as almas, os pássaros

as almas, os pássaros

as almas, os pássaros

as almas, os pássaros

terça-feira, 29 de dezembro de 2009



Talvez a melhor resolução que possa tomar agora é viver no agora. Agora é onde estou. Agora é o que sou. Agora. Desejo a todos um bom despertar Agora.

A espiritualidade é um termo específico que na realidade significa lidar com a intuição. Na tradição teísta há uma certa noção de apego a uma palavra. Um certo acto é considerado como não aceitável para um princípio divino. Um certo ato é considerado aceitável para o divino. Na tradição do não-teísmo, no entanto, é bastante directo que as histórias de casos não são particularmente importantes. O que é realmente importante é o aqui e o agora. O agora é definitivamente agora. Nós tentamos experimentar o que está disponível ali, no momento. Não faz sentido pensar que existe um passado que poderíamos ter agora. Isto é agora. Este precioso momento. Nada místico, apenas "agora", muito simples, directo. E desse "agora", contudo, emerge sempre um sentido de inteligência de que estamos constantemente em interacção com a realidade, um por um. Lugar por lugar. Constantemente. Nós, na realidade, experimentamos uma fantástica precisão, sempre. Mas sentimo-nos ameaçados pelo "agora" e saltamos para o passado ou o futuro. Se prestarmos atenção aos bens materiais que existem na nossa vida, esta vida rica que nós levamos, fazemos escolhas em todos os momentos, mas nenhuma delas é considerada boa ou má, per se, porque se todas as coisas que vivemos são experiências incondicionais, elas não vêm com uma etiqueta dizendo "isto é mau" ou "isto é bom". Mas nós vivemo-las mas não lhes prestamos a devida atenção. Não nos damos conta de que caminhamos para algum lado, consideramos isso um incómodo, esperar pela morte. Esse é o problema. Não confiar propriamente no "agora", que aquilo que experimentamos agora possui muitas coisas poderosas. É tão poderoso que somos incapazes de o enfrentar. Consequentemente, temos que pedir emprestado ao passado e convidar o futuro em cada momento. E talvez seja por isso que procuramos a religião. Talvez seja por isso que andamos na rua. Talvez seja por isso que nos queixamos à sociedade. Talvez seja por isso que votamos nos presidentes. É bastante irónico... Na verdade muito engraçado.

Chogyam Trungpa Rinpoche

Imagem retirada daqui.


sexta-feira, 18 de dezembro de 2009



De um amor morto fica
um pesado tempo quotidiano
onde os gestos se esbarram ao longo do ano

De um amor morto não fica
nenhuma memória
o passado se rende
o presente o devora
e os navios do tempo
agudos e lentos
o levam embora

Pois um amor morto não deixa
em nós seu retrato
de infinita demora
é apenas um facto
que a eternidade ignora


Sophia de Mello Breyner Andresen





quinta-feira, 17 de dezembro de 2009



Mas para que serve o pássaro?
Nós o contemplamos inerte.
Nós o tocamos no mágico fulgor das penas.
De que serve o pássaro se
desnaturado o possuímos?
O que era vôo e eis
que é concreção letal e cor
paralisada, íris silente, nítido,
o que era infinito e eis
que é peso e forma, verbo fixado, lúdico
o que era pássaro e é
o objeto: jogo
De uma inocência que
o contempla e revive
- criança que tateia
no pássaro um esquema
de distâncias -
mas para que serve o pássaro?
O pássaro não serve; arrítmicas
brandas asas repousam.

Orides Fontela





Só para ficar registado. Acabou de ocorrer um tremor de terra. Senti-o. O espelho antigo bateu contra a parede. E agora vou dormir.

E aqui fica o registo.


terça-feira, 15 de dezembro de 2009

Deito-me tarde
Espero por uma espécie de silêncio
Que nunca chega cedo
Espero a atenção a concentração da hora tardia
Ardente e nua
É então que os espelhos acendem o seu segundo brilho
É então que se vê o desenho do vazio
É então que se vê subitamente
A nossa própria mão poisada sobre a mesa
É então que se vê passar o silêncio
Navegação antiquíssima e solene

Sophia de Mello Breyner 

 
Vi no silêncio / navegação antiquíssima e solene de Sophia um cisne adormecido embalado nos braços do rio da noite.


É bom quando os cisnes dormem. A minha filha-demónio, que tem de crescer rapidamente, só viu os cisnes adormecidos. Eu já os vi acordados, um branco e um preto, quebram-me o sono com pesadelos, um cisne branco e um cisne preto enrolados como um novelo em fúria a tentarem matar o pato, um pato tão esmagado pelos cisnes que não lhe vejo a cor.
No pesadelo o pato chamou-me, os patos gritam? choram? e fomos as duas de mãos dadas à procura dele no lago, a criança muito pequena, os olhos enormes, um vestido branco de algodão. Olhámos para o lago vazio à tona e foi quando vimos as três aves afundadas, bem no fundo do lago, e a criança-demónio atirou-se à água, tentava salvar as três aves, tentava salvar os cisnes daquele ódio impiedoso pelo pato, tentava salvar o pato dos cisnes e eu agarrei a criança pelos pés, perdeu a consciência assim que o seu pequeno corpo caiu na água, tentava salvar as três aves, duas a morrer de ódio e a outra a morrer do ódio das outras duas, as três aves num abraço violento e mortal, tanta tensão, tanta força nos pescoços dos cisnes, como serpentes em redor do corpo do pato e eu tentava salvar a criança da dor, não lhe largava os pés, precisava segurar-lhe a cabeça, agarrava-lhe os pés, não a queria perto das aves, já estavam mortas, as aves já estavam mortas.
Não devemos tentar salvar os que já estão mortos, segurava a criança-demónio contra o peito e dizia-lhe, não morras a tentar salvar os que já estão mortos.
É bom quando os cisnes dormem, minha filha-demónio. Não os acordes. Cresce, mas não acordes os cisnes adormecidos.


Pintura de Frankie Welk


domingo, 6 de dezembro de 2009



Há uma rotação do teu corpo
ou de uma parte dele que está pelo todo
e fora dos eixos do mundo.
Rodas a partir da cintura, estendes um braço,
há um músculo que se ilumina, uma onda
vertical em que tu própria te subisses;
então uma perna flecte-se, e o outro pé fica em ponta
oblíquo sobre o mundo que nesse instante
se suspende.

Há uma rotação do teu corpo –
Andas pela casa: és um leve rumor sob o silêncio
um rumor que alumia a sombra silenciosa;
na sala, o homem quase surdo quase cego
ouve-te, julga reconhecer-te: vens aí.

Estás aqui. O intervalo de tempo já começou:
há uma rotação no teu corpo
que me exclui do mundo e
entretanto é feita para mim; atinge-me
à velocidade da luz.
E eu o homem quase surdo quase cego
sou tomado pelo vento do fogo que me consome
até ser apenas a última brasa: pequenas ravinas de luz
o incêndio restante sob a exausta crosta da terra

Estavas, estiveste ali.
O tempo recomeça.
Apareces e desapareces.
Como a luz do farol disparando no céu sobre as casas
ou como o anúncio luminoso do prédio em frente
que varre intermitente a obscuridade do quarto no filme.
Quando voltará?

É como se soubesses
que voltará, sim, e que não, não poderá voltar.
Quando, e se voltar, serei eu talvez
quem já lá não está. Quando
é quando?
Quanto tempo ainda poderá o mundo voltar
à possibilidade dessa forma?


Manuel Gusmão (excerto)

quinta-feira, 3 de dezembro de 2009


madalena já não sabia o que fazer a tantos vidros partidos dentro dela, se pudesse, abriria a porta e mudava de casa, mas não podia. havia vidros por todo o lado, algo de realmente grande parecia ter-se estilhaçado dentro, os vidros estavam por todo o lado e eram tão reais que lhe perfuravam o corpo e ela via-os, mas mais ninguém os via. os piores eram os que saíam pela parte de trás do pescoço, mas também espreitavam pelos pulsos, pela nuca, atrás dos joelhos, por entre os dedos dos pés e das mãos, debaixo dos olhos... madalena não compreendia as pessoas, diziam-lhe: estás mais bonita, estás tão bonita. olhava para o espelho e via as pequenas rugas no canto exterior dos olhos a sangrar e aquelas enormes manchas escuras a alastrarem dos olhos para as faces e todos os vidros a romperem-lhe a pele. onde estava a vassoura e a pinça? precisava extirpar os vidros, varrê-los, fazer algo para se ver livre deles, mas era tão imenso o que se tinha estilhaçado, era todo o seu ser interior, tudo o que estava por dentro estava partido, só agora descobrira que o seu interior era todo feito de vidro, frágil, frágil, frágil, como era possível que os outros não vissem? estás tão bonita, insistiam eles, tens uns olhos tão brilhantes. não conseguia olhar para o espelho, ficava horrorizada, mas o pior eram as dores. as dores eram terríveis. respirar tornara-se uma agonia, pois sentia os vidros também nos pulmões, os movimentos, quaisquer que fossem, rasgavam-na um pouco mais, cada um, um pouco mais, era mais um vidro que se espetava nela, abrir a porta e sair, quero sair, mas não havia porta, apenas milhares de rasgões e tudo partido, e todas aquelas coisas a morrerem dentro dela, os órgãos, talvez, sentia as coisas a morrerem, como se dentro dela morresse uma árvore ou um pássaro, algo outrora vivo e grandioso, agora a apodrecer e todos tão cegos, cegos, talvez os estilhaços mais pequenos tivessem saltado para os olhos dos outros, de todos os outros, pelo menos não precisava esconder, mas aquelas coisas a morrerem todas dentro dela e os vidros espetados, finalmente descobriu a porta, arrancou com toda a força o bocado maior de vidro, o que saía do pescoço e espetou-o do lado esquerdo do peito. seguiu-se uma explosão de pó de vidro e acabou tudo.




segunda-feira, 30 de novembro de 2009



O limiar do meu ser,
O limiar onde hesitam
Grandes pássaros que fitam
Meu transpor tardo de os ver.
São aves cheias de abismo,
Como nos sonhos as há.
Hesito se sondo e cismo,
E à minha alma é cataclismo
O limiar onde está.

