as almas, os pássaros

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quinta-feira, 23 de dezembro de 2010

Não é de agora. É de todos os dias e todas as noites. O natal. Nascer. [Re]nascer. A rosa interior, a última de sete, a primeira de sete, a que arde ligada ao absoluto, ao eterno, aquela que é do amor anterior. A rosa do fado e da saudade, a que viaja e descobre, a que é e não é, a que procura já tendo encontrado, a que pergunta já tendo a resposta. Não é de agora, o natal. O natal nem é agora. O natal é de sempre. Para sempre. O único natal feliz é o que desperta. E é isso que desejo a todos neste mundo, da pedra ao humano.

domingo, 12 de dezembro de 2010


Um texto de Elio Gaspari

Os maganos da Amazon, do Mastercard, da Visa e do PayPal tentaram asfixiar o WikiLeaks e foram surpreendidos por uma revolta que juntou dezenas de milhares de micreiros, atacou seus portais e derrubou alguns deles. Na Holanda, foi preso um "wikihacker". Tem 16 anos. À força dos poderosos contrapôs-se a mobilização dos teclados da internet. O mundo do sucesso cibernético produziu figuras legendárias como Steve Jobs e Mark Zuckerberg, mas os "wikihackers" vêm de outro universo, onde há algo de transgressor. Por mais que haja "wikihackers" pensando em virar Jobs ou Zuckerberg, quem eles admiram mesmo é Lisbeth Salander.


Com seis piercings só na cabeça e um dragão tatuado nas costas, ela é a micreira antissocial, introspectiva e malvada dos romances do sueco Stieg Larsson, autor da trilogia "Millenium" (25 milhões de livros vendidos). Salander foi magistralmente interpretada por Noomi Rapace no filme "Os homens que não amavam as mulheres".

Gótica, cerebral e emburrada, come o pão que o diabo amassou, mas seus trocos são dolorosos. Uma das desforras faz do Capitão Nascimento um pacifista. A barreira do seu individualismo só é removida quando liga o computador, com o qual faz o que quer. Ambígua até na sexualidade, Salander não é uma personagem que estimule a clonagem, mas todo hacker tem um pouco de Lisbeth.

A prosperidade dos anos 50 e a fé no poder da tecnologia ajudaram o escritor Ian Fleming a construir a figura de James Bond. O poder que a gregariedade da internet dá hoje ao individualismo criou os "wikihackers" e Lisbeth Salander. Bond deixou atrás de si alguns tiques, um modelo de pasta e mais nada. O ataque aos portais da Amazon, do Mastercard, da Visa e do PayPal ensinou a essas empresas onipotentes que atrás de cada monitor não está apenas um freguês.

Elio Gaspari

quarta-feira, 24 de novembro de 2010

Um poema de José Régio declamado por João Villaret. 

domingo, 31 de outubro de 2010



sexta-feira, 29 de outubro de 2010







Os humanos venderam-se
afinal
não por um pão
não pelo sonho
mas por um monitor hd de televisão

quinta-feira, 28 de outubro de 2010

II

Amada vida, minha morte demora.
Dizer que coisa ao homem,
Propor que viagem? Reis, ministros
E todos vós, políticos,
Que palavra além de ouro e treva
Fica em vossos ouvidos?
Além de vossa rapacidade
O que sabeis
Da alma dos homens?
Ouro, conquista, lucro, logro
E os nossos ossos
E o sangue das gentes
E a vida dos homens
Entre os vossos dentes.

VIII

Lobos? São muitos.
Mas tu podes ainda
A palavra na língua

Aquietá-los.

Mortos? O mundo.
Mas podes acordá-lo
Sortilégio de vida
Na palavra escrita.

Lúcidos? São poucos.
Mas se farão milhares
Se à lucidez dos poucos
Te juntares.

Raros? Teus preclaros amigos.
E tu mesmo, raro.
Se nas coisas que digo
Acreditares.

Hilda Hilst, Júbilo Memória Noviciado da Paixão, 1974

domingo, 24 de outubro de 2010

Eu queria ser a terra em que tu hás-de estar morta e branca e fria, para te envolver toda num beijo fecundo. Eça de Queiroz, na minha timeline do Facebook

Credo! 
 
Até porque na terra nunca se fica "morta, branca e fria", antes morta, terrosa e podre. 
 
Credo! Credo!

Começou por ser uma casa vazia. Portas e janelas sempre abertas. Chão e paredes de pedra. Tectos transparentes. Também a sua localização era importante. Não era uma casa fixa, circulava, ora rodeada de floresta, ora de nuvens, ora de estrelas. Era uma boa casa. Dormia no chão e nem sentia o frio da pedra. Era feliz. Amigos vinham e iam, como aves de arribação. Abraços, risos, conversas, algumas lágrimas. Era a melhor casa do mundo.
Até que um dia vieram aqueles que não partiram mais.
Começaram por pôr trancas nas portas e janelas e começaram a trazer coisas para dentro de casa. Depois, fixaram-na ao chão, com cabos de aço, para facilitarem a tarefa de acumulação e enchimento. Cobriram os tectos com placa sólida. Trouxeram raiva, amargura, frustração. E coisas, muitas coisas. Coisas sólidas, que ocupam tudo, de todos os tamanhos, côres e texturas, coisas grandes e coisas pequenas, bicudas e redondas, com e sem arestas, de formatos simples ou complexos. A paisagem desapareceu e a casa começou a encher-se do pó dos que não partiam e do envelhecer das coisas. Já nem havia espaço para as aves de arribação, que com tristeza, ainda pousavam nos beirais, de vez em quando, até que um dia deixaram de vir. A casa ficou cheia, muito cheia, e escura e triste. E a alma que vivia lá dentro, deixou de conseguir respirar e morreu, sem espaço e sem luz.


Box of Rejection, Pintura de Sytiva Sheehan, Estados Unidos

sexta-feira, 22 de outubro de 2010

já não dói já não dói, ou quando dói é como uma enorme dor apertada num espaço muito pequeno e num tempo mais pequeno ainda, uma dor que já não cabe, nem no espaço, nem no tempo, nem em quem sou, nem na vida, nem sequer na morte, já não dói, breve o instante em que ainda dói, apertado o espaço em que a dor é estrangulada, grande a vida a esmagar a dor, a reduzi-la ao lixo que foi, tanto lixo. agora. só preciso de limpar todo o lixo que a dor deixou para trás. tanto lixo. tanto, tanto lixo para varrer 
 
e depois penso, o lixo que se lixe, é mais fácil fechar a porta e ir embora, os pés na água limpa, o vento que cuide do resto
 

quinta-feira, 21 de outubro de 2010

Não resisto a partilhar. Até porque as gémeas já são adolescentes e ninguém as irá reconhecer. Acima de tudo, ri hoje a bom rir com elas com o nome que a prima deu à fotografia. Tico e Teco. Cada uma parece esconder uma noz na boca, Tico e Teco. Absolutamente deliciosas, acabadas de descer das árvores, convencidas de que ninguém viu. As nozes. Os segredos de criança. Amo-as muito.
 

segunda-feira, 18 de outubro de 2010

usurar
verbo intransitivo
emprestar dinheiro (ou outra coisa) exigindo juros superiores aos estabelecidos por lei; viver da usura
(De usura+-ar)

Fonte: Infopedia

Ora, e será assim tão difícil mudar a Lei?

Fotografia de Michael Blann

terça-feira, 12 de outubro de 2010

Hoje vieram ter comigo à saída da floresta, mesmo antes do viaduto. Vieram aos bandos. Não os consegui ver, mas ouvi-os, cantavam alto e alegremente, como numa conversa sobre esquilos, avelãs e o cheiro das folhas de eucalipto, os troncos a descascar prata e oiro com a chuva recente. Eram tantos. Senti-me profundamente grata, como uma criança, como quando era criança, pelo orvalho, a gratidão de ver o orvalho nas folhas de manhã, a caminho da escola, e consegui mais tarde no dia atravessar uma passadeira ao lado de um pombo gordo e preto, devagar como ele, ao ritmo dele, o barulho dos humanos era ensurdecedor, somos tantos, já não vejo as pessoas, tanta vaidade, tanta gravata, tanta ignorância, tão barulhentos, os homens, os egos enormes, as gravatas, a pressa, a arrogância, os poderes de coisa nenhuma, aqueles que são máscaras, e eu silenciosa com o pombo gordo e preto, bamboleante como um perú na véspera do natal, inchado de poluição, um pombo muito preto, na passadeira seguinte uma pomba voou ao meu lado, empresta-me as tuas asas, a pomba era cinzenta e branca, eles não saíram da floresta, mas agora sei que estão ali, à minha espera, nas manhãs, falam de esquilos e árvores e dos frutos de outono e do cheiro dos eucaliptos, pensei que iam entrar por ali dentro como os de Hitchcock, mas não, eram alegres e o outro, ainda tão jovem, o homem apressado que não larga o computador, pediu-me para lhe ir comprar um livro que ensina a viver devagar e eu percebi que tudo tem, de facto, um sentido qualquer, a ideia do livro veio com os pássaros da manhã.

