezes, penso, enganei-me no mar, não era este mar, que me foge. Penso, pelo menos tenho o rio.

domingo, 20 de setembro de 1987


Flutuo para trás e para a frente na corrente, como uma folha arrancada da árvore-raíz. A foz e a luz aproximam-se e afastam-se consoante as luas e as marés, suspiro pelo mar limpo, é outono no meio do verão e perdi-me, o mar não chega, não chego ao mar. Recordo-me do espaço e tempo mais dolorosos desta vida que não quis ou será que quis? Dezassete anos. Estava só. Antes, durante e depois da minha morte, estava só. Sei o que senti naquela noite. Foi a noite em que deixei de confiar. Não estava só, simplesmente não estava ninguém ali. O mais estranho para mim agora é que nunca ninguém me fez pergunta alguma. Nunca ninguém perguntou: porque fizeste isso? Foi como se nunca tivesse acontecido. Depois as memórias apagam-se e regressaram as outras, as não-memórias, preencheram o vazio que ficou. Preferia não as ter. No meio do rio, olho para as margens, do lado direito a Cidade, do esquerdo a Floresta. Flutuo com a espada na mão, sempre a espada, aquela com que vim ao mundo, não posso largá-la. Quando descobri que era diferente, era tarde demais para falar no assunto fosse a quem fosse. Quando era muito criança, limitava-me a berrar a plenos pulmões até que certas pessoas saíssem da casa onde cresci. Mais tarde, fugia, fugia para os ramos das árvores, onde ficava escondida até que as pessoas saíssem. Depois aprendi a controlar a... visão. Tornei-me sábia e silenciosa. Passei a invocar nos outros apenas respeito, em alguns inveja, um pouco de medo, talvez. Estava só, nunca esteve ninguém neste sítio onde estou ou em nenhum dos sítios onde estive anteriormente. Como agora, na foz deste rio, estou só. Às vezes é tão grande o peso da espada que sinto que vou afundar-me nas águas turvas. Outras vezes, é a espada que me mantém à superfície. O seu peso varia. Olho para a Cidade, tantas pessoas de um lado para o outro, quase nunca olham para o Rio, pequenas, apressadas, silenciosas, umas alegres, principalmente as mais jovens, crianças, estudantes, outras tristes, algumas tão tristes que dói olhar para elas. Quase que fico feliz por estar aqui e não estar no lugar delas. Evito olhar para a Floresta. A Floresta, vejo-me a subir a margem esquerda do rio e a desistir de sair a foz, a desistir do mar. Não olho para a Floresta, ainda. No entanto, já não acredito, simplesmente já não acredito que algum dia chegue ao mar ou que o mar venha até mim, buscar-me ao rio, onde flutuo para a frente e para trás, eternamente até dizer basta, basta de luas, de marés, de esperas infinitas. O mar não vem. Porque estou aqui?

folhas soltas

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