Então desperto do sonho
E sou alegre da luz,
Inda que em dia tristonho;
Porque o limiar é medonho
E todo passo é uma cruz.

Fernando Pessoa, in Cancioneiro



Escultura Fugit Amor, de Auguste Rodin, 1884




domingo, 29 de novembro de 2009



Nunca fui tão feliz como durante essas noites. Fechava os olhos e via-a dentro de mim. A mulher mais bonita do mundo. E ia conhecendo mais do seu rosto, ia conhecendo mais do seu olhar que me via e que brilhava. Ficávamos durante horas só a olharmos um para o outro. Às vezes, fechava os olhos para a ver quando era de noite. Depois, havia uma luz que começava lentamente a atravessar-me as pálpebras. Abria os olhos, e era já de dia. Naquelas horas, conhecemo-nos. Eu via uma mulher que me olhava: os seus olhos atentos a cada brilho com que os meus olhos interiores lhe diziam que qualquer coisa na beleza ou no mundo me conduzia para ela. Naquelas horas, sem falarmos, construíram-se certezas dentro de nós. Ainda hoje o não sei explicar. A beleza, como o amor, são mistérios proibidos. Naquelas horas, a beleza e o amor eram simples. Nos nossos olhares, abriam-se caminhos para a beleza e para o amor. Eu olhava para ela no mesmo momento em que ela olhava para mim. Esse era o mistério, o milagre, o labirinto simples que usámos para nos conhecermos e para dizermos palavras de silêncio: palavras maiores, profundas, abismos, palavras que eram de sangue e que ali, eu um rapaz, ela uma rapariga, pareciam palavras de sol terno, e de sol suave, e de sol brando. Sei hoje que, durante aquele tempo, amava e era amado. Durante aquele tempo, a beleza da mulher de luz que estava dentro de mim, tinha-se misturado com esse sentimento. Esse sentimento. Esse sentimento que era um entusiasmo a mandar em todos os meus instantes, uma febre de onde não conseguia sair mesmo que quisesse, esse sentimento que era uma palavra: amor: uma palavra estranha porque era importante, eu achava que era uma palavra importante, mas sabia que era uma palavra que eu, desde os meus dezasseis anos, tinha tornado vulgar. Esse sentimento que era uma palavra, e eu perguntava-me a mim próprio sobre quantas pessoas a teriam tornado vulgar. Eu sentia que sentia totalmente esse sentimento. Amava e era amado.

[...]

A nossa casa estava toda envolvida em hera. Vista da montanha, a nossa casa era um pequeno monte de verde com janelas, com uma varanda e com um brasão de pedra. Estivera a escrever toda a noite e, no banco ao meu lado, tinha já trinta páginas escritas. Ao escrevê-las, sentira palavra a palavra, quase letra a letra. Eram as trinta páginas mais importantes da minha vida. Ao escrever, tinha vivido. Eram trinta páginas que eram o meu amor todo e a minha esperança. Sentado à escrivaninha onde os anos passavam, olhávamo-nos muito: ela dentro de mim e o meu olhar dentro de mim, junto dela. O meu braço tremia e, com a esferográfica, escrevia em folhas brancas cada uma das palavras que a diziam. Ela sentia as palavras a tocarem-na. Ela fechava lentamente os olhos. E o tempo em que mantinha as pálpebras fechadas era tocar-me, era tocar o sol, e, na pele, absorver toda a sua luz. Eu, que não podia ter nos braços aquela vida interior que era a minha vida toda, que não podia dar-lhe a mão, que não podia sequer passar-lhe os dedos devagar pelo rosto, fazia tudo isso escrevendo.


José Luís Peixoto in Uma Casa na Escuridão


sábado, 28 de novembro de 2009



Será que podemos reinventar-nos? Perguntou hoje alguém.
Na realidade, a maior parte de todos as coisas vivas no universo reinventa-se diariamente só por uma mera questão de sobrevivência. Adaptarmo-nos é, de certa forma, reinventarmo-nos. Ou nos reinventamos ou extinguimo-nos. Mas esta é uma forma relativamente passiva de nos reinventarmos.
Muitos cientistas e biólogos procuraram no cérebro humano características que realmente nos diferenciassem dos outros animais, essencialmente primatas, e não conseguiram encontrá-las ou defini-las. Tudo o que parecia distinguir-nos dos outros primatas, afinal, é comum a ambas as espécies. Nós processamos em maior quantidade a informação, mas não em qualidade. Os chimpanzés e os gorilas, tal como nós, desenvolvem estratégias, constroem ferramentas e abrigos, sonham, riem e choram, amam, sentem ciúme, inveja, irritação.
Talvez o ser humano, no entanto, seja a único ser da Terra capaz de reinventar-se de uma forma diferente, não apenas para se adaptar, não apenas para sobreviver, mas para, ao reinventar-se, recriar um mundo diferente à sua volta. E essa é uma característica única daquilo a que os filósofos e sábios sempre chamaram Mente.
E mesmo assim, talvez não... Talvez um dia descubramos que há outras criaturas na Terra capazes de o fazer, que também possuem uma Mente, como nós.


Fotografia de Matthias Clamer


quinta-feira, 26 de novembro de 2009







Por vezes a vida é tão insuportável para alguns que só lhes resta encená-la. Criam cenários e actores, enredos e diálogos, sendo sempre eles os actores principais, os únicos de carne e osso; os restantes, fantoches, sombras, sem pincelada de realidade, nem um sorriso verdadeiro, nem uma lágrima que molhe, nem um toque em que se sinta o osso ou a veia a pulsar, não, tudo imaginado, imaginário: imagens idealizadas.
E eu sento-me no balcão, silenciosa, e a única coisa que posso fazer é aplaudir.
Mas não me convidem para o palco. Posso até assistir à peça até ao fim. Depois parto sem me despedir.





Fotografia: Marco Di Fabio


terça-feira, 24 de novembro de 2009

Patience, patience
Patience dans l'azur
Chaque atome de silence
Est le coeur d'un fruit mûr


 

Não há um último pensamento em si e por si.
Em alguns insectos machos, há um último acto, que é de amor, após o qual morrem. Mas não há pensamento que esgote as virtualidades do espírito.
Há porém uma estranha tendência (em todos os espíritos de certa ordem) que é a de avançarem sempre rumo a não sei que ponto de não sei que céu.

Paul Valéry

via Trama, Introdução ao Método de Leonardo da Vinci

 

Um filme de Giuseppe Tornatore. Um filme sobre a vida, sobre a infância, a adolescência, a maturidade e o envelhecimento, o cair das folhas dos sonhos ao longo do caminho e uma amizade que sobrevive a tudo, entre um velho e um rapaz. 


segunda-feira, 23 de novembro de 2009



Às vezes apetece-me dizer a um amigo: big, big mistake! No entanto, nunca o fiz. Acredito que cada um de nós tem a sua aprendizagem e esta só se concretiza pelos erros que cometemos na vida. Dói-me vê-los cair, dói-me vê-los enterrarem-se, dói-me vê-los emparedarem-se vivos, por vezes, e, no entanto, nada digo. Limito-me a ficar ao lado deles; se um deles me estender a mão, eu agarro. Mas só se me estenderem a mão. Se o não fizerem, fico ali, limito-me a amá-los. Há quem não compreenda. Mas há que respeitar a liberdade com que nascemos. Sem dúvida que todos nascemos livres e haveremos de morrer ainda mais livres, a menos que alguém, bem-intencionado, mas que não saiba amar, resolva viver as nossas dores por nós. E eu? Porque é que quase não cometo erros? Porque vejo para a frente e para trás, infinitamente e, por vezes, interrogo-me: porque é que ainda cá estou?

Talvez porque só veja dentro do círculo.


