as almas, os pássaros

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as almas, os pássaros

as almas, os pássaros

domingo, 20 de setembro de 2009

A nossa vida quotidiana está sempre a ser bombardeada pelos acasos. Mais exactamente, por encontros fortuitos entre as pessoas e os acontecimentos, ou seja, por aquilo a que costumamos chamar coincidências. Há uma coincidência quando dois acontecimentos inesperados se produzem ao mesmo tempo, quando se encontram um com o outro.[...] Para que um amor se torne inesquecível é preciso que, desde o primeiro momento, os acasos se reúnam nele como pássaros pousando nos ombros de São Francisco de Assis.
Não há, portanto, razão nenhuma para censurar aos romances o seu fascínio pelos misteriosos cruzamentos dos acasos, mas há boas razões para censurar o homem por ser cego a esses acasos na sua vida quotidiana e assim privar a vida da sua dimensão de beleza.
[...]
O acaso tem seus sortilégios, a necessidade não. Para que um amor seja inesquecível, é preciso que os acasos se encontrem nele desde o primeiro instante como os pássaros nos ombros de são Francisco de Assis.

Milan Kundera, in A insustentável leveza de ser



E dizia eu hoje a mim mesma que foram apenas coincidências, apenas isso, coincidências. Cruéis e inesperadas coincidências. E vinguei-me. Matei todos os pássaros.




antigamente, quando escrevia, deixava entrever minha ternura
mas com muito medo. queria que todos os meus romances
cheirassem a sangue e viessem rotulados com o carimbo de:
machos pra burro. foi preciso que chegasse aos quarenta anos
para perder todo o terror de minha ternura a derramar por minhas
mãos que queimam de carinho (quase sempre sem ter ninguém
para o receber) a simplicidade deste meu livro. leia-o quem quiser.
de uma coisa estou certo: não tenho nada de que me desculpar
perante o público. apresento, pois, rosinha, minha canoa

José Mauro de Vasconcelos, introdução ao livro

Excerto do capítulo terceiro, olhos vegetais
[...]

impressionante o cheiro de terra que comprimia o seu corpo de semente. no começo, quando o vento a lançara sobre o solo, tinha algum movimento, mas depois o mesmo vento, como se cumprisse uma missão, viera rodopiando, até a cobrir de areia. aos poucos foi conseguindo respirar, até se acostumar com aquele aprisionamento. alguma coisa garantia não durar muito... uma angústia enorme invadia toda a insignificância do seu ser, porque a terra, sempre escura, não contava nada do que se passava do lado de fora. verdade era que tinha saudade do sol e dos cantos dos pássaros; entretanto, acalmava-se e tentava compreender que aquele mistério fazia parte necessariamente de sua transformação.

e os dias iam passando, compridos e iguais, aumentando cada vez mais as horas de calor. as vezes, vermes escorregadios tocavam no seu corpo nervoso e isso fazia com que desejasse voltar ao mundo antigo.

não podia falar porque a terra quente, abafando tudo, transformava suas palavras em silêncio. pensou em outras sementes aprisionadas, sofrendo também a mesma angústia da humilde espera.

até que um dia, uma absoluta calma substituiu seus pequenos frêmitos e uma espécie de sono paralisou-a; só foi despertada por um grande ruído. a terra estremecia de medo porque a natureza trovejava. sentiu o baque da chuva sobre o solo e o cheiro gostoso do chão que estava sendo molhado. depois... as gotas de chuva introduzindo-se, infiltrando-se, até ao âmago da terra... vinham cansadas da longa viagem feita do céu através do espaço zangado...

[...]