terça-feira, 5 de outubro de 2010

Súbitamente o sentimento que a inundava encheu-a de dor e vergonha, como se tudo estivesse errado, o mundo virado do avesso, a eternidade já não fosse coisa sua, nem o sentimento fosse coisa sua, tornara-se um estranho, algo que agora não deveria ter existido nunca, um erro profundo, algo que parecia devorá-la por dentro, as visões e memórias em cacos afiados como punhais a estilhaçarem-lhe o cérebro e os olhos, um punho fechado de gelo vermelho paralisado dentro do peito, depois negro, depois transparente, depois nada.
Um breve nada - seguido de água furiosa, a jorrar branca e fria por todo o lado dentro de si, a comprimir o sentimento, a tentar expulsá-lo, a comprimi-lo cada vez mais, e o sentimento - que é estrela - a inchar desmesuradamente, até que simplesmente implode sobre si mesmo, e depois explode para fora dela, numa nuvem de luz e fogo, evaporando-se no espaço em redor, desaparecendo do tempo, todo o tempo, por toda a eternidade.
E daquele ponto no presente - é sempre apenas um ponto, o Agora, onde tudo acontece - o passado mudou desde o princípio e o futuro desviou-se.

segunda-feira, 20 de setembro de 2010

Esta frase estava escrita nas paredes interiores da Associação Naval de Lisboa. Nunca me esqueci dela. E nesta altura, o poema que Fernando Pessoa escreveu com base nela, parece-me particularmente inspirador. Teremos coragem? Quem ou o que somos, afinal? Quantos de nós ainda preferem navegar a viver?
 
Enfim, fica o poema. Espero que vos inspire tanto como a mim.

Navegar é preciso

Navegadores antigos tinham uma frase gloriosa:
"Navegar é preciso; viver não é preciso".

Quero para mim o espírito [d]esta frase,
transformada a forma para a casar como eu sou:

Viver não é necessário; o que é necessário é criar.
Não conto gozar a minha vida; nem em gozá-la penso.
Só quero torná-la grande,
ainda que para isso tenha de ser o meu corpo e a (minha alma) a lenha desse fogo.

Só quero torná-la de toda a humanidade;
ainda que para isso tenha de a perder como minha.
Cada vez mais assim penso.

Cada vez mais ponho da essência anímica do meu sangue
o propósito impessoal de engrandecer a pátria e contribuir
para a evolução da humanidade.

É a forma que em mim tomou o misticismo da nossa Raça.

Fernando Pessoa

Dizem que a frase original (Navigare necesse; vivere non est necesse, em latim) foi de Pompeu, que a disse aos marinheiros que tinham medo de navegar durante a guerra. Terá sortido efeito? Não li A Vida de Pompeu, de Plutarco, não saberei dizer. Não gosto de guerras. Mas gosto de Fernando Pessoa e da sua Mensagem.

Os números primos apenas são divisíveis por 1 e pelo próprio número. Estão no lugar que lhes é próprio na infinita série de números naturais, esmagados como todos entre dois, mas um passo mais além relativamente aos outros. São números desconfiados e solitários e, por isso, Mattia achava-os maravilhosos. Por vezes achava que tinham ido parar por engano àquela sequência, que tinham lá ficado aprisionados como pequeninas pérolas num colar. Outras vezes, ao invés, desconfiava que eles gostassem de ser como os demais, apenas uns números quaisquer, mas que por algum motivo não haviam sido capazes. O segundo pensamento surgia-lhe sobretudo à noite, no emaranhado caótico de imagens que antecede o sono, quando a mente está demasiado débil para mentir a si mesma.
Numa cadeira do primeiro ano Mattia estudara que entre os números primos há alguns que ainda são mais especiais. Os matemáticos chamavam-lhes “primos gémeos”: são pares de números primos que estão próximos de um outro, aliás, quase próximos, pois entre eles existe sempre um número par que os impede de se tocarem realmente. Números como, por exemplo, 11 e 13, 17 e 19, 41 e 43. Tendo paciência para continuar a contá-los descobre-se que estes pares se vão tornando progressivamente mais raros. Descobrem-se números primos cada vez mais isolados, perdidos naquele espaço silencioso e cadenciado feito apenas de cifras e nota-se o pressentimento angustiante de que os pares encontrados até aí foram um facto acidental, cujo verdadeiro destino é o de ficarem sozinhos. Depois, quando está prestes a desistir, quando já não se tem vontade de contar mais, eis que se descobrem, abraçados, mais dois gémeos. Entre os matemáticos é convicção comum que por mais que se avance na contagem, existirão sempre mais dois, ainda que ninguém saiba dizer onde, até serem descobertos.
Mattia achava que ele e Alice eram assim, dois primos gémeos, sós e perdidos, próximos mas não o suficiente para se tocarem realmente.


Paolo Giordano, in A solidão dos números primos

li algures que os gregos antigos não escreviam necrológios, quando alguém morria perguntavam apenas:
tinha paixão?

Herberto Helder




Sob a pele o barulho era ensurdecedor.
Sobre a pele
vestia apenas uma camisa curta de seda prateada, os cabelos lisos e soltos, ainda húmidos do banho. Deitou-se sobre a cama de madeiras exóticas, agora proibidas. Um leve aroma a jasmim azul evolava dos lençóis brancos de linho acabados de lavar. Muito devagar, como se cada osso do seu corpo lhe doesse, enrolou-se em posição fetal. Fechou os olhos. Lentamente, o dia expirou, a luz agoniando suavemente e o silêncio e a escuridão foram-se instalando, as formas das coisas vivas e mortas a desfazerem-se como borrões de tinta escura na água nova da noite. Sob as suas pálpebras fechadas, as sombras luminosas deram lugar às sombras cinzentas e depois sobraram apenas rolos e chamas de luz de várias côres, que dançaram dentro dos seus olhos, com o ritmo do bater de um coração, até que, num rápido piscar de olhos, os eliminou. Lá fora, o vento parou e as aves calaram-se. Os insectos pousaram quietos e assustados. As lagartixas refugiaram-se nos buracos das pedras.
O silêncio tornou-se absoluto.
Sobrou apenas o marulhar rouco e incomodativo da sua própria respiração, até que este marulhar incessante, como a voz de um mar esquecido e absurdo, a enfureceu. Emitiu um último breve soluço e
parou de respirar.




Existir-se é fundamentalmente amar.
Agostinho da Silva

eu só sei, nada sabendo, que algo é verdade e algo é mentira. a verdade pode ser luz, escuridão, amor, ódio, caos, ordem. a mentira simplesmente não é.






A minha conversa com a minha cadela mais pequena hoje: "Tu és um cão. Eu sou uma árvore." Ela percebeu perfeitamente, porque logo a seguir fez xixi em cima do meu sapato.
In exploring the shared language and poetic sensibilities of all animals, I am working towards rediscovering the common ground that once existed when people lived in harmony with animals. The images depict a world that is without beginning or end, here or there, past or present.


Gregory Colbert, Creator of Ashes and Snow 

Hoje estão em causa, não as paradas, que é tudo em que as multidões são adestradas, ou a guerra, a que se convidam; está em causa toda uma dinâmica nova para criar o habitat duma humanidade que atingiu a saturação da servidão, depois de há milénios ter dado o passo da reflexão. As pessoas interrogam-se em tudo quanto vivem. A saturação da servidão não é uma revolta; é um sentimento de desapego imenso quanto aos princípios que amaram, os deuses a que se curvaram, os homens que exaltaram. (...) Mas foi crescendo a saturação da servidão, porque a alma humana cresceu também, tornou-se capaz de ser amada espontaneamente; tudo o que servimos era o intermediário do nosso amor pelo que em absoluto nós somos. Serviram-se valores porque neles se representava a aparência duma qualidade, como a beleza, o saber, a força; esses valores estão agora saturados, demolidos pela revelação da verdade de que tudo é concedido ao corpo moral da humanidade e não ao seu executor. Um grande terror sucede à saturação da servidão. Receamos essa motivação nova que é a nossa vontade, a nossa fé sem justificação a não ser estarmos presentes num imenso espaço que não é povoado pela mitologia de coisa alguma. Somos novos na nossa velha aspiração: a liberdade é doce para os que a esperam; quando ela for um facto para toda a gente, damos-lhe outro nome.