Fotografia: Cheyenne Glasgow


sexta-feira, 20 de novembro de 2009



A Europa jaz, posta nos cotovelos:
De Oriente a Ocidente jaz, fitando,
E toldam-lhe românticos cabelos
Olhos gregos, lembrando.

O cotovelo esquerdo é recuado;
O direito é em ângulo disposto.
Aquele diz Itália onde é pousado;
Este diz Inglaterra onde, afastado,
A mão sustenta, em que se apoia o rosto.

Fita, com olhar esfíngico e fatal,
O Ocidente, futuro do passado.
O rosto com que fita é Portugal.

Fernando Pessoa, O dos Castelos, in A Mensagem






Quem fala de Amor não ama verdadeiramente: talvez deseje, talvez possua, talvez esteja realizando uma óptima obra literária, mas realmente não ama; só a conquista do vulgar é pelo vulgar apregoado aos quatro ventos; quando se ama, em silêncio se ama: às vezes o sabe a mulher amada, mas creio até que num amor que fosse pleno, em que nada entrasse das preocupações da terra, nem ela o saberia.
[...]
Admirar a Natureza e não admirar a mulher que é a sua obra mais bela e não a admirar, querendo-a, em tudo o que ela é, espírito e corpo, é ser um poeta que faltou, na sua alma, à amplitude do mundo. O primeiro dever diante de uma mulher é ser um fogo que arde e um coração que se vigia.
[...]
Apesar de todas as amizades, sempre na vida estamos sozinhos; o que é mais grave, mais doloroso, exactamente como o que é mais belo, passa-se apenas connosco. Entre um homem e outro homem há barreiras que nunca se transpõem. Só sabemos, seguramente, de uma amizade ou de um amor: o que temos pelos outros. De que os outros nos amem nunca poderemos estar certos.
[...]
Aqui tem você um conselho que lhe poderá servir para a sua filosofia: não force nunca; seja paciente pescador neste rio do existir. Não force a arte, não force a vida, nem o amor, nem a morte. Deixe que tudo suceda como um fruto maduro que se abre e lança no solo as sementes fecundas. Que não haja em si, no anseio de viver, nenhum gesto que lhe perturbe a vida.


Agostinho da Silva, in Sete Cartas a um Jovem Filósofo – Seguidas de Outros Documentos para o Estudo de José Kertchy Navarro”, I, II, edição da Ulmeiro, 1990

Pintura de Odilon Redon, Sombra e Luz, 1900


segunda-feira, 16 de novembro de 2009



Chove. Muito. Mangueiras e mangueiras de água doce e limpa. A terra está um lamaçal e os citrinos e as romãs caem das árvores já podres, com o vento a chicotear tudo. As rosas plantadas pelo meu avô para a minha avó sobreviveram miraculosamente. As outras morreram. Dançar, só flutuando. E leve. Caso contrário, afogamo-nos.







Tive amigos que morriam, amigos que partiam
Outros quebravam o seu rosto contra o tempo.
Odiei o que era fácil
Procurei-te na luz, no mar e no vento.

Sophia de Mello Breyner, in No Tempo Dividido e Mar Novo



Quando fazemos tudo para que nos amem e não conseguimos, resta-nos um último recurso: não fazer mais nada. Por isso, digo, quando não obtivermos o amor, o afeto ou a ternura que havíamos solicitado, melhor será desistirmos e procurar mais adiante os sentimentos que nos negaram. Não fazer esforços inúteis, pois o amor nasce, ou não, espontaneamente, mas nunca por força de imposição. Às vezes, é inútil esforçar-se demais, nada se consegue;outras vezes, nada damos e o amor se rende aos nossos pés. Os sentimentos são sempre uma surpresa. Nunca foram uma caridade mendigada, uma compaixão ou um favor concedido. Quase sempre amamos a quem nos ama mal, e desprezamos quem melhor nos quer. Assim, repito, quando tivermos feito tudo para conseguir um amor, e falhado, resta-nos um só caminho... o de mais nada fazer.

Clarice Lispector



Pormenor da imagem in the night sky by =inPrint on deviantART


domingo, 15 de novembro de 2009









A amizade é uma predisposição recíproca que torna dois seres igualmente ciosos da felicidade um do outro.

Platão












Fonte da fotografia: Gettyimages


sábado, 14 de novembro de 2009






Estou deitado no sonho não
perturbes o caos que me constrói
Afasta a tua mão

das pálpebras molhadas
Debaixo delas passa
a água das imagens

Gastão Cruz, in Órgão de Luzes


Pintura em acrílico de Agnieszka Kurowska



Vêm de dentro repelidos
Conforme o seu destino a sua cor varia
pois escolhem a base de acordo com
a luz que o rosto cria

A frente da cortina enfrentam
o vazio
que lhes dava guarida Em sepulcros
abrigam as faces atingidas

No palco deambulam como num
tempo estreito entre duas crateras
a que na sua frente lhes recolhe os soluços
e o nada donde vieram

Gastão Cruz, in As Leis do Caos




Pintura: Retrato de Heath Ledger, pintado por Vincent Fantauzzo


sexta-feira, 6 de novembro de 2009

quinta-feira, 5 de novembro de 2009



Esse negro corcel, cujas passadas
Escuto em sonhos, quando a sombra desce,
E, passando a galope, me aparece
Da noite nas fantásticas estradas,

Donde vem ele? Que regiões sagradas
E terríveis cruzou, que assim parece
Tenebroso e sublime, e lhe estremece
Não sei que horror nas crinas agitadas?

Um cavaleiro de expressão potente,
Formidável, mas plácido, no porte,
Vestido de armadura reluzente,

Cavalga a fera estranha sem temor:
E o corcel negro diz: "Eu sou a Morte!"
Responde o cavaleiro: "Eu sou o Amor!"


Antero de Quental


quarta-feira, 4 de novembro de 2009



Quando nos rimos, algo dentro de nós muda. E quando nós mudamos, o mundo muda.

Madan Kataria


Fonte das imagens: Gettyimages


domingo, 25 de outubro de 2009



Não se pode falar do deserto como de uma paisagem, pois ele é, apesar da sua variedade, ausência de paisagem.
Essa ausência concede-lhe a sua realidade.
Não se pode falar do deserto como de um lugar; pois ele é, também, um não lugar; o não-lugar de um lugar ou o lugar de um não-lugar.
Não se pode pretender que o deserto seja uma distância, porque ele é, ao mesmo tempo, real distância e não-distância absoluta por causa da sua ausência de marcas. Ele tem, como limites, os quatro horizontes, sendo o que os liga e os separa. Ele é a sua própria separação onde se torna lugar aberto; abertura do lugar.
Não se pode pretender que o deserto seja o vazio, o nada. Não se pode, tampouco, pretender que ele seja o fim, uma vez que ele é, igualmente, o começo.

Edmond Jabès in Un étranger, avec, sous le bras, un livre de petit format, Paris, Editions Gallimard, 1989, p. 107-8


Fotografia National Geographic: padrões de erosão no deserto entre o Nilo e o Mar Vermelho.


domingo, 18 de outubro de 2009



«By this art you may contemplate
the variation of the 23 letters...»
The Anatomy of Melancholy, part 2, sect. II, mem. IV