Gostava que a tivesses visto, a enorme ave branca que atravessou os mares nocturnos, ontem à noite. Brilhava na escuridão com uma luz muito suave e voava baixo, maior do que um airbus, mais leve do que uma pena, mais veloz do que a luz ou o pensamento, chegou tão depressa como só o sentimento pode chegar, cruzou os mares, todos os mares de todos os tempos, todas as noites de todos os dias, branca, tão branca na noite, um branco de lua virgem dos beijos dos meteoros.
Quando chegou a terra diminuiu de tamanho, entrou pela foz rio acima, a planar sobre as águas sujas que sob ela se agitavam, a ave trouxe o mar com ela, as águas ficaram limpas, os golfinhos vinham atrás, os dorsos prateados a cavalgarem as ondas, deixaram chamas verdes na superfície das águas, regressaram ao mar, a ave não. Com a sua bela cabeça de cisne gigante, o seu pescoço longo e macio, passou por cima do teu esconderijo, sei o que estavas a fazer, vi-o através dos olhos da ave, deixei-a pousar lá onde estavas, não chorei, pela primeira vez não chorei, adormeci dentro dos olhos pretos da ave, não sem antes ter tapado os espelhos com veludo azul, tapei os espelhos e então a ave escondeu o bico debaixo das asas, fechou os olhos pesados do veludo azul e adormeceu comigo lá dentro.
De madrugada, ambas tínhamos desaparecido.
Só gostava que tivesses visto a ave que fiz para ti.





Em memória do meu avô Manuel: Orgulho humano, qual és tu mais — feroz, estúpido ou ridículo?

IV
RECORDAÇÕES

Onde é que se escondeu enfraquecida a antiga fortaleza?
STO. EULÓGIO: Memorial dos Santos. Liv. 3.°

Presbitério de Carteia. À meia-noite dos idos de Dezembro de 748.

1
ERA por uma destas noites vagarosas do Inverno em que o brilho do céu sem lua é vivo e trémulo; em que o gemer das selvas é profundo e longo; em que a soledade das praias e ribas fragosas do oceano é absoluta e tétrica.
Era a hora em que o homem está recolhido nas suas mesquinhas moradas; em que pelos cemitérios o orvalho se pendura do topo das cruzes e, sozinho, goteja das bordas das campas; em que só ele chora os mortos. As larvas da imaginação e o gear nocturno afastam do campo santo a saudade da viúva e do órfão, a desesperação da amante, o coração despedaçado do amigo. Para se consolarem, os infelizes dormiam tranquilos nos seus leitos macios!... enquanto os vermes iam roendo esses cadáveres amarrados pelos grilhões da morte. Hipócritas dos afectos humanos, o sono enxugou-lhes as lágrimas!
E depois, as lousas eram já tão frias! Nos selos do torrão húmido o sudário do cadáver tinha apodrecido com ele.
Haverá paz no túmulo? Deus sabe o destino de cada homem. Para o que aí repousa sei eu que há na terra o esquecimento!
Os mares pareciam naquela hora recordar-se ainda do rugido harmonioso do Estio, e a vaga arqueava-se, rolava e, espreguiçando-se pela praia, reflectia a espaços nas golfadas de escuma a luz indecisa dos céus.
E o animal que ri e chora, o rei da criação, a imagem da divindade, onde é que se escondera?
Tremia de frio em aposento cerrado, e sentia confrangido a brisa fresca do norte que passava nas trevas e sibilava contente nas sarças rasteiras dos maninhos desertos.
Sem dúvida, o homem é forte e a mais excelente obra da criação. Glória ao rei da natureza que tiritando geme!
Orgulho humano, qual és tu mais — feroz, estúpido ou ridículo?