Agustina Bessa-Luís, in 'Dicionário Imperfeito'
Ergo-Me Pederasta apupado d'imbecis,
Divinizo-Me Meretriz, ex-líbris do Pecado,
e odeio tudo o que não Me é por Me rirem o Eu!
Satanizo-Me Tara na Vara de Moisés!
O castigo das serpentes é-Me riso nos dentes,
Inferno a arder o Meu Cantar!
Sou Vermêlho-Niagara dos sexos escancarados nos chicotes
dos cossácos!
Sou Pan-Demónio-Trifauce enfermiço de Gula!
Sou Génio de Zaratrusta em Taças de Maré-Alta!
Sou Raiva de Medusa e Danação do Sol!
Ladram-Me a Vida por vivê-La
e só Me deram Uma!
Hão-de lati-La por sina!
Agora quero vivê-La!
Hei-de Poeta cantá-La em Gala sonora e dina
Hei-de Glória desanuviá-La!
Hei-de Guindaste içá-La Esfinge
da Vala pedestre onde Me querem rir!
Hei-de trovão-clarim levá-La Luz
às Almas-Noites do Jardim das Lágrimas!
Hei-de bombo rufá-La pompa de Pompeia
nos Funerais de Mim!
Hei-de Alfange-Mahoma
cantar Sodoma na Voz de Nero!
Hei-de ser Fuas sem Virgem do Milagre,
hei-de ser galope opiado e doido, opiado e doido...
Hei-d' Átila, hei-de Nero, hei-de Eu,
cantar Atila, cantar Nero, cantar Eu!
Sou Narciso do Meu Ódio!
- O Meu ódio é Lanterna de Diógenes,
é cegueira de Diógenes,
é cegueira da Lanterna!
(O Meu Ódio tem tronos d' Herodes,
histerismos de Cleópatra, perversões de Catarina!)
O Meu ódio é Dilúvio Universal sem Arcas de Noé, só
Dilúvio Universal!
e mais Universal ainda:
Sempre a crescer, sempre a subir...
até apagar o Sol!
Sou trono de Abandono, mal-fadado,
nas iras dos Bárbaros meus Avós.
Oiço ainda da Berlinda d'Eu ser sina
gemidos vencidos de fracos,
ruídos famintos de saque,
ais distantes de Maldição eterna em Voz antiga!
Sou ruínas rasas, inocentes
como as asas de rapinas afogadas.
Sou relíquias de mártires impotentes
sequestradas em antros do Vício.
Sou clausura de Santa professa,
Mãe exilada do Mal, Hóstia d'Angústia no Claustro,
freira demente e donzela,
virtude sozinha da cela
em penitência do sexo!
Sou rasto espezinhado d'Invasores
que cruzaram o meu sangue, desvirgando-o.
Sou a Raiva atávica dos Távoras,
o sangue bastardo de Nero,
o ódio do último instante
do Condenado inocente!
A podenga do Limbo mordeu raivosa
as pernas nuas da minh'Alma sem baptismo...
Ah! que eu sinto, claramente,
que nasci de uma praga de ciúmes!
Eu sou as sete pragas sobre o Nilo e a Alma dos Bórgias a penar!
Tu, que te dizes Homem!
Tu, que te alfaiatas em modas
e fazes cartazes dos fatos que vestes
p'ra que se não vejam as nódoas de baixo!
Tu, qu'inventaste as Ciências e as Filosofias,
as Políticas, as Artes e as Leis,
e outros quebra-cabeças de sala
e outros dramas de grande espectáculo
Tu, que aperfeiçoas sabiamente a arte de matar.
Tu, que descobriste o cabo da Boa-Esperança
e o Caminho Marítimo da índia
e as duas Grandes Américas,
e que levaste a chatice a estas Terras
e que trouxeste de lá mais gente p'raqui
e qu'inda por cima cantaste estes Feitos...
Tu, qu'inventaste a chatice e o balão,
e que farto de te chateares no chão
te foste chatear no ar,
e qu'inda foste inventar submarinos
p'ra te chateares também por debaixo d'água,
Tu, que tens a mania das Invenções e das Descobertas
e que nunca descobriste que eras bruto,
e que nunca inventaste a maneira de o não seres
Tu consegues ser cada vez mais besta
e a este progresso chamas Civilização!
Vai vivendo a bestialidade na Noite dos meus olhos,
vai inchando a tua ambição-toiro
'té que a barriga te rebente rã.
Serei Vitória um dia -Hegemonia de Mim!
e tu nem derrota, nem morto, nem nada.
O Século-dos-Séculos virá um dia
e a burguesia será escravatura
se for capaz de sair de Cavalgadura!
Hei-de, entretanto, gastar a garganta
a insultar-te, ó besta!
Hei-de morder-te a ponta do rabo
e por-te as mãos no chão, no seu lugar!
Ahi! Saltimbanco-bando de bandoleiros nefastos!
Quadrilheiros contrabandistas da Imbecilidade!
Ahi! Espelho-aleijão do Sentimento,
macaco-intruja do Alma-realejo!
Ahi! macrelle da Ignorância!
Silenceur do Génio-Tempestade!
Spleen da Indigestão!
Ahi! meia-tigela, travão das Ascensões!
Ahi! povo judeu dos Cristos mais que Cristo!
Ó burguesia! Ó ideal com i pequeno
Ó ideal ricócó dos Mendes e Possidonios
Ó cofre d'indigentes
Cuja personalidade é a moral de todos!
Ó geral da mediocridade!
Ó claque ignóbil do Vulgar, protagonista do normal!
Ó Catitismo das lindezas d'estalo!
Ahi! lucro do fácil,
cartilha-cabotina dos limitados, dos restringidos!
Ai! dique-impecilho do Canal da Luz!
Ó coito d'impotentes
a corar ao sol no riacho da Estupidez!
Ahi! Zero-barómetro da Convicção!
bitola dos chega, dos basta, dos não quero mais!
Ahi! Plebeísmo Aristocratizado no preço do panamá!
erudição de calça de xadrez!
competência de relógio d'oiro
e correntes com suores do Brasil,
e berloques de cornos de búfalo!
E eu vivo aqui desterrado e Job
da Vida-gémea d'Eu ser feliz!
E eu vivo aqui sepultado vivo
na Verdade de nunca ser Eu!
Sou apenas o Mendigo de Mim-Próprio,
órfão da Virgem do meu sentir.
E como queres que eu faça fortuna
se Deus, por escárnio, me deu Inteligência,
e não tenho sequer, irmãs bonitas
nem uma mãe que se venda para mim?
(Pesam quilos no Meu querer
as salas de espera de Mim.