O universo (a que outros chamam a Biblioteca) compõe-se de um número indefinido, e talvez infinito, de galerias hexagonais, com vastos poços de ventilação no meio, cercados por parapeitos baixíssimos. De qualquer hexágono vêem-se os pisos inferiores e superiores: interminavelmente. A distribuição das galerias é invariável. Vinte estantes, a cinco longas estantes por lado, cobrem todos os lados menos dois; a sua altura, que é a dos pisos, mal excede a de um bibliotecário normal. Uma das faces livres dá para um estreito saguão, que vai desembocar noutra galeria, idêntica à primeira e a todas. À esquerda e à direita do saguão há dois gabinetes minúsculos. Um permite dormir de pé; o outro, satisfazer as necessidades fecais. Por aí passa a escada em espiral, que se afunda e eleva a perder de vista. No saguão há um espelho, que fielmente duplica as aparências. Os homens costumam inferir desse espelho que a Biblioteca não é infinita (se o fosse realmente, para que serviria esta duplicação ilusória?); eu prefiro sonhar que as superfícies polidas representam e prometem o infinito... A luz provém de umas frutas esféricas que têm o nome de lâmpadas. Há duas em cada hexágono: transversais. A luz que emitem é insuficiente, incessante.
Tal como todos os homens da Biblioteca, viajei na minha juventude; peregrinei em busca de um livro, se calhar do catálogo dos catálogos; agora que os meus olhos quase não conseguem decifrar o que escrevo, preparo-me para morrer a poucas léguas do hexágono em que nasci. Morto, não faltarão mãos piedosas que me atirem pela balaustrada; a minha sepultura será o ar insondável; o meu corpo precipitar-se-á longamente até se corromper e dissolver no vento gerado pela queda, que é infinita. Eu afirmo que a Biblioteca é interminável. Os idealistas argumentam que as salas hexagonais são uma forma necessária do espaço absoluto, ou pelo menos da nossa intuição do espaço. Consideram que é inconcebível uma sala triangular ou pentagonal. (Os místicos pretendem que o êxtase lhes revela uma câmara circular com um grande livro circular de lombada contínua, que dá toda a volta das paredes; mas o seu testemunho é suspeito; as suas palavras, obscuras. Esse livro cíclico é Deus.) Basta-me por agora repetir a clássica sentença: «A Biblioteca é uma esfera cujo centro cabal é qualquer hexágono, e cuja circunferência é inacessível.»
A cada uma das paredes de cada hexágono correspondem cinco prateleiras; cada prateleira contém trinta e dois livros de formato uniforme; cada livro é de quatrocentas e dez páginas; cada página, de quarenta linhas; cada linha, de umas oitenta letras de cor negra. Também há letras na lombada de cada livro; estas letras não indicam nem representam o que dirão as páginas. Sei que esta incongruência já chegou a parecer misteriosa. Antes de resumir a solução (cuja descoberta, apesar das suas trágicas projecções, é talvez o facto capital da história) vou rememorar alguns axiomas.
O primeiro: A Biblioteca existe ab aeterno. Desta verdade cujo corolário imediato é a eternidade futura do mundo, nenhuma mente razoável pode duvidar. O homem, o imperfeito bibliotecário, pode ser obra do acaso ou dos demiurgos malévolos; o universo, com a sua elegante dotação de estantes, de tomos enigmáticos, de infatigáveis escadas para o viajante e de latrinas para o bibliotecário sentado, só pode ser obra de um deus. Para perceber a distância que existe entre o divino e o humano, basta comparar estes rudes símbolos trémulos que a minha falível mão garatuja na capa de um livro, com as letras orgânicas do interior: pontuais, delicadas, negríssimas, inimitavelmente simétricas.
O segundo: «O número de símbolos ortográficos é vinte e cinco». Foi esta observação que permitiu, há trezentos anos, formular uma teoria geral da Biblioteca e resolver satisfatoriamente o problema que nenhuma conjectura tinha ainda decifrado: a natureza informe e caótica de quase todos os livros. Um, que o meu pai viu num hexágono do circuito quinze noventa e quatro, constava apenas das letras M C V perversamente repetidas da primeira linha até à última. Outro (muito consultado nesta zona) é um simples labirinto de letras, mas a penúltima página diz «Oh tempo as tuas pirâmides.» Já se sabe: por uma linha razoável ou uma notícia correcta há léguas de insensatas cacofonias, de embrulhadas verbais e de incoerências. (Sei de uma bárbara região cujos bibliotecários repudiam o vão e supersticioso costume de procurar sentido nos livros e o equiparam ao de procurá-lo nos sonhos ou nas linhas caóticas da mão... Admitem que os inventores da escrita imitaram os vinte e cinco símbolos naturais, mas afirmam que essa aplicação é casual e que os livros em si nada significam. Esta opinião, como veremos, não é totalmente falaciosa.)
Durante muito tempo julgou-se que esses livros impenetráveis correspondiam a línguas pretéritas ou remotas. É verdade que os homens mais antigos, os primeiros bibliotecários, usavam uma linguagem bastante diferente da que falamos agora; é verdade que poucas milhas à direita a língua é dialectal e que noventa pisos mais acima é incompreensível. Tudo isto, repito, é verdade, mas quatrocentas e dez páginas de inalteráveis M C V não podem corresponder a nenhum idioma, por mais dialectal ou rudimentar que seja. Houve quem insinuasse que cada letra podia ter influência sobre a seguinte e que o valor de M C V na terceira linha da página 71 não era o que pode ter a mesma série noutra posição de outra página, mas esta vaga tese não prosperou. Outros pensaram em criptografias; universalmente, aceitou-se esta conjectura, embora não no sentido em que a formularam os seus inventores.
Há quinhentos anos, o chefe de um hexágono superior[1] deu com um livro tão confuso como os outros, mas que tinha quase duas folhas de linhas homogéneas. Mostrou o seu achado a um decifrador ambulante, que lhe disse que estavam redigidas em português; outros disseram-lhe que era iídiche. Em menos de um século conseguiu-se estabelecer o idioma: um dialecto samoiedo-lituano do guarani, com inflexões de árabe clássico. Também se decifrou o conteúdo: noções de análise combinatória, ilustradas por exemplos de variações com repetição ilimitada. Estes exemplos permitiram que um bibliotecário de génio descobrisse a lei fundamental da Biblioteca. Este pensador observou que todos os livros, por muito diferentes que sejam, constam de elementos iguais: o espaço, o ponto, a vírgula, as vinte e duas letras do alfabeto. Também acrescentou um facto que todos os viajantes têm confirmado: «Não há, na vasta Biblioteca, dois livros idênticos.» Destas premissas incontroversas deduziu que a Biblioteca é total e que as suas estantes registam todas as possíveis combinações dos vinte e tal símbolos ortográficos (número, embora vastíssimo, não infinito) ou seja, tudo o que nos é dado exprimir: em todos os idiomas. Tudo: a história minuciosa do futuro, as autobiografias dos arcanjos, o catálogo fiel da Biblioteca, milhares e milhares de catálogos falsos, a demonstração da falácia desses catálogos, a demonstração da falácia do catálogo verdadeiro, o evangelho gnóstico de Basilides, o comentário desse evangelho, o comentário do comentário desse evangelho, o relato verídico da tua morte, a versão de cada livro em todas as lín­guas, as interpolações de cada livro em todos os livros, o tratado que Beda pode ter escrito (e não escreveu) sobre a mitologia dos Saxões, os livros perdidos de Tácito.
Quando se proclamou que a Biblioteca abrangia todos os livros, a primeira impressão foi de extravagante felicidade. Todos os homens se sentiram senhores de um tesouro intacto e secreto. Não havia problema pessoal ou mundial cuja eloquente solução não existisse: nalgum hexágono. O universo estava justificado, o universo bruscamente usurpou as dimensões ilimitadas da esperança. Naquele tempo falou-se muito das Reabilitações: livros de apologia e de profecia, que para sempre reabilitavam os actos de todos os homens do universo e guardavam arcanos prodigiosos para o seu porvir. Milhares de cobiçosos abandonaram o doce hexágono natal e lançaram-se pelas escadas acima, impelidos pelo vão propósito de encontrar a sua Reabilitação. Estes peregrinos brigavam nos corredores estreitos, proferiam obscuras maldições, estrangulavam-se nas escadas divinas, atiravam os livros enganadores para o fundo dos túneis, morriam defenestrados pelos homens de regiões remotas. Outros enlouqueceram... As Reabilitações existem (eu vi duas que se referem a pessoas do futuro, a pessoas porventura não imaginárias), mas os pesquisadores não se lembravam que a possibilidade de um homem achar a sua, ou alguma pérfida variação da sua, se pode computar à volta do zero.
Também se esperou então o esclarecimento dos mistérios básicos da humanidade: a origem da Biblioteca e do tempo. É verosímil que estes graves mistérios possam explicar-se por palavras: se não bastar a linguagem dos filósofos, a multiforme Biblioteca deve ter produzido o idioma inaudito que se requer, bem como os vocabulários e gramáticas desse idioma. Há já quatro séculos que os homens não dão descanso aos hexágonos... Há pesquisadores oficiais, inquiridores. Vi-os no desempenho da sua função: chegam sempre esgotados; falam de um escadote sem degraus que quase os matou; falam de galerias e de escadas com o bibliotecário; algumas vezes, pegam no livro mais próximo e folheiam-no, em busca de palavras infames. Visivelmente, ninguém espera descobrir nada.
À desaforada esperança, como é natural, sucedeu-se uma depressão excessiva. A certeza de que alguma prateleira nalgum hexágono continha livros preciosos e de que esses livros preciosos eram inacessíveis, pareceu quase intolerável. Uma seita blasfema sugeriu que cessassem as buscas e que todos os homens misturassem letras e símbolos, até construírem, por meio de um improvável dom do acaso, esses livros canónicos. As autoridades viram-se obrigadas a promulgar ordens severas. A seita desapareceu, mas na minha infância vi homens velhos que longamente se ocultavam nas latrinas, com uns discos de metal num covilhete proibido, e fracamente imitavam a divina desordem.
Outros, pelo contrário, acreditaram que a prioridade era eliminar as obras inúteis. Invadiam os hexágonos, exibiam credenciais nem sempre falsas, folheavam com tédio um volume e condenavam estantes inteiras: ao seu furor higiénico e ascético deve-se a insensata perda de milhões de livros. O seu nome é execrado, mas quem deplora os «tesouros» que o seu frenesim destruiu descura dois factos notórios. Um: a Biblioteca é de tal forma enorme que toda a redução de origem humana se torna infinitésima. Outro: cada exemplar é único, insubstituível, mas (como a Biblioteca é total) há sempre várias centenas de milhares de fac-símiles imperfeitos: de obras que só diferem por uma letra ou por uma vírgula. Contra a opinião geral, atrevo-me a supor que as consequências das depredações cometidas pelos Purificadores foram exageradas pelo terror que esses fanáticos provocaram. Impelia-os o delírio de conquistar os livros do Hexágono Carmesim: livros de formato menor que os naturais; omnipotentes, ilustrados e mágicos.
Também sabemos doutra superstição daquele tempo: a do Homem do Livro. Nalguma estante de algum hexágono (pensaram os homens) deve existir um livro que seja a chave e o resumo perfeito de todos os outros: deve haver algum bibliotecário que o tenha estudado e seja análogo a um deus. Na linguagem desta zona hão-de persistir ainda vestígios do culto desse funcionário remoto. Fizeram-se muitas peregrinações à procura d'Ele. Durante um século percorreram em vão os mais diversos rumos. Como localizar o venerado hexágono secreto que o alojava? Alguém propôs um método regressivo: Para localizar o livro A, consultar previamente um livro B que indique o sítio de A; para localizar o livro B, consultar previamente um livro C, e assim por diante até ao infinito... Foi em aventuras destas que desperdicei e consumi os meus anos de vida. Não acho inverosímil que nalguma estante do universo haja um livro total[2]; rogo aos deuses ignorados que um homem — um só que seja, há milhares de anos! — o tenha examinado e lido. Se não forem para mim a honra e a sabedoria e a felicidade, que sejam para outros. Que o céu exista, mesmo que o meu lugar seja o inferno. Que eu seja ultrajado e aniquilado, mas que num instante, num ser, a Tua enorme Biblioteca se justifique.
Afirmam os ímpios que o disparate é normal na Biblioteca e que o razoável (e até a humilde e pura coerência) é uma quase milagrosa excepção. Falam (eu sei-o) da «Biblioteca febril, cujos fortuitos volumes correm o incessante risco de se transformarem noutros e que tudo afirmam, negam e confundem como uma divindade que delira». Estas palavras que não só denunciam a desordem, mas também a exemplificam, provam de maneira notória o seu péssimo gosto e a sua desesperada ignorância. Com efeito, a Biblioteca inclui todas as estruturas verbais, todas as variações que permitem os vinte e cinco sinais ortográficos, mas não um único disparate absoluto. Não vale a pena observar que o melhor volume dos muitos hexágonos que administro se intitula Trono penteado, e outro A cãibra de gesso e outro Axaxaxas mlö. Essas propostas, à primeira vista incoerentes, sem dúvida são susceptíveis de uma justificação criptográfica ou alegórica; essa justificação é verbal e, ex hypothesi, já figura na Biblioteca. Não posso combinar uns caracteres