2
Não eram assim os Godos do Oeste quando, ora arrastando por terra as águias romanas, ora segurando com o seu braço de ferro o império que desabava, imperavam na Itália, nas Gálias e nas Espanhas, moderadores e árbitros entre o Setentrião e o Meio-Dia:
Não eram assim, quando o velho Teodorico, semelhante ao urso feroz da montanha, combatia nos campos cataláunicos, rodeado de três filhos, contra o terrível Átila e ganhava no seu último dia a sua última vitória:
Quando a larga e curta espada de dois gumes se convertera em foice da morte nas mãos dos godos, e diante dela retrocedia a cavalaria dos gépidas, e os esquadrões dos hunos vacilavam, dando roucos gritos de espanto e terror.
Quando as trevas eram mais cerradas e profundas viam-se à claridade das estrelas relampaguear as armas dos hunos, volteando em redor dos seus carros, que lhes serviam de valos. Como o caçador espreita o leão tomado no fojo, os visigodos os vigiavam, esperando o romper da alvorada.
Lá, o sopro gelado da noite não fazia confranger nossos avós debaixo das armaduras. Lá, a neve era um leito como outro qualquer, e o rugir do bosque, debatendo-se nas asas da tempestade, era uma cantilena de repouso.
O velho Teodorico caíra atravessado por uma frecha despedida pelo ostrogodo Handags, que, com os da sua tribo, combatia pelos hunos.
Os visigodos viram-no, passaram avante e vingaram-no. Ao pôr do Sol, gépidas, ostrogodos, ciros, borgundos, turíngios, hunos, misturados uns com outros, tinham mordido a terra cataláunica, e os restos da inumerável hoste de Átila, encerrados no seu acampamento fortificado, preparavam-se para morrer; porque Teodorico jazia para sempre, e o franquisque dos visigodos era vingador e inexorável.
O romano Aécio teve, porém, piedade de Átila e disse aos filhos de Teodorico:
– Ide-vos, porque o império está salvo.
E Torismundo, o mais velho, perguntou a seus dois irmãos Teodorico e Frederico:
– Está acaso vingado o sangue de nosso pai?
De sobejo o estava ele! Ao aparecer do dia, por quanto os olhos podiam alcançar, não se viam senão cadáveres.
E os visigodos deixaram entregues a si os romanos, que, desde então, não souberam senão fugir diante de Átila.
Quem contará, porém, as vitórias de nossos avós durante três séculos de glória? Quem poderá celebrar o esforço de Eurico, de Tendes, de Leovigildo; quem saberá todas as virtudes de Recaredo e de Vamba?
Mas, em qual coração resta hoje virtude e esforço, no vasto império de Espanha?

3
Era, pois, numa destas noites como a que desceu do céu depois do desbarato dos hunos; era numa destas noites em que a terra, envolta no seu manto de escuridade, se povoa de terrores incertos; em que o sussurro do pinhal é como um coro de finados, o despenho da torrente como um ameaçar de assassino, o grito da ave nocturna como uma blasfémia do que não crê em Deus.
Nessa noite fria e húmida, arrastado por agonia íntima, vagava eu às horas mortas pelos alcantis escaldados das ribas do mar, e enxergava ao longe o vulto negro das águas balouçando-se no abismo que o Senhor lhes deu para perpétua morada.
Por cima da minha cabeça passava o norte agudo. Eu amo o sopro do vento, como o rugido do mar:
Porque o vento e o oceano são as duas únicas expressões sublimes do verbo de Deus, escritas na face da Terra quando ainda ela se chamava o caos.
Depois é que surgiu o homem e a podridão, a árvore e o verme, a bonina e o emurchecer.
E o vento e o mar viram nascer o género humano, crescer a selva, florescer a Primavera; — e passaram, e sorriram-se.
E, depois, viram as gerações reclinadas nos campos do sepulcro, as árvores derribadas no fundo dos vales secas e carcomidas, as flores pendidas e murchas pelos raios do Sol do Estio; — e passaram, e sorriram-se.
Que tinham eles, de feito, com essas existências, mais passageiras e incertas que as correntezas de um e que as ondas buliçosas do outro?