Tu chegas sempre primeiro...
Eu volto sempre amanhã...
Agora vou esperar que morras.
Mas tu és tantos que não morres...
Vou deixar d'esp'rar que morras
- Vou deixar d'esp'rar por mim!)
Ah! que eu sinto, claramente, que nasci
de uma praga de ciúmes!
Eu sou as sete pragas sobre o Nilo
e a alma dos Bórgias a penar!
E tu, também, vieille-roche, castelo medieval
fechado por dentro das tuas ruínas!
Fiel epitáfio das crónicas aduladoras!
E tu também ó sangue azul antigo
que já nasceste co'a biografia feita!
Ó pajem loiro das cortesias-avozinhas!
Ó pergaminho amarelo-múmia
das grandes galas brancas das paradas
e das Vitórias dos torneios-lotarias
com donzelas-glórias!
Ó resto de cetros, fumo de cinzas!
Ó lavas frias do Vulcão pirotécnico
com chuvas d'oiros e cabeleiras prateadas!
Ó estilhacos heráldicos de Vitrais
despegados lentamente sobre o tanque do silêncio!
Ó Cedro secular
debruçado no muro da Quinta sobre a estrada
a estorvar o caminho da Mala-posta!
E vós também, ó Gentes de Pensamento,
ó Personalidades, ó Homens!
Artistas de todas as partes, cristãos sem pátria,
Cristos vencidos por serem só Um!
E vós, ó Génios da Expressão,
e vós também, ó Génios sem Voz!
ó além-infinito sem regressos, sem nostalgias,
Espectadores gratuitos do Drama-Imenso de Vós-Mesmos!
Profetas clandestinos
do Naufrágio de Vossos Destinos!
E vós também, teóricos-irmãos-gémeos
do meu sentir internacional!
Ó escravos da Independência!
Vós que não tendes prémios
por se ter passado a vez de os ganhardes,
e famintos e covardes
entreteis a fome em revoltas do Mau-Génio
no boémia da bomba e da pólvora!
E tu também, ó Beleza Canalha
Co'a sensibilidade manchada de vinho!
Ó lírio bravo da Floresta-Ardida
à meia-porta da tua Miséria!
Ó Fado da Má-Sina
com ilustrações a giz
e letra da Maldição!
Ó fera vadia das vielas açaimada na Lei!
Ó xale e lenço a resguardar a tísica!
Ó franzinas do fanico
co'a sífilis ao colo por essas esquinas!
Ó nu d'aluguer
na meia-luz dos cortinados corridos!
Ó oratório da meretriz a mendigar gorjetas
p'rá sua Senhora da Boa-Sorte!
Ó gentes tatuadas do calão!
carro vendado da Penitenciária!
E tu também, ó Humilde, ó Simples!
enjaulados na vossa ignorância!
Ó pé descalço a calejar o cérebro!
Ó músculos da saúde de ter fechada a casa de pensar!
Ó alguidar de açorda fria
na ceia-fadiga da dor-candeia!
Ó esteiras duras pra dormir e fazer filhos!
Ó carretas da Voz do Operário
com gente de preto a pé e filarmónica atrás!
Ó campas rasas, engrinaldadas,
com chapões de ferro e balões de vidro!
Ó bota rota de mendigo abandonada no pó do caminho!
Ó metamorfose-selvagem das feras da cidade!
Ó geração de bons ladrões crucificados na Estupidez!
Ó sanfona-saloia do fandango dos campinos!
Ó pampilho das Lezírias inundadas de Cidade!
ó trouxa d'aba larga da minha lavadeira,
Ó rodopio azul da saia azul de Loures!
E vós varinas que sabeis a sal
as Naus da Fenícia ainda não voltaram?!
E vós também, ó moças da Província
que trazeis o verde dos campos
no vermelho das faces pintadas!
E tu também, ó mau gosto
co'a saia de baixo a ver-se
e a falta d'educação!
Ó oiro de pechisbeque (esperteza dos ciganos)
a luzir no vermelho verdadeiro da blusa de chita!
Ó tédio do domingo com botas novas
e música n'Avenida!
Ó santa Virgindade
a garantir a falta de lindeza!
Ó bilhete postal ilustrado
com aparições de beijos ao lado!
E vós ó gentes que tendes patrões,
autómatos do dono a funcionar barato!
Ó criadas novas chegadas de fora p'ra todo o serviço!
Ó costureiras mirradas,
emaranhadas na vossa dor!
Ó reles caixeiros, pederastas do balcão,
a quem o patrão exige modos lisonjeiros
e maneiras agradáveis pròs fregueses!
Ó Arsenal fadista de ganga azul e coco socialista!
Ó saídas pôr-do-sol das Fábricas d'Agonia!
E vós também, ó toda a gente, que todos tendes patrões!
E vós também, nojentos da Política
que explorais eleitos o Patriotismo!
Macrots da Pátria que vos pariu ingénuos
e vos amortalha infames!
E vós também, pindéricos jornalistas
que fazeis cócegas e outras coisas
à opinião pública!
E tu também roberto fardado:
Futrica-te espantalho engalonado,
apoia-te das patas de barro,
Larga a espada de matar
e põe o penacho no rabo!
Ralha-te mercenário, asceta da Crueldade!
Espuma-te no chumbo da tua Valentia!
Agoniza-te Rilhafoles armado!
Desuniversidadiza-te da doutorança da chacina,
da ciencia da matança!
Groom fardado da Negra,
pária da Velha!
Encaveira-te nas esporas luzidias de seres fera!
Despe-te da farda,
desenfia-te da Impostura, e põe-te nu, ao léu
que ficas desempregado!
Acouraça-te de senso,
vomita de vez o morticínio,
enche o pote de raciocínio,
aprende a ler corações,
que há muito mais que fazer
do que fazer revoluções!
Ruína com tuas próprias peças-colossos
as tuas próprias peças colossais,
que de 42 a 1 é meio-caminho andado!
Rebusca no seres selvagem
no teu cofre do extermínio
o teu calibre máximo!
Põe de parte a guilhotina,
dá férias ao garrote!
Não dês língua aos teus canhões,
nem ecos às pistolas,
nem vozes às espingardas!
– São coisas fora de moda!
Põe-te a fazer uma bomba
que seja uma bomba tamanha
que tenha dez raios da Terra.
Põe-lhe dentro a Europa inteira,
os dois pólos e as Américas,
a Palestina, a Grécia, o mapa
e, por favor, Portugal!
Acaba de vez com este planeta,
faze-te Deus do Mundo em dar-lhe fim!
(Há tanta coisa que fazer, Meu Deus!
e esta gente distraída em guerras!)
Eu creio na transmigração das almas
por isto de Eu viver aqui em Portugal.
Mas eu não me lembro o mal que fiz
durante o Meu avatar de burguês.
Oh! Se eu soubesse que o Inferno
não era como os padres mo diziam:
uma fornalha de nunca se morrer...
mas sim um Jardim da Europa
à beira-mar plantado...
Eu teria tido certamente mais juízo,
teria sido até o mártir São Sebastião!
E inda há quem faça propaganda disto:
a pátria onde Camões morreu de fome
e onde todos enchem a barriga de Camões!
Se ao menos isto tudo se passasse
numa Terra de mulheres bonitas!
Mas as mulheres portuguesas
são a minha impotência!
E tu, meu rotundo e pançudo-sanguessugo,
meu desacreditado burguês apinocado
da rua dos bacalhoeiros do meu ódio
co'a Felicidade em casa a servir aos dias!
Tu tens em teu favor a glória fácil
igual à de outros tantos teus pedaços
que andam desajuntados neste Mundo,
desde a invenção do mau cheiro,
a estorvar o asseio geral.
Quanto mais penso em ti, mais tenho Fé e creio
que Deus perdeu de vista o Adão de barro
e com pena fez outro de bosta de boi
por lhe faltar o barro e a inspiração!
E enquanto este Adão dormia
os ratos roeram-lhe os miolos,
e das caganitas nasceu a Eva burguesa!
Tu arreganhas os dentes quando te falam d'Orpheu
e pões-te a rir, como os pretos, sem saber porquê.
E chamas-me doido a Mim
que sei e sinto o que Eu escrevi!
Tu que dizes que não percebes;
rir-te-has de não perceberes?
Olha Hugo! Olha Zola, Cervantes e Camões,
e outros que não são nada por te cantarem a ti!
Olha Nietzche! Wilde! Olha Rimbaub e Dowson!
Cesário, Antero e outros tantos mundos!
Beethoven, Wagner e outros tantos génios
que não fizeram nada,
que deixaram este mundo tal qual!
Olha os grandes o que são estragados por ti!
O teu máximo é ser besta e ter bigodes.
A questão é estar instalado.
Se te livras de burguês e sobes a talento, a génio,
a seres alguém,
o Bem que tu fizeres é um décimo de seres fera!
E de que serve o livro e a ciência
se a experiência da vida
é que faz compreender a ciência e o livro?
Antes não ter ciências!
Antes não ter livros!
Antes não ter Vida!
Eu queria cuspir-te a cara e os bigodes,
quando te vejo apalermado p'las esquinas
a dizeres piadas às meninas,
e a gostares das mulheres que não prestam
e a fazer-lhes a corte
e a apalpar-lhes o rabo,
esse tão cantado belo cu
que creio ser melhor o teu ideal
que a própria mulher do cu grande!
E casaste-te com Ela,
porque o teu ideal veio pegado a Ela,
e agora à brocha limpas a calva em pinga
à coca de cunhas p'ró Cunha examinador
do teu décimo nono filho
dezanove vezes parvo!
(É o caso mais exemplar de Constância e fidelidade
a tua história sexual co'a Felisberta,
desde o teu primogénito tanso
'té ao décimo nono idiota.)
'Té no matrimónio te maldigo, infame cobridor!
Espécie de verme das lamas dos pântanos
que de tanto se encharcar em gozos
o seu corpo se atrofiou
e o sexo elefantizado foi todo o seu corpo!
Em toda a parte tu és o admirador
e em toda a parte a tua ignorância
tem a cumplicidade da incompetência
dos que te falam 'té dos lugares sagrados.
Sim! Eu sei que tu és juiz
e qu'inda ontem prometeste a tua amante,
despedindo-a num beijo de impotente,
a condenação dos réus que tivesses
se Ela faltasse à matinée da Boa-Hora!
Pulha! E és tu que do púlpito
d'essa barriga d'Água da Curia
dás a ensinança de trote
aos teus dezanove filhos?!
Cocheiros, contai: dezanove!!!
Zute! bruto-parvo-nada
que Me roubaste tudo:
'té Me roubaste a Vida
e não Me deixaste nada!
nem Me deixaste a Morte!
Zute! poeira-pingo-micróbio
que gemes pequeníssimos gemidos gigantes
grávido de uma dor profeta colossal.
Zute! elefante-berloque parasita do não presta!
Zute! bugiganga-celulóide-bagatela!
Zute, besta!
Zute, bácoro!!
Zute, merda!!!
Em toda a parte o teu papel é admirar,
mas (caso inf'liz)
nunca acertas numa admiração feliz.
Lês os jornais e admiras tudo do princípio ao fim
e se por desgraça vem um dia sem jornais,
tens de ficar em casa nos chinelos
porque nesse dia, felizmente,
não tens opinião pra levares à rua.
Mas nos outros dias lá estás a discutir.
É que a Natureza é compensadora:
quem não tem dinheiro p'ra ir ao Coliseu
deve ter cá fora razões p'ra se rir.
Só te oiço dizer dos outros
a inveja de seres como eles.
Nem ao menos, pobre fadista,
a veleidade de seres mais bruto?
Até os teus desejos são avaros
como as tuas unhas sujas e ratadas.
Ó meu gordo pelintrão,