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que a divina Biblioteca não haja previsto e que nalguma das suas línguas secretas não contenham um terrível sentido. Ninguém pode articular uma sílaba que não esteja plena de ternuras e de temores; que não seja nalguma dessas linguagens o nome poderoso de um deus. Falar é incorrer em tautologias. Esta epístola inútil e palavrosa já existe num dos trinta volumes das cinco prateleiras de um dos incontáveis hexágonos — e também a sua refutação. (Um número n de linguagens possíveis usa o mesmo vocabulário; numas, o símbolo biblioteca admite a correcta definição do ubíquo e duradouro sistema de galerias hexagonais, mas biblioteca é pão ou pirâmide ou outra coisa qualquer, e as sete palavras que a defi­nem têm outro valor. Tu que me lês, tens a certeza de que compreendes a minha linguagem?)
A escrita metódica distrai-me da presente condição dos homens. A certeza de que está tudo escrito anula-nos ou envaidece-nos. Conheço distritos onde os jovens se ajoelham diante dos livros e lhes beijam baramente as páginas, mas não sabem decifrar uma única letra. As epidemias, as discórdias heréticas, as peregrinações, que inevitavelmente degeneram em banditismo, têm dizimado a população. Creio já ter mencionado os suicídios, de ano para ano cada vez mais frequentes. Talvez me enganem a velhice e o temor, mas tenho a suspeita de que a espécie humana — a única — está prestes a extinguir-se e que a Biblioteca perdurará: iluminada, solitária, infinita, perfeitamente imóvel, armada de volumes preciosos, inútil, incorruptível, secreta.
Acabo de escrever infinita. Não intercalei este adjectivo por um hábito retórico; digo que não é ilógico pensar que o mundo é infinito. Quem o julga limitado, postula que em lugares longínquos os corredores e escadas e hexágonos podem inconcebivelmente cessar — o que é absurdo. Quem o imagina sem limites, esquece que os tem o número possível de livros. Atrevo-me a insinuar esta solução do antigo problema: A biblioteca é ilimitada e periódica. Se um eterno viajante a atravessasse em qualquer direcção, verificaria ao cabo dos séculos que os mesmos volumes se repetem na mesma desordem (que, repetida, seria uma ordem: a Ordem). A minha solidão alegra-se com esta elegante esperança[3].

Mar da Prata, 1941.


[1] Dantes, para cada três hexágonos havia um homem. O suicídio e as doenças pulmonares destruíram esta proporção. Memória de indescritível melancolia: já cheguei a viajar muitas noites por corredores e escadas polidas sem encontrar um único bibliotecário.
[2] Repito: basta que um livro seja possível para existir. Só está excluído o impossível. Por exemplo: nenhum livro é também uma escada, embora sem dúvida haja livros que discutem e negam e demonstram essa possibilidade, e outros cuja estrutura corresponde à de uma escada.
[3] Letizia Álvarez de Toledo observou que esta vasta Biblioteca é inútil: rigorosamente, bastaria um único volume, de formato comum, impresso em corpo nove ou em corpo dez, que constasse de um número infinito de folhas infinitamente finas. (Cavalieri nos princípios do século XVII disse que todo o corpo sólido é a sobreposição de um número infinito de planos.) O manejo desse vade-mécum sedoso não seria cómodo: cada folha aparente desdobrar-se-ia noutras análogas; a inconcebível folha central não teria reverso.


quinta-feira, 8 de outubro de 2009

A formação para se ser anjo é das mais difíceis que há. Temos que aprender a amar, a amar sem limites, a amar infinitamente e a saber que de todo o amor que semeamos no munido, nem um só grão de pó será colhido por nós. Temos de saber transformar-nos num mero canal, viver na penumbra, conviver com a nossa invisibilidade aos olhos dos outros. Por isso, quantas vezes nós, os jovens aprendizes, nos não sentamos nos degraus de pedra dos palácios onde vivemos e, com o rosto entre as mãos, choramos… Por isso, também, há tantos anjos que se tornam negros. Não regressam jamais nem à humanidade nem à luz. Perdem-se numa escuridão de dor, sem regresso. E combatem-nos o tempo todo.
O meu nome é Menahel e hoje preciso de vos contar a história de Dítě. Agora dá pelo nome de Oriana, para não ser descoberta. Também ela ganhou as suas asas. Mas não foi fácil. Até porque começou como nereida e não como humana. A mais pequena das nereidas…
Das nereidas, Dítě foi a última a nascer. Era a mais pequena de todas, mas também a mais bela, mais bela até que Anfitrite, e por isso a mãe lhe chamou Dítě e a escondeu dos olhares de Zeus e Poseídon. Era a preferida de seu pai Nereu, do avô Pontos, da bisavó Geia e até do trisavô Caos, que raras vezes se preocupava com a sua descendência. Dítě tinha os cabelos escuros, como Anfitrite, os olhos côr de âmbar, com laivos de esmeralda, enfeitava os cabelos com pérolas, madrepérola e corais vivos de todas as côres e percorria o fundo do mar sempre acompanhada de pequenos peixes dourados e prateados e cavalos marinhos azuis e amarelos. Era muito estimada por todas as criaturas, pois tinha o dom de curar. Onde quer que pousasse as suas pequenas mãos brancas e delicadas, a mácula desaparecia. Nas suas viagens, gostava particularmente de coleccionar pequenos objectos estranhos e aparentemente inúteis e guardava-os sob a concha rosada que lhe servia de cama, o que muito aborrecia sua mãe, Dóris, que não compreendia nem o estranho conteúdo nem a direcção da alma de Dítě e considerava tudo aquilo um monte de pó inútil.
Numa dessas viagens, junto a um jardim de coral sufocado de poluentes, que tinha acabado de limpar e salvar da morte certa, Dítě encontrou um estranho objecto a flutuar na superfície das águas: uma cesta de bambú com uma criança. Como forma de agradecimento, os corais tinham decidido retribuir com uma explosão de fecundação-reprodução e foi difícil para Dítě navegar por entre a nuvem alegre e brilhante e agarrar a cesta. Mal pousou os olhos na criança do sexo masculino, viu no seu futuro, com o dom da sua visão, um amor sem limites e decidiu chamar-lhe Amadis. Pousou-lhe as mãos no peito e deu-lhe a capacidade de respirar sob as águas para o poder transportar para o palácio de seus pais e partiu, a grande velocidade, pois tinha sentido a fome no minúsculo ser.
Chegada ao palácio, Dìtě depositou Amadis sob a sua concha, junto aos seus preciosos tesouros, e foi a correr buscar Gandales, o pai de todos os cavalos-marinhos. Gandales não tinha idade e era sábio e saberia como alimentar a criança. Foi difícil para Dìtě arrancar Gandales dos seus trabalhos, pois tinha acabado de nascer uma nova ninhada de cavalos-marinhos, mas Dítě tanto implorou que Gandales acabou por a seguir. Ao ver Amadis deitado na sua cesta, Gandales mandou de imediato chamar Urganda, a mãe de todos os golfinhos, e foi esta que o alimentou.
Amadis cresceu muito depressa com o leite de Urganda e os cuidados e ensinamentos de Gandales. Assim que Amadis atingiu a idade adulta, Dóris, que até ao momento tinha ignorado o que considerava mais uma loucura da sua filha mais nova, apercebeu-se do amor que surgia entre ele e Dìtě. Resolveu então que tinha chegado o momento de devolver aquele humano frágil e inútil, como o restante pó que a filha guardava debaixo da cama, à procedência. Como sabia que Dìtě não o iria permitir e para evitar uma nova guerra com a filha predilecta de Nereu, mandou chamar em segredo Arcalaus, o mais engenhoso dos feiticeiros, e encarregou-o de raptar Amadis em segredo e de o levar para bem longe dali, para perto do continente asiático. Arcalaus tinha como missão depositá-lo nos braços de Endriago, o pai dos furacões. Este saberia onde o deixar, de modo que Dìtě não pudesse jamais voltar a encontrá-lo. Jamais.
Naquela noite, Arcalaus pegou em Amadis, profundamente adormecido com um feitiço negro, e transportou-o durante milhares de quilómetros pelo Mediterrâneo, Atlântico e Índico. No meio do Índico, encontrou-se com Endriago e atirou-lhe para os braços o corpo adormecido do amado de Dìtě. Mal saiu das águas para os ventos, a respiração de Amadis cessou. O seu corpo tinha-se habituado ao elemento aquoso e já não podia respirar nos ares. Nem Arcalaus, que de imediato se pusera de regresso a casa, nem Endriago, prestes a abater-se violentamente sobre o Japão, deram por nada. Mas Dìtě acordou subitamente, sem conseguir respirar. O que Dóris não sabia, porque nunca entendera Dìtě ou os seus poderes, é que a filha, ao partilhar com Amadis a capacidade de respirar e viver na água, ficara ligada a ele para viver e morrer com ele. Dìtě levou as mãos à garganta, absolutamente consciente do que estava prestes a acontecer. Não conseguia sequer gritar. Mas Urganda, que amamentara Amadis em criança, soube de imediato o que se passava e acordou subitamente. Como um raio de luz, precipitou-se para Dìtě, atirou-a para o seu dorso com as suas fortes barbatanas e dirigiu-se a uma velocidade louca para a costa do Japão.
Deixou Dìtě quase inconsciente com as mãos agarradas aos pés de Endriago, lívidas de tanta força que era necessária para os segurar, afastou-se e aguardou, a tremer. Urganda não tinha poderes para enfrentar o pai dos furacões. Com o seu último suspiro, Dìtě torceu e mordeu até rasgar os pés de Endriago. Este gritou de dor e foi devolvido aos céus, deixando cair Amadis no mar.
Dìtě teve apenas tempo de o agarrar rapidamente e mergulhar com ele, o mais fundo que conseguiu. Perdeu de vez a consciência e ambos caíram que nem pedras em direcção ao leito do oceano. Urganda seguia-os com dificuldade, pois esgotara toda a sua energia naquela última viagem. Quando chegou perto deles, ambos jaziam inertes sobre os corais. Urganda chorou, pois sentiu que, por mais rápida que tivesse sido, não tinha conseguido levar Dìtě a Endriago a tempo de ela salvar Amadis e assim se salvar a si própria. Agora, estavam ambos mortos. O seu canto triste, de profunda agonia, acordou os corais.
Só que alguns daqueles corais eram descendentes dos que Dìtě um dia salvara e reconheceram imediatamente aqueles que estavam pousados sobre eles.
A fecundação e reprodução dos corais tem os seus mistérios. Quando acontece, os recém-nascidos captam as energias e poderes mágicos que existem em seu redor. E passam essas energias e magia de geração em geração.
Estes corais, em particular, eram muito poderosos, pois tinham herdado de Dìtě o dom da cura e de Amadis o amor sem limites. Com um impulso totalmente incontrolável de amor e vontade de curar, explodiram sobre os corpos de Dìtě e Amadis, sacrificando a própria vida pela dos dois amantes. Urganda viu apenas uma nuvem brilhante e densa cobrir os dois corpos e no momento seguinte todos os corais tinham desaparecido e Dìtě e Amadis estavam nos braços um do outro, os pulmões de ambos de novo em uníssono e ritmado movimento. Inspira, expira, inspira, expira, inspira, expira… com a água do mar a fluir entre um e outro.
Nenhum dos três regressou a casa. Ouviram-se histórias, no fundo do mar, de que Nereu terá matado Arcalaus e mandado prender Dóris. Mas podem ser apenas histórias. Dìtě adoptou o nome de Oriana, o preferido de Amadis, e dedicou o resto da sua vida ao amado e à protecção dos corais do Índico. Urganda ficou, pois Amadis tornara-se seu filho e já não podia separar-se dele. Quanto a Amadis, ganhou o gosto de Dìtě por coleccionar objectos estranhos e em oceano algum havia mais objectos estranhos do que ali mesmo, no Índico.
Foi precisamente sobre os objectos que ambos coleccionavam que Dìtě-Oriana resolveu começar a escrever contos de fino recorte. Escreve sobre jarros jomon, espantalhos, porcelanas Imari e Satsuma, bolas de neve, bules de ferro de Ashiya, bolas de cal, máscaras de laca, conchas, taças de bambu dourado, chávenas de café, peças Ukiyo-e, ligaduras, dogus, arrumadores de carros, dobokos, pratos de balança, gravuras Shin-Hanga, relâmpagos, dotakus, labaredas, kanjis, jóias, kimonos de seda, pó, kongokais, casacos, mandalas, sépia, kirikanes…
E nós, simples humanos, deliciamo-nos com os seus contos, que são depositados pela espuma do mar nos sítios mais inesperados. Por exemplo, aqui?...
 

[Nota: Alguns dos nomes dos personagens foram inspirados no único romance de cavalaria português, Amadis de Gaula, romance datado provavelmente de finais do século XIII, pertencente ao ciclo arturiano, de autor desconhecido. Há fontes que indicam que o primeiro autor foi um tal de Vasco de Lobeira, armado cavaleiro na batalha de Aljubarrota ou João de Lobeira. Os outros nomes de personagens foram inspiração da mitologia grega. Os objectos de nome japonês encontrados por Amadis, são na sua maioria objectos de arte, cujo significado, para quem seja mais curioso, pode ser encontrado na Internet. Só uma pequena curiosidade: em checoslovaco, Dìtě significa “criança”. No conto significa “de pura essência”.]


quarta-feira, 7 de outubro de 2009


(1) É verdade, certo e muito verdadeiro:
(2) O que está em baixo é como o que está em cima e o que está em cima é como o que está em baixo, para realizar os milagres de uma única coisa.
(3) E assim como todas as coisas vieram do Um, assim todas as coisas são únicas, por adaptação.
(4) O Sol é o pai, a Lua é a mãe, o vento o embalou em seu ventre, a Terra é sua alma;
(5) O Pai de toda Telesma do mundo está nisto.
(6) Seu poder é pleno, se é convertido em Terra.
(7) Separarás a Terra do Fogo, o sutil do denso, suavemente e com grande perícia.
(8) Sobe da terra para o Céu e desce novamente à Terra e recolhe a força das coisas superiores e inferiores.
(9) Desse modo obterás a glória do mundo.
(10) E se afastarão de ti todas as trevas.
(11) Nisso consiste o poder poderoso de todo poder:
Vencerás todas as coisas sutis e penetrarás em tudo o que é sólido.
(12) Assim o mundo foi criado.
(13) Esta é a fonte das admiráveis adaptações aqui indicadas.
(14) Por esta razão fui chamado de Hermes Trismegistos, pois possuo as três partes da filosofia universal.
(15) O que eu disse da Obra Solar é completo.


domingo, 20 de setembro de 2009

A nossa vida quotidiana está sempre a ser bombardeada pelos acasos. Mais exactamente, por encontros fortuitos entre as pessoas e os acontecimentos, ou seja, por aquilo a que costumamos chamar coincidências. Há uma coincidência quando dois acontecimentos inesperados se produzem ao mesmo tempo, quando se encontram um com o outro.[...] Para que um amor se torne inesquecível é preciso que, desde o primeiro momento, os acasos se reúnam nele como pássaros pousando nos ombros de São Francisco de Assis.
Não há, portanto, razão nenhuma para censurar aos romances o seu fascínio pelos misteriosos cruzamentos dos acasos, mas há boas razões para censurar o homem por ser cego a esses acasos na sua vida quotidiana e assim privar a vida da sua dimensão de beleza.
[...]
O acaso tem seus sortilégios, a necessidade não. Para que um amor seja inesquecível, é preciso que os acasos se encontrem nele desde o primeiro instante como os pássaros nos ombros de são Francisco de Assis.