água-morna suja, broa do outro v'rao!
Os homens são na proporção dos seus desejos
e é por isso que eu tenho a Concepção do Infinito...
Não te cora ser grande o teu avô
e tu apenas o seu neto, e tu apenas o seu esperma?
Não te dói Adão mais que tu?
Não te envergonha o teres antes de ti
outros muito maiores que tu?
Jamais eu quereria vir a ser um dia
o que o maior de todos já o tivesse sido
eu quero sempre muito mais
e mais ainda muito pr'além-demais-Infinito...
Tu não sabes, meu bruto, que nós vivemos tão pouco
que ficamos sempre a meio-caminho do Desejo?
Em toda a parte o bicho se propaga,
em toda a parte o nada tem estalagem.
O meu suplício não é somente de seres meu patrício
ou o de ver-te meu semelhante,
tu, mesmo estrangeiro, és besta bastante.
Foi assim que te encontrei na Rússia
como vegetas aqui e por toda a parte,
e em todos os ofícios e em todas as idades.
Lá suportei-te muito! Lá falavas russo
e eu só sabia o francês.
Mas na França, em Paris - a grande capital,
apesar de fortificada,
foi assolada por esta espécie animal.
E andam p'los cafés como as pessoas
e vestem-se na moda como elas,
e de tal maneira domésticos
que até vão às mulheres
e até vão aos domésticos.
Felizmente que na minha pátria,
a minha verdadeira mãe, a minha santa Irlanda,
apenas vivi uns anos d'Infância,
apenas me acodem longinquamente
as festas ensuoradas do priest da minha aldeia,
apenas ressuscitam sumidamente
as asfixias da tísica-mater,
apenas soam como revoltas
as pistolas do suicídio de meu pai,
apenas sinto infantilmente
no leito de uma morta
o gelo de umas unhas verdes,
um frio que não é do Norte,
um beijo grande como a vida de um tísico a morrer.
Ó Deus! Tu que m'os levaste é que sabias
o ódio que eu lhes teria
se não tivessem ficado por ali!
Mas antes, mil vezes antes, aturar os burgueses da My Ireland
que estes desta Terra
que parece a pátria deles!
Ó Horror! Os burgueses de Portugal
têm de pior que os outros
o serem portugueses!
A Terra vive desde que um dia
deixou de ser bola do ar
p'ra ser solar de burgueses.
Houve homens de talento, génios e imperadores.
Precisaram-se de ditadores,
que foram sempre os maiores.
Cansou-se o mundo a estudar
e os sábios morreram velhos
fartos de procurar remédios,
e nunca acharam o remédio de parar.
E inda eu hoje vivo no século XX
a ver desfilar burgueses
trezentas e sessenta e cinco vezes ao ano,
e a saber que um dia
são vinte e quatro horas de chatice
e cada hora sessenta minutos de tédio
e cada minuto sessenta segundos de spleen!
Ora bolas para os sábios e pensadores!
Ora bolas para todas as épocas e todas as idades!
Bolas pròs homens de todos os tempos,
e prà intrujice da Civilização e da Cultura!
Eu invejo-te a ti, ó coisa que não tens olhos de ver!
Eu queria como tu sentir a beleza de um almoço pontual
e a f'licidade de um jantar cedinho
co'as bestas da família.
Eu queria gostar das revistas e das coisas que não prestam
porque são muitas mais que as boas
e enche-se o tempo mais!
Eu queria, como tu, sentir o bem-estar
que te dá a bestialidade!
Eu queria, como tu, viver enganado da vida e da mulher,
e sem o prazer de seres inteligente pessoalmente!
Eu queria, como tu, não saber que os outros não valem nada
p'ra os poder admirar como tu!
Eu queria que a vida fosse tão divinal
como tu a supões, como tu a vives!
Eu invejo-te, ó pedaço de cortiça
a boiar à tona d'água, à mercê dos ventos,
sem nunca saber que fundo que é o Mar!
Olha para ti!
Se te não vês, concentra-te, procura-te!
Encontrarás primeiro o alfinete
que espetaste na dobra do casaco,
e depois não percas o sítio,
porque estás decerto ao pé do alfinete.
Espeta-te nele para não te perderes de novo,
e agora observa-te!
Não te escarneças! Acomoda-te em sentido!
Não te odeies ainda qu'inda agora começaste!
Enioa-te no teu nojo, mastodonte!
Indigesta-te na palha dessa tua civilização!
Desbesunta te dessa vermência!
Destapa a tua decência, o teu imoral pudor!
Albarda te em senso! Estriba-te em Ser!
Limpa-te do cancro amarelo e podre!
Do lazareto de seres burro!
Desatrela-te do cérebro-carroça!
Desata o nó-cego da vista!
Desilustra-te, descultiva-te, despole-te,
que mais vale ser animal que besta!
Deixa antes crescer os cornos que outros adornos da Civilização!
Queria-te antes antropófago porque comias os teus
– talvez o mundo fosse Mundo
e não a retrete que é!
Ahi! excremento do Mal, avergonha-te
no infinitamente pequeno de ti com o teu papagaio:
Ele fala como tu e diz coisas que tu dizes
e se não sabe mais é por tua culpa, meu mandrião!
E tu, se não fossem os teus pais,
davas guinchos, meu saguim!
- Tu és o papagaio de teus pais!
Mas há mais, muito mais
que a tua ignorância-miopia te cega.
Empresto-te a minha Inteligência.
Vê agora e não desmaies ainda!
Então eu não tinha razão?
P'ra que me chamavas doido
quando eu m'enjoava de ti?
Ah! Já tens medo?!
Porque te rias da vida
e ias ensuorar as vrilhas nos fauteuils das revistas
co'as pernas fogo de vistas
das coristas de petróleo?
Porque davas palmas aos compéres e actorecos
pelintras e fantoches
antes do palco, no palco e depois do palco?
Ora dize-Me com franqueza:
Era por eles terem piada?
Então era por a não terem
Ah! Era p'ra tu teres piada, meu bruto?!
Porque mandaste de castigo os teus filhos p'r'ás Belas-Artes
quando ficaram mal na instrução primária?
Porque é que dizes a toda a gente que o teu filho idiota
estuda p'ra poeta?
Porque te casaste com a tua mulher
se dormes mais vezes co'a tua criada?
Porque bateste no teu filho quando a mestra
te contou as indecências na aula?
Não te lembras das que tu fizeste
com a própria mestra de moral?
Ou queres tu ser decente,
tu, que tens dezanove filhos?!
Porque choraste tanto quando te desonraram a filha?
Porque lhe quiseste matar o amante?
Não achas isto natural? Não achas isto interessante?
Porque não choraste também pelo amante?...
Deixa! Deixa! Eu não te quero morto com medo de ti-próprio!
Eu quero-te vivo, muito vivo, a sofrer!
Não te despetes do alfinete!
Eu abro a janela pra não cheirar mal!
Galopa a tua bestialidade
na memória que eu faço dos teus coices,
cavalga o teu insecticismo na tua sela de D. Duarte!
Arreia-te de Bom-Senso um segundo! peço-te de joelhos.
Encabresta-te de Humanidade
e eu passo-te uma zoologia para as mãos
p'ra te inscreveres na divisão dos Mamíferos.
Mas anda primeiro ao Jardim Zoológico!
Vem ver os chimpanzés! Acorpanzila-te neles se te ousas!
Sagra-te de cu-azul a ver se eles te querem!
Lá porque aprendeste a andar de mãos no ar
não quer dizer que sejas mais chimpanzé que eles!
Larga a cidade masturbadora, febril,
rabo decepado de lagartixa,
labirinto cego de toupeiras,
raça de ignóbeis míopes, tísicos, tarados,
anémicos, cancerosos e arseniados!
Larga a cidade!
Larga a infâmia das ruas e dos boulevards
esse vaivém cínico de bandidos mudos
esse mexer esponjoso de carne viva
Esse ser-lesma nojento e macabro
Esse S ziguezague de chicote auto-fustigante
Esse ar expirado e espiritista...
Esse Inferno de Dante por cantar
Esse ruído de sol prostituído, impotente e velho
Esse silêncio pneumónico
de lua enxovalhada sem vir a lavadeira!
Larga a cidade e foge!
Larga a cidade!
Vence as lutas da família na vitória de a deixar.
Larga a casa, foge dela, larga tudo!
Nem te prendas com lágrimas, que lágrimas são cadeias!
Larga a casa e verás - vai-se-te o Pesadelo!
A família é lastro, deita-a fora e vais ao céu!
Mas larga tudo primeiro, ouviste?
Larga tudo!
– Os outros, os sentimentos, os instintos,
e larga-te a ti também, a ti principalmente!
Larga tudo e vai para o campo
e larga o campo também, larga tudo!
– Põe-te a nascer outra vez!
Não queiras ter pai nem mãe,
não queiras ter outros nem Inteligência!
A Inteligência é o meu cancro
eu sinto-A na cabeça com falta de ar!
A Inteligência é a febre da Humanidade
e ninguém a sabe regular!
E já há Inteligência a mais pode parar por aqui!
Depois põe-te a viver sem cabeça,
vê só o que os olhos virem,
cheira os cheiros da Terra
come o que a Terra der,
bebe dos rios e dos mares,
- põe-te na Natureza!
Ouve a Terra, escuta-A.
A Natureza à vontade só sabe rir e cantar!
Depois, põe-te a coca dos que nascem
e não os deixes nascer.
Vai depois pla noite nas sombras
e rouba a toda a gente a Inteligência
e raspa-lhos a cabeça por dentro
co'as tuas unhas e cacos de garrafa,
bem raspado, sem deixar nada,
e vai depois depressa muito depressa
sem que o sol te veja
deitar tudo no mar onde haja tubarões!
Larga tudo e a ti também!
Mas tu nem vives nem deixas viver os mais,
Crápula do Egoísmo, cartola d'espanta-pardais!
Mas hás-de pagar-Me a febre-rodopio
novelo emaranhado da minha dor!
Mas hás-de pagar-Me a febre-calafrio
abismo-descida de Eu não querer descer!
Hás-de pagar-Me o Absinto e a Morfina
Hei-de ser cigana da tua sina
Hei-de ser a bruxa do teu remorso
Hei-de desforra-dor cantar-te a buena-dicha
em águas fortes de Goya
e no cavalo de Tróia
e nos poemas de Poe!
Hei-de feiticeira a galope na vassoura
largar-te os meus lagartos e a Peçonha!
Hei-de Vara Magica encantar-te Arte de Ganir
Hei-de reconstruir em ti a escravatura negra!
Hei-de despir-te a pele a pouco e pouco
e depois na carne-viva deitar fel,
e depois na carne-viva semear vidros,
semear gumes,
lumes,
e tiros.
Hei-de gozar em ti as poses diabólicas
dos teatrais venenos trágicos do persa Zoroastro!
Hei-de rasgar-te as virilhas com forquilhas e croques,
e desfraldar-te nas canelas mirradas
o negro pendão dos piratas!
Hei-de corvo marinho beber-te os olhos vesgos!
Hei-de bóia do Destino ser em brasa
e tua náufrago das galés sem horizontes verdes!
E mais do que isto ainda, muito mais:
Hei-de ser a mulher que tu gostes,
hei-de ser Ela sem te dar atenção!
Ah! que eu sinto claramente que nasci
de uma praga de ciúmes.
Eu sou as sete pragas sobre o Nilo
e a Alma dos Bórgias a penar!...