Milan Kundera, in A insustentável leveza de ser



E dizia eu hoje a mim mesma que foram apenas coincidências, apenas isso, coincidências. Cruéis e inesperadas coincidências. E vinguei-me. Matei todos os pássaros.




antigamente, quando escrevia, deixava entrever minha ternura
mas com muito medo. queria que todos os meus romances
cheirassem a sangue e viessem rotulados com o carimbo de:
machos pra burro. foi preciso que chegasse aos quarenta anos
para perder todo o terror de minha ternura a derramar por minhas
mãos que queimam de carinho (quase sempre sem ter ninguém
para o receber) a simplicidade deste meu livro. leia-o quem quiser.
de uma coisa estou certo: não tenho nada de que me desculpar
perante o público. apresento, pois, rosinha, minha canoa

José Mauro de Vasconcelos, introdução ao livro

Excerto do capítulo terceiro, olhos vegetais
[...]

impressionante o cheiro de terra que comprimia o seu corpo de semente. no começo, quando o vento a lançara sobre o solo, tinha algum movimento, mas depois o mesmo vento, como se cumprisse uma missão, viera rodopiando, até a cobrir de areia. aos poucos foi conseguindo respirar, até se acostumar com aquele aprisionamento. alguma coisa garantia não durar muito... uma angústia enorme invadia toda a insignificância do seu ser, porque a terra, sempre escura, não contava nada do que se passava do lado de fora. verdade era que tinha saudade do sol e dos cantos dos pássaros; entretanto, acalmava-se e tentava compreender que aquele mistério fazia parte necessariamente de sua transformação.

e os dias iam passando, compridos e iguais, aumentando cada vez mais as horas de calor. as vezes, vermes escorregadios tocavam no seu corpo nervoso e isso fazia com que desejasse voltar ao mundo antigo.

não podia falar porque a terra quente, abafando tudo, transformava suas palavras em silêncio. pensou em outras sementes aprisionadas, sofrendo também a mesma angústia da humilde espera.

até que um dia, uma absoluta calma substituiu seus pequenos frêmitos e uma espécie de sono paralisou-a; só foi despertada por um grande ruído. a terra estremecia de medo porque a natureza trovejava. sentiu o baque da chuva sobre o solo e o cheiro gostoso do chão que estava sendo molhado. depois... as gotas de chuva introduzindo-se, infiltrando-se, até ao âmago da terra... vinham cansadas da longa viagem feita do céu através do espaço zangado...

[...]




Gostava que a tivesses visto, a enorme ave branca que atravessou os mares nocturnos, ontem à noite. Brilhava na escuridão com uma luz muito suave e voava baixo, maior do que um airbus, mais leve do que uma pena, mais veloz do que a luz ou o pensamento, chegou tão depressa como só o sentimento pode chegar, cruzou os mares, todos os mares de todos os tempos, todas as noites de todos os dias, branca, tão branca na noite, um branco de lua virgem dos beijos dos meteoros.
Quando chegou a terra diminuiu de tamanho, entrou pela foz rio acima, a planar sobre as águas sujas que sob ela se agitavam, a ave trouxe o mar com ela, as águas ficaram limpas, os golfinhos vinham atrás, os dorsos prateados a cavalgarem as ondas, deixaram chamas verdes na superfície das águas, regressaram ao mar, a ave não. Com a sua bela cabeça de cisne gigante, o seu pescoço longo e macio, passou por cima do teu esconderijo, sei o que estavas a fazer, vi-o através dos olhos da ave, deixei-a pousar lá onde estavas, não chorei, pela primeira vez não chorei, adormeci dentro dos olhos pretos da ave, não sem antes ter tapado os espelhos com veludo azul, tapei os espelhos e então a ave escondeu o bico debaixo das asas, fechou os olhos pesados do veludo azul e adormeceu comigo lá dentro.
De madrugada, ambas tínhamos desaparecido.
Só gostava que tivesses visto a ave que fiz para ti.





Em memória do meu avô Manuel: Orgulho humano, qual és tu mais — feroz, estúpido ou ridículo?

IV
RECORDAÇÕES

Onde é que se escondeu enfraquecida a antiga fortaleza?
STO. EULÓGIO: Memorial dos Santos. Liv. 3.°

Presbitério de Carteia. À meia-noite dos idos de Dezembro de 748.

1
ERA por uma destas noites vagarosas do Inverno em que o brilho do céu sem lua é vivo e trémulo; em que o gemer das selvas é profundo e longo; em que a soledade das praias e ribas fragosas do oceano é absoluta e tétrica.
Era a hora em que o homem está recolhido nas suas mesquinhas moradas; em que pelos cemitérios o orvalho se pendura do topo das cruzes e, sozinho, goteja das bordas das campas; em que só ele chora os mortos. As larvas da imaginação e o gear nocturno afastam do campo santo a saudade da viúva e do órfão, a desesperação da amante, o coração despedaçado do amigo. Para se consolarem, os infelizes dormiam tranquilos nos seus leitos macios!... enquanto os vermes iam roendo esses cadáveres amarrados pelos grilhões da morte. Hipócritas dos afectos humanos, o sono enxugou-lhes as lágrimas!
E depois, as lousas eram já tão frias! Nos selos do torrão húmido o sudário do cadáver tinha apodrecido com ele.
Haverá paz no túmulo? Deus sabe o destino de cada homem. Para o que aí repousa sei eu que há na terra o esquecimento!
Os mares pareciam naquela hora recordar-se ainda do rugido harmonioso do Estio, e a vaga arqueava-se, rolava e, espreguiçando-se pela praia, reflectia a espaços nas golfadas de escuma a luz indecisa dos céus.
E o animal que ri e chora, o rei da criação, a imagem da divindade, onde é que se escondera?
Tremia de frio em aposento cerrado, e sentia confrangido a brisa fresca do norte que passava nas trevas e sibilava contente nas sarças rasteiras dos maninhos desertos.
Sem dúvida, o homem é forte e a mais excelente obra da criação. Glória ao rei da natureza que tiritando geme!
Orgulho humano, qual és tu mais — feroz, estúpido ou ridículo?

2
Não eram assim os Godos do Oeste quando, ora arrastando por terra as águias romanas, ora segurando com o seu braço de ferro o império que desabava, imperavam na Itália, nas Gálias e nas Espanhas, moderadores e árbitros entre o Setentrião e o Meio-Dia:
Não eram assim, quando o velho Teodorico, semelhante ao urso feroz da montanha, combatia nos campos cataláunicos, rodeado de três filhos, contra o terrível Átila e ganhava no seu último dia a sua última vitória:
Quando a larga e curta espada de dois gumes se convertera em foice da morte nas mãos dos godos, e diante dela retrocedia a cavalaria dos gépidas, e os esquadrões dos hunos vacilavam, dando roucos gritos de espanto e terror.
Quando as trevas eram mais cerradas e profundas viam-se à claridade das estrelas relampaguear as armas dos hunos, volteando em redor dos seus carros, que lhes serviam de valos. Como o caçador espreita o leão tomado no fojo, os visigodos os vigiavam, esperando o romper da alvorada.
Lá, o sopro gelado da noite não fazia confranger nossos avós debaixo das armaduras. Lá, a neve era um leito como outro qualquer, e o rugir do bosque, debatendo-se nas asas da tempestade, era uma cantilena de repouso.
O velho Teodorico caíra atravessado por uma frecha despedida pelo ostrogodo Handags, que, com os da sua tribo, combatia pelos hunos.
Os visigodos viram-no, passaram avante e vingaram-no. Ao pôr do Sol, gépidas, ostrogodos, ciros, borgundos, turíngios, hunos, misturados uns com outros, tinham mordido a terra cataláunica, e os restos da inumerável hoste de Átila, encerrados no seu acampamento fortificado, preparavam-se para morrer; porque Teodorico jazia para sempre, e o franquisque dos visigodos era vingador e inexorável.
O romano Aécio teve, porém, piedade de Átila e disse aos filhos de Teodorico:
– Ide-vos, porque o império está salvo.
E Torismundo, o mais velho, perguntou a seus dois irmãos Teodorico e Frederico:
– Está acaso vingado o sangue de nosso pai?
De sobejo o estava ele! Ao aparecer do dia, por quanto os olhos podiam alcançar, não se viam senão cadáveres.
E os visigodos deixaram entregues a si os romanos, que, desde então, não souberam senão fugir diante de Átila.
Quem contará, porém, as vitórias de nossos avós durante três séculos de glória? Quem poderá celebrar o esforço de Eurico, de Tendes, de Leovigildo; quem saberá todas as virtudes de Recaredo e de Vamba?
Mas, em qual coração resta hoje virtude e esforço, no vasto império de Espanha?