José de Almada Negreiros, A Cena do Ódio, poema publicado na revista Portugal Futurista em 1917


por aqueles que morreram na estrada em mil novecentos e oitenta e seis, sofres ainda ou invejas?
















Fonte
quando as raízes da luz se enterrarem fundo na terra húmida esqueço-te: os cordões fazem estremecer e abrir toda a floresta da alma.
és a semente perdida que me obceca quando mergulho na escuridão, o peito e o colo em chamas de fome à tua procura.
quando as raízes da luz se enterrarem fundo na minha terra esqueço-te, a terra desfaz-se na luz e a eternidade morreu.
quando regressar, já não serei tua.



Emoção foi a primogénita. Nasceu bela, louca e sábia, com todos os dons, sendo nela os dons da visão e da cura os mais fortes. Possuía uma qualidade que a tornava amada e imprescindível: nunca se enganava.
Razão nasceu eras mais tarde, apenas para ser apoucada pela sua irmã mais velha. Desenvolveu-se a pulso, mas sempre inacabada, fria, cega e ignorante. A sua utilidade era desconhecida, apenas se tornava aparente quando a loucura tomava conta de sua irmã. Nessa altura, Razão parecia conseguir exercer algum controlo sobre ela. No entanto, vivia só e invejosa, desamada por todos.
Mas no dia em que Emoção se enganou pela primeira vez, Razão ganhou o direito de a matar.
E fê-lo, com uma crueldade inimaginável.


domingo, 22 de agosto de 2010

Âncora de carne
viva,
tensão-sangue.

E o mar
a crescer,
negro.

Um olhar
como sal
alheio, infante,
ferrado na pele da alma-
-amante,
mais do que vitral
não fere

desidrata remoto,
mural






Era uma vez uma fada muito pequenina. Tinha os cabelos prateados, compridos, os olhos verdes e usava um vestido azul safira, muito brilhante. As asas, delicadas, eram entre o verde água e o azul. Vivia nos jardins da nossa cidade. Tinha muito trabalho, pois era ela que pintava as folhas das árvores todas as estações, com cores diferentes e também era ela que pintava as pétalas das flores, as pintas encarnadas das joaninhas e o intrincado padrão das asas das borboletas. Mas ela sentia-se muito sozinha e triste, porque apesar de todo o trabalho que tinha, era tão pequenina, tão pequenina, que ninguém a via e, por isso, só por isso, ninguém nunca lhe agradecia pelo seu trabalho. Era mais pequenina até que as formigas, que também passavam por ela sem a ver, apesar de às vezes se dar ao trabalho de refrescar as folhas já meio mortas que transportavam para o formigueiro com um verde vivo, que lhes devolvia a seiva.

Um dia, estava ela empoleirada numa árvore, a pensar desistir de tanto esforço vão, quando viu um pequeno aranhiço a trepar pela árvore acima. Este aranhiço também era MUITO pequeno. Quase tão pequeno como ela. Quando o aranhiço chegou a meio da árvore, olhou para ela com os seus oito olhos e perguntou: - Como te chamas?A fadinha ficou muito espantada e estremeceu de felicidade, pois era a primeira vez que alguém dava por ela. - Chamo-me Dóriel., respondeu, na sua voz musical, que também ninguém ouvia, excepto agora o aranhiço, claro. E tu?- Não sei, nunca ninguém me viu antes, nunca ninguém me deu um nome.Então, a fadinha, encantada por ter finalmente encontrado um verdadeiro amigo, resolveu transformá-lo no Homem-Aranha. Do aranhiço desajeitado, surgiu um lindo rapaz, só com um par de olhos, muito vivos, as pernas compridas e muita força. E embora ele fosse muito grande e combatesse heroicamente o mal neste mundo, quando estava perto dela, ficava sempre pequenino, como ela, e ajudava-a a pintar as folhas das árvores todas as estações, verdes no verão e amarelas e encarnadas no outono, as pétalas das flores, as pintas encarnadas das joaninhas e o intrincado padrão das asas das borboletas. Aliás, foi assim que nasceram as borboletas castanhas, pois o Homem-Aranha não tinha muito jeito para desenhos complicados e quis desenhar borboletas parecidas com ele, quando ainda era um MUITO PEQUENO aranhiço.Quando terminavam juntos a pintura da estação, ele voltava a crescer e saltava das árvores, regressando à cidade.

E é por isso que, apesar de vivermos na cidade, temos ainda tanta cor à nossa volta e ainda por cima temos o Homem-Aranha para nos proteger.


terça-feira, 17 de agosto de 2010

Violentamente só
desfeito em louco
- nem um gato lunar
te arranha um pouco

Morreram-te na família
irmãos mais velhos
Restam-te retratos de vidro
e espelhos

Entre as fêmeas bendita
não te quis
As outras mataste
(Nem há sangue que te baste)

O chão do teus país
deu-te água e uma raiz
muitas pedras mas prisões

- Senhor Demónio dos Sós
quando ele morrer
onde o pões?

Luiza Neto Jorge
Esta mão que escreve a ardente melancolia
da idade
é a mesma que se move entre as nascenças da cabeça,
que à imagem do mundo aberta de têmpora
a têmpora
ateia a sumptuosidade do coração. A demência lavra
a sua queimadura desde os seus recessos negros
onde se formam
as estações até ao cimo,
nas sedas que se escoam com a largura
fluvial
da luz e a espuma, ou da noite e as nebulosas
e o silêncio todo branco.
Os dedos.
A montanha desloca-se sobre o coração que se alumia: a língua
alumia-se: O mel escurece dentro da veia
jugular talhando
a garganta. Nesta mão que escreve afunda-se
a lua, e de alto a baixo, em tuas grutas
obscuras, essa lua
tece as ramas de um sangue mais salgado
e profundo. E o marfim amadurece na terra
como uma constelação. O dia leva-o, a noite
traz para junto da cabeça: essa raiz de osso
vivo. A idade que escrevo
escreve-se
num braço fincado em ti, uma veia
dentro
da tua árvore. Ou um filão ardido de ponto a ponta
da figura cavada
no espelho. Ou ainda a fenda
na fronte por onde começa a estrela animal.
Queima-te a espaçosa
desarrumação das imagens. E trabalha em ti
o suspiro do sangue curvo, um alimento
violento cheio
da luz entrançada na terra. As mãos carregam a força
desde a raiz
dos braços a força
manobra os dedos ao escrever da idade, uma labareda
fechada, a límpida
ferida que me atravessa desde essa tua leveza
sombria como uma dança até
ao poder com que te toco. A mudança. Nenhuma
estação é lenta quando te acrescentas na desordem, nenhum
astro
é tao feroz agarrando toda a cama. Os poros
do teu vestido.
As palavras que escrevo correndo
entre a limalha. A tua boca como um buraco luminoso,
arterial.
E o grande lugar anatómico em que pulsas como um lençol lavrado.
A paixão é voraz, o silêncio
alimenta-se
fixamente de mel envenenado. E eu escrevo-te
toda
no cometa que te envolve as ancas como um beijo.
Os dias côncavos, os quartos alagados, as noites que crescem
nos quartos.
É de ouro a paisagem que nasce: eu torço-a
entre os braços. E há roupas vivas, o imóvel
relâmpago das frutas. O incêndio atrás das noites corta
pelo meio
o abraço da nossa morte. Os fulcros das caras
um pouco loucas
engolfadas, entre as mãos sumptuosas.
A doçura mata.
A luz salta às golfadas.
A terra é alta.
Tu és o nó de sangue que me sufoca.
Dormes na minha insónia como o aroma entre os tendões
da madeira fria. És uma faca cravada na minha
vida secreta. E como estrelas
duplas
consanguíneas, luzimos de um para o outro
nas trevas.


Herberto Helder

domingo, 15 de agosto de 2010

Sou casada com a Verdade.
Hipácia de Alexandria

Hipácia de Alexandria
Existiu em Alexandria uma mulher de nome Hipácia, filha do filósofo Teão, que foi tão longe na literatura e na ciência que ultrapassou todos os filósofos do seu tempo. Discípula da escola de Platão e Plotino, ensinava os princípios da filosofia aos seus alunos, muitos dos quais vinham de terras distantes para escutarem os seus ensinamentos. Com um grande auto-controlo e descontracção, que obteve como consequência do cultivo da sua mente, não raras vezes aparecia em público, na presença dos magistrados. Nem se coibia de comparecer numa assembleia de homens. Pois todos os homens a admiravam ainda mais devido à sua extraordinária dignidade e virtude. Mas até ela foi vítima da inveja política que ao tempo prevalecia. Ao manter diálogos frequentes com Orestes, foi caluniosamente relatado entre a populaça cristã que era ela que impedia Orestes de se reconciliar com o bispo. Alguns deles, impulsionados por um zelo feroz e fanático, cujo líder era um leitor [das escrituras] chamado Pedro, arrancaram-na da sua carruagem quando ela regressava a casa, arrastaram-na para o templo chamado Caesareum, onde lhe rasgaram as roupas e a apedrejaram (*) até à morte. Depois de rasgarem o seu corpo em pedaços, levaram os seus membros mutilados a um local chamado Cinaron e aí os queimaram. Este assunto trouxe não pequeno opróbrio quer a Cirilo, quer a toda a igreja Alexandrina. E certamente que nada poderá estar mais distante do espírito do Cristianismo que a permissão de massacres, lutas e acontecimentos de tal ordem. Isto aconteceu no mês de Março, durante a Quaresma, durante o quarto ano do episcopado de Cirilo, sob o décimo consulado de Honorius e o sexto de Teodósio.

Sócrates Escolástico, A vida de Hipácia, in História Eclesiástica

Nota: (*) a palavra grega original é ostrakois, literalmente conchas de ostras, mas a palavra também era aplicada a azulejos de tijolo usados nos telhados das casas.

quarta-feira, 11 de agosto de 2010

sei também que para ser uma escritora, não basta escrever. muitos escrevem e não o são. sei que sou uma escritora porque já escrevia antes de saber escrever. aqueles rabiscos sentada eu na secretária do meu avô paterno, a única memória daquela casa que me é agradável. o papel, a caneta e os rabiscos enlouquecidos, escrevo. repito-me, mas é mesmo assim, escrevo como respiro, são duas respirações e depois. seria incapaz de vender a minha respiração e nem sequer quero partilhá-la com os de fome insaciável. os que tudo têm e não têm nada. comem, comem, comem e estão sempre com fome. ou os outros, ou os outros. ou os outros, os outros. sou uma escritora, mas não sei bem o que isso é. a caneta, o papel, a respiração, calo no dedo indicador direito, porque sou dextra. primeiro o calo envergonhava-me, deformava-me os dedos, eram tão finos, pontiagudos, aquele calo. aquele calo sou eu. ainda lá está, apesar do teclado, as pontas dos dedos não criam calo, sem árvores a escrita não respira da mesma forma, a escrita e as árvores estão ligadas, amo o calo. como o calo dos troncos, os troncos, os ramos, têm calos daqueles, as árvores escrevem no ar que respiramos, são musas crísticas invisíveis, cada árvore tem um tronco único, os calos como impressões vivas, não digitais, vivas, onde estão os bloqueios sangram as palavras, há nós, filhos que não nasceram, sei lá se os meus rabiscos não diziam estas palavras ou outras, sempre quis dizer, estou aqui, mas não quero, ou quero, vim porque quis, cansada antes da luz terrestre por nascer, não precisam de me ver, mas as palavras queria que ficassem na memória colectiva, vêm da cruz vazia, eram traços longos, inclinados. não como runas, mas como veios de seiva, por vezes sangravam-me na boca, quando trincava pedras, os dentes caíam-me em sonhos durante a noite. nunca vi este mundo, há muito que não faço parte dele, das árvores sim, das pedras, por isso como a carne como se fosse pão, rejeito os frutos como alimento, deles só absorvo o aroma, o aroma puro da água e da terra, depois vejo o meu sorriso que gravaste na luz e penso. só tu me fazes sorrir assim, tu e a tua incapacidade com as máquinas humanas, quando te olho, simplesmente sorrio e sei. vim por ti, para estar perto e para te abandonar até que cresças. só tu consegues ver o meu sorriso mais belo, aquele que canta nos ramos das árvores e no peito das aves e no coração das sementes e dos furacões e dos vulcões e nos dentes dos carnívoros, nas barbatanas dos peixes, no zumbido dos insectos, nas patas dos lagartos, na areia dos desertos, na crista da ondas, nas tempestades solares, completo, não disse tudo, este mundo é unidimensional para esse sorriso. tinha saudades e vi-o na imagem minha que capturaste, colocaste-me em sintra fora deste mundo, onde sabes que te pertenço. aqui, não. só tu sabes colocar-me lá, nesse acabei de nascer onde sou feliz.
sou uma escritora, não sei bem o que isso é, mas sei que escrever é uma dádiva de nós aos outros e não um assalto e não um roubo e não uma tentativa ridículo de devorar o outro, jamais uma mentira, raramente uma técnica, não, escrever é sempre uma dádiva, é "sangue, suor e lágrimas" que de nós escorre para o mundo, por vezes esvai-se inutilmente como água no deserto, outras vezes cai em terra fértil, escrever é como estar na cruz e dizer, não quero, mas estou, porque eu sou a cruz. o calo.

segunda-feira, 2 de agosto de 2010

Sei que o homem lavava os cabelos como se fossem longos
Porque tinha uma mulher no pensamento
Sei que os lavava como se os contasse

Sei que os enxugava com a luz da mulher
Com os seus olhos muito claros voltados para o centro
Do amor, na operação poderosa
Do amor

Sei que cortava os cabelos para procurá-la
Sei que a mulher ia perdendo os vestidos cortados

Era um homem imaginado no coração da mulher que lavava
O cabelo no seu sangue

Na água corrente

Era um homem inclinado como o pescador nas margens para ouvir
E a mulher cantava para o homem respirar

Daniel Faria
Site oficial do poeta: Daniel Faria

 



Fotografia: Cavan Images

sábado, 24 de julho de 2010



A minha vida tornou-se subitamente insuportavelmente perfeita, as árvores ao crepúsculo ficam como sombras chinesas e os pássaros são traços desenhados com tinta-da-china, lembram-me as Ilhas de seios altos contra o mar. Sonhei com elas nas sombras chinesas e apareceram, perfeitas, simplesmente, com um barco debaixo dos calcanhares, o vento sob as axilas que eram como asas de uma catedral
Chegou a altura de partir, o meu coração está cansado, dia a dia bate mais devagar levo os meus cães comigo, é tudo e nada
Insuportavelmente perfeita, seria suportavelmente perfeita, não fossem as ancoras, as alantas [a minha alma é um spi de alantas soltas], os rizes [porquê rizada, não preciso], os lais de guia, os nós de oito, os nós direitos, o meu barco é diferente, não tem nós, as velas não se caçam, o mastro é suspenso em luz apontado ao céu, o corpo é de gaivota branca vegetariana, não ao encontro dos elefantes e das zebras, levo os meus cães comigo, mas cansada dos nós, muito cansada, o coração quase que pára, o sangue não corre, os rios, amo tanto o Verão que dói, odeio o inverno e tudo o que nele finge que nasce, sou criatura do fogo, da vida, do calor, quero lá saber das dívidas de vidas passadas, que fiz eu, afinal, a não ser largar lastro e pregar umas bofetadas nos mais ordinários e o que é isso, comparado com o mal
Perante o mal, o que é isso
Os ordinários escravos do mal, preguei-lhes umas bofetadas e depois nem merecem o fio da espada, a espada que me faz espelho, não gostas do espelho, pois não gostas, nem sequer deus algum mora em ti
Agora é escolher o mar, um mar pequeno, mediterrânico, com varanda de sombras chinesas e tinta-da-china, se for atlântico, Ilha, de seios altos contra o mar, espaço para os meus cães, que já foram os meus cavalos e eu fui, um dia, uma espécie de musaranho, que eles protegeram da fúria cega dos céus
Foi aí que aprendi a amar a Terra
 

 

sexta-feira, 23 de julho de 2010







Não sou feliz, nem poderia sê-lo nunca. A memória do mal acompanha-me como um cilício. As minhas ilusões lembram-me os frutos dos recantos sombrios: não amadurecem. 