3
Era, pois, numa destas noites como a que desceu do céu depois do desbarato dos hunos; era numa destas noites em que a terra, envolta no seu manto de escuridade, se povoa de terrores incertos; em que o sussurro do pinhal é como um coro de finados, o despenho da torrente como um ameaçar de assassino, o grito da ave nocturna como uma blasfémia do que não crê em Deus.
Nessa noite fria e húmida, arrastado por agonia íntima, vagava eu às horas mortas pelos alcantis escaldados das ribas do mar, e enxergava ao longe o vulto negro das águas balouçando-se no abismo que o Senhor lhes deu para perpétua morada.
Por cima da minha cabeça passava o norte agudo. Eu amo o sopro do vento, como o rugido do mar:
Porque o vento e o oceano são as duas únicas expressões sublimes do verbo de Deus, escritas na face da Terra quando ainda ela se chamava o caos.
Depois é que surgiu o homem e a podridão, a árvore e o verme, a bonina e o emurchecer.
E o vento e o mar viram nascer o género humano, crescer a selva, florescer a Primavera; — e passaram, e sorriram-se.
E, depois, viram as gerações reclinadas nos campos do sepulcro, as árvores derribadas no fundo dos vales secas e carcomidas, as flores pendidas e murchas pelos raios do Sol do Estio; — e passaram, e sorriram-se.
Que tinham eles, de feito, com essas existências, mais passageiras e incertas que as correntezas de um e que as ondas buliçosas do outro?

4
O mundo actual nunca poderá entender plenamente o afecto que, vibrando-me dolorosamente as fibras do coração, me arrastava para as solidões marinhas do promontório, quando os outros homens nos povoados se apinhavam à roda do lar aceso e falavam das suas mágoas infantis e dos seus contentamentos de um instante.
E que me importa a mim isso? Virão um dia a esta nobre terra de Espanha gerações que compreendam as palavras do presbítero.
Arrastava-me para o ermo um sentimento íntimo, o sentimento de haver acordado, vivo ainda, deste sonho febril chamado vida, e de que hoje ninguém acorda, senão depois de morrer.
Sabeis o que é esse despertar de poeta?
É o ter entrado na existência com um coração que trasborda de amor sincero e puro por tudo quanto o rodeia, e ajuntarem-se os homens e lançarem-lhe dentro do seu vaso de inocência lodo, fel e peçonha e, depois, rirem-se dele:
É o ter dado às palavras — virtude, amor pátrio e glória — uma significação profunda e, depois de haver buscado por anos a realidade delas neste mundo, só encontrar aí hipocrisia, egoísmo e infâmia:
É o perceber à custa de amarguras que o existir é padecer, o pensar descrer, o experimentar desenganar-se e a esperança nas causas da terra uma cruel mentira de nossos desejos, um fumo ténue que ondeia em horizonte aquém do qual está assentada a sepultura.
Este é o acordar do poeta. Depois disso, nos abismos da sua alma só há para mandar aos lábios um sorriso de desprezo em resposta às palavras mentidas dos que o cercam ou uma voz de maldição desabridamente sincera para julgar as acções dos homens.
É então que para ele há unicamente uma vida real — a íntima; unicamente uma linguagem inteligível — a do bramido do mar e do rugido dos ventos; unicamente uma convivência não travada de perfídia — a da solidão.

5
Tal era eu quando me assentei sobre as fragas; e a minha alma via passar diante de si esta geração vaidosa e má, que se crê grande e forte, porque sem horror derrama em lutas civis o sangue de seus irmãos.
E o meu espírito atirava-se para as trevas do passado.
E o sopro rijo do norte afagava-me a fronte requeimada pela amargura, e a memória consolava-me das dissoluções presentes com a aspiração suave do formoso e enérgico viver de outrora.
E o meu meditar era profundo, como o céu, que se arqueja imóvel sobre nossas cabeças; como o oceano, que, firmando-se em pé no seu leito insondável, braceja pelas baías e enseadas, tentando esboroar e desfazer os continentes.
E eu pude, enfim, chorar.

6
Que fora a vida se nela não houvera lágrimas?
O Senhor estende o seu braço pesado de maldições sobre um povo criminoso; o pai que perdoara mil vezes converte-se em juiz inexorável; mas, ainda assim, a Piedade não deixa de orar junto dos degraus do seu trono.
Porque sua irmã é a Esperança, e a esperança nunca morre nos céus. De lá ela desce ao seio dos maus antes que sejam precitos.
E os desgraçados na sua miséria conservam sempre olhos que saibam chorar.
A dor mais tremenda do espírito quebrantam-na e entorpecem-na as lágrimas.
O Sempiterno as criou quando nossa primeira mãe nos converteu em réprobos: elas servem, porventura, ainda de algum refrigério lá nas trevas exteriores, onde há o ranger dos dentes.
Meu Deus, meu Deus! Bendito seja o teu nome, porque nos deste o chorar.

Alexandre Herculano, in Eurico, o Presbítero

O vento entrou silencioso pelo canto da porta, a madeira a ranger meio que rangia, ainda a ouvir-se uma pequena farpa escondida de som, de qualquer som, um pequeno ranger, foi todo o ranger que se ouviu, a entrar devagar, o canto da porta a deixar-se enganar pelo ranger, pelo frio, devagar pela porta, um pequeno som quase inaudível, perto do não som, e o sol a fugir pela frincha, pelo canto, a porta que deixava entrar o ranger que não o ouvia o homem sentado à mesa, a porta e o telhado e o prato perto de mortos, a colher caída, como o som lhe fizesse companhia, as mãos na cabeça e o som, a cozinha, Vem, que não ouço, veio o ranger despertar-me ou nem o sei, dizia, a cabeça a rasar o prato e o ranger, as mãos na cabeça e o ranger a recrudescer, a cozinha e as paredes e os pratos perto da cabeça do homem, homem cabeça, o ranger da porta, o tempo que ela demorou a chegar, devagar, um pé no outro, cuidadoso, a tactear parede rugosa, o ranger da porta que rangia, Vem, que não ouço, Vem, que não te ouço, e veio um ranger ainda maior que o ranger, zuniu furioso a estalar o som, já não perto do não som, mais perto do som que do não som, e o homem de cabeça nas mãos, nos pratos, na cozinha, na mesa da cozinha, as paredes que ela vinha tacteando, as rugas, as farpas, furioso o ranger que invadia a cozinha, o homem as mãos na cabeça os pratos pelo canto da porta, de nada lhe vale porque o vento, o vento que não tem som, o vento assobia nas frinchas, nas arestas, nos cantos da porta, a porta que não estala mas perto, o vento a empurrá-la com fúria, Vem, que o vento, diz, e ela chega, agarra-lhe nas mãos e na cabeça e nos pratos e na mesa da cozinha e olha-o, o homem as mãos na cabeça, na falta de som, ou no excesso de som, o que veio pelo canto da porta, da porta da cozinha, virada ao vento veloz furando mais furioso, um pequeno som inaudível agigantando-se, e todos os sons deixam de ser silêncio, todo e qualquer pequeno bulir já não agulha surda no chão, salto de pulga, agora um vendaval, mais que uma interminável banda momentos antes do espectáculo, momentos antes da melodia, como tudo o que houvesse fosse um grande e único som que não se percebe, tão perto do silêncio como da brutalidade e ela disse assim Vem que o som, o som que vem pela porta, que o som pelo canto da porta não te incomode, homem mãos na cabeça, a cabeça perto do prato, da mesa, da mesa da cozinha.

Paulo Melo Lopes

Yeshua disse: a tua próxima tarefa é sentir, sentir sem pensar.
Sentir sem pensar é amar-me e, através de mim, o universo inteiro.
Mas eu estou tão cansada. Há fome e dor no mundo. Há guerra. Há revolução.
E tu tens fome, sei que tens fome e eu não posso saciar-te.
Tamanha beleza, tão inalcançável, tão à mão de semear, semeemos então, semeemos, saciemos então o mundo com pensamentos de paz.
Já te disse que me doem os pés e perguntam-me todos porquê, porque me doem os pés, são as pedras do caminho, são mais do que pedras, são navalhas, punhais, espadas, estalagmites de gelo a dez milhões de graus negativos e os pés doem-me, o pior é que a alma também dói.

Um verdadeiro professor espiritual não tem nada para ensinar no sentido convencional da palavra. Não tem nada para te dar ou acrescentar como nova informação, crenças ou regras de conduta. A única função de tal professor é ajudar-te a remover aquilo que te separa da verdade. 

Eckhart Tolle

quinta-feira, 10 de setembro de 2009



Os pássaros do jardim
andam loucos, agitados,
não vêm junto de mim,
procuram por ti, coitados.

Manuel Dias de Almeida



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