Miguel Torga

sexta-feira, 16 de julho de 2010

O coração é
o tempo finito dos rios
vermelhos

Silencioso ruído
compasso em punho
fechado

Densidade permeável
em músculo-carne
apertado

Bebe da luz até à última
gota e pára
alucinado

segunda-feira, 12 de julho de 2010

Quando entre nós só havia
uma carta certa
a correspondência
completa
o trem os trilhos
a janela aberta
uma certa paisagem
sem pedras ou
sobressaltos
meu salto alto
em equilíbrio
o copo d’água
a espera do café


Ana Cristina Cesar

domingo, 4 de julho de 2010

Tantos físicos que nos vieram falar de amor. Talvez mais sussurrar do que falar. Einstein e Sagan, entre tantos. Às vezes penso que eles não podiam falar sobre isto e muito menos escrever, mas penso. Penso que foi isso que eles viram no coração da matéria-energia. Eles viram. E sussurraram. Quanto mais olhavam e mais equações se desenhavam nas suas mentes, menos viam e mais viam e pressentiam. No coração da ciência. No coração do conhecimento. Nos corações deles. Acho que foi por isso que, no final, eles se riram.

domingo, 20 de junho de 2010

Ânfora, vaso, cálice… O que quer que fosse, quebrou-se, em milhares de pequenos pedaços pontiagudos, como ínfimos diamantes distorcidos por forças inconcebíveis, mais o pó entre eles. Olho agora para as mãos vazias, espantada, sem saber como escorregou. Escorregou. Olho-os, como pequenas lágrimas desfeitas, e o pior nem é o pó entre eles, irrecuperável, é a água e a luz que continham. Perdidas. Ajoelho-me no chão e seguro pedaços do delicado invólucro na mão direita, enquanto com o dedo indicador da mão esquerda desenho pequenas serpentes no pó. Uma nuvem brilhante ergue-se do solo e desvanece-se no ar. A perda é tão imensa, tão infinitamente inalcançável pela mente, tão muda, que nada sinto. Ânfora, vaso ou cálice? Até a forma vai desaparecendo na memória e depois os cacos desfazem-se em pó, e mais pó e mais serpentes entre o pó e depois as serpentes tornam-se cada vez mais finas, como fios de seda e desaparecem, pois já nem o pó ali está. Ficam as mãos vazias. Olho-as de novo, tão pequenas, as minhas mãos, os dedos pontiagudos. Tão pequenas. O que posso segurar com elas? Olho em volta. Nada. Ergo-me e olho mais longe. Nada, nada, nada. Não há nada neste mundo que eu possa ou queira segurar. Só esta ideia, que não devia ter deixado cair… o quê?
Olho agora para o mundo inteiro, vejo tudo, o infinitamente grande e o infinitamente pequeno, é enorme o mundo e tudo nele tão grande, para dentro e para fora, sem fim, fractal, fracturado. Não quero nada deste mundo.Só queria o que continha o... cálice? Escorregou. A perda é muda. Regresso então às minhas mãos, com uma agarro a outra e sorrio. Entre elas surge de novo água e luz. Mergulho inteira nas minhas mãos e crio um novo mundo. Fractal, intacto.

 

Os grandes albatrozes, do género Diomedea têm a maior envergadura de asa de qualquer espécie não-extinta. Das 21 espécies de albatroz reconhecidas pela União Internacional para a Conservação da Natureza e dos Recursos Naturais (IUCN), 19 estão ameaçadas de extinção. Estabelecem relações monogâmicas entre macho e fêmea que duram até ao fim da vida.

Fonte: Wikipedia

sexta-feira, 18 de junho de 2010

Não gostava de Saramago, eu. Não por alguma razão em especial, mas por um erro de educação que me ficou. Em minha casa, não se gostava de Saramago. E o pior que dele se dizia era que não sabia escrever. Por isso, nunca me interessei pelo homem, ou pela sua obra. Coisa estranha que, em mim, que sempre fui do contra, não é normal acontecer. Criei contra ele um preconceito inconsciente e retirei-o do meu mundo. Um dia, por causa de um outro alguém que muito admirava o escritor, vi o preconceito. Vi também a minha profunda ignorância do escritor e do homem. E fiquei curiosa. Fui comprar alguns dos seus livros e comecei a ler. Ao contrário de muitos que consideram a sua leitura difícil, achei-a fácil. Para mim, era fácil ler Saramago, porque aquela maneira fluida que ele tinha de escrever, era irmã da minha maneira de pensar e sentir. Senti-me em casa com os seus livros, apreciei a sua ironia, a sua profundidade, a sua liberdade de pensamento. Aborrecida com o meu preconceito, interessei-me também pelo homem, a quem tantos chamavam arrogante e acabei a admirá-lo, a sua liberdade de pensamento, a sua crítica feroz, a sua coragem e, também o seu amor. Aquilo que mais admiro nos outros é a liberdade e o amor. E Saramago, diga-se dele o que se disser, tinha muito de ambos. Saramago podia ter sido um meu amigo. Por isso, desejo-lhe boa viagem, deixando aqui um momento dele.

No dia seguinte ninguém morreu. o facto, por absolutamente contrário às normas da vida, causou nos espíritos uma perturbação enorme, efeito em todos os aspectos justificado, basta que nos lembremos de que não havia notícia nos quarenta volumes da história universal, nem ao menos um caso para amostra, de ter alguma vez ocorrido fenómeno semelhante, passar-se um dia completo, com todas as suas pródigas vinte e quatro horas, contadas entre diurnas e nocturnas, matutinas e vespertinas, sem que tivesse sucedido um falecimento por doença, uma queda mortal, um suicídio levado a bom fim, nada de nada, pela palavra nada.
[...]
No comunicado oficial, finalmente difundido já a noite ia adiantada, o chefe do governo ratificava que não se haviam registado quaisquer defunções em todo o país país teve de viver até hoje, não se trata disso, De que se trata então, eminência, é a todos os respeitos deplorável que, ao redigir a declaração que acabei de escutar, o senhor primeiro-ministro não se tenha lembrado daquilo que constitui o alicerce, a viga mestra, a pedra angular, a chave de abóbada da nossa santa religião, eminência, perdoe-me, temo não compreender aonde quer chegar, Sem morte, ouça-me bem, senhor primeiro-ministro, sem morte não há ressurreição, e sem ressurreição não há igreja, Ó diabo, não percebi o que acaba de dizer, repita, por favor, estava calado, eminência, provavelmente terá sido alguma interferência causada pela electricidade atmosférica, pela estática, ou mesmo um problema de cobertura, o satélite às vezes falha, dizia vossa eminência que, Dizia o que qualquer católico, e o senhor não é uma excepção, tem obrigação de saber, que sem ressurreição não há igreja, além disso, como lhe veio à cabeça que deus poderá querer o seu próprio fim, afirmá-lo é uma ideia absolutamente sacrílega, talvez a pior das blasfémias, eminência, eu não disse que deus queria o seu próprio fim, De facto, por essas exactas palavras, não, mas admitiu a possibilidade de que a imortalidade do corpo resultasse da vontade de deus, não será preciso ser-se doutorado em lógica transcendental para perceber que quem diz uma coisa, diz a outra, eminência, por favor, creia-me, foi uma simples frase de efeito destinada a impressionar, um remate de discurso, nada mais, bem sabe que a política tem destas necessidades, Também a igreja as tem, senhor primeiro-ministro, mas nós ponderamos muito antes de abrir a boca, não falamos por falar, calculamos os efeitos à distância, a nossa especialidade, se quer que lhe dê uma imagem para compreender melhor, é a balística, estou desolado, eminência, no seu lugar também o estaria. Como se estivesse a avaliar o tempo que a granada levaria a cair, o cardeal fez uma pausa, depois, em tom mais suave, mais cordial, continuou, Gostaria de saber se o senhor primeiro-ministro levou a declaração ao conhecimento de sua majestade antes de a ler aos meios de comunicação social, naturalmente, eminência, tratando-se de um assunto de tanto melindre, e que disse o rei, se não é segredo de estado, pareceu-lhe bem, Fez algum comentário ao terminar, estupendo, estupendo, quê, Foi o que sua majestade me disse, estupendo, Quer dizer que também blasfemou [...].

José Saramago, in Intermitências da Morte

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