4
O mundo actual nunca poderá entender plenamente o afecto que, vibrando-me dolorosamente as fibras do coração, me arrastava para as solidões marinhas do promontório, quando os outros homens nos povoados se apinhavam à roda do lar aceso e falavam das suas mágoas infantis e dos seus contentamentos de um instante.
E que me importa a mim isso? Virão um dia a esta nobre terra de Espanha gerações que compreendam as palavras do presbítero.
Arrastava-me para o ermo um sentimento íntimo, o sentimento de haver acordado, vivo ainda, deste sonho febril chamado vida, e de que hoje ninguém acorda, senão depois de morrer.
Sabeis o que é esse despertar de poeta?
É o ter entrado na existência com um coração que trasborda de amor sincero e puro por tudo quanto o rodeia, e ajuntarem-se os homens e lançarem-lhe dentro do seu vaso de inocência lodo, fel e peçonha e, depois, rirem-se dele:
É o ter dado às palavras — virtude, amor pátrio e glória — uma significação profunda e, depois de haver buscado por anos a realidade delas neste mundo, só encontrar aí hipocrisia, egoísmo e infâmia:
É o perceber à custa de amarguras que o existir é padecer, o pensar descrer, o experimentar desenganar-se e a esperança nas causas da terra uma cruel mentira de nossos desejos, um fumo ténue que ondeia em horizonte aquém do qual está assentada a sepultura.
Este é o acordar do poeta. Depois disso, nos abismos da sua alma só há para mandar aos lábios um sorriso de desprezo em resposta às palavras mentidas dos que o cercam ou uma voz de maldição desabridamente sincera para julgar as acções dos homens.
É então que para ele há unicamente uma vida real — a íntima; unicamente uma linguagem inteligível — a do bramido do mar e do rugido dos ventos; unicamente uma convivência não travada de perfídia — a da solidão.

5
Tal era eu quando me assentei sobre as fragas; e a minha alma via passar diante de si esta geração vaidosa e má, que se crê grande e forte, porque sem horror derrama em lutas civis o sangue de seus irmãos.
E o meu espírito atirava-se para as trevas do passado.
E o sopro rijo do norte afagava-me a fronte requeimada pela amargura, e a memória consolava-me das dissoluções presentes com a aspiração suave do formoso e enérgico viver de outrora.
E o meu meditar era profundo, como o céu, que se arqueja imóvel sobre nossas cabeças; como o oceano, que, firmando-se em pé no seu leito insondável, braceja pelas baías e enseadas, tentando esboroar e desfazer os continentes.
E eu pude, enfim, chorar.

6
Que fora a vida se nela não houvera lágrimas?
O Senhor estende o seu braço pesado de maldições sobre um povo criminoso; o pai que perdoara mil vezes converte-se em juiz inexorável; mas, ainda assim, a Piedade não deixa de orar junto dos degraus do seu trono.
Porque sua irmã é a Esperança, e a esperança nunca morre nos céus. De lá ela desce ao seio dos maus antes que sejam precitos.
E os desgraçados na sua miséria conservam sempre olhos que saibam chorar.
A dor mais tremenda do espírito quebrantam-na e entorpecem-na as lágrimas.
O Sempiterno as criou quando nossa primeira mãe nos converteu em réprobos: elas servem, porventura, ainda de algum refrigério lá nas trevas exteriores, onde há o ranger dos dentes.
Meu Deus, meu Deus! Bendito seja o teu nome, porque nos deste o chorar.

Alexandre Herculano, in Eurico, o Presbítero

O vento entrou silencioso pelo canto da porta, a madeira a ranger meio que rangia, ainda a ouvir-se uma pequena farpa escondida de som, de qualquer som, um pequeno ranger, foi todo o ranger que se ouviu, a entrar devagar, o canto da porta a deixar-se enganar pelo ranger, pelo frio, devagar pela porta, um pequeno som quase inaudível, perto do não som, e o sol a fugir pela frincha, pelo canto, a porta que deixava entrar o ranger que não o ouvia o homem sentado à mesa, a porta e o telhado e o prato perto de mortos, a colher caída, como o som lhe fizesse companhia, as mãos na cabeça e o som, a cozinha, Vem, que não ouço, veio o ranger despertar-me ou nem o sei, dizia, a cabeça a rasar o prato e o ranger, as mãos na cabeça e o ranger a recrudescer, a cozinha e as paredes e os pratos perto da cabeça do homem, homem cabeça, o ranger da porta, o tempo que ela demorou a chegar, devagar, um pé no outro, cuidadoso, a tactear parede rugosa, o ranger da porta que rangia, Vem, que não ouço, Vem, que não te ouço, e veio um ranger ainda maior que o ranger, zuniu furioso a estalar o som, já não perto do não som, mais perto do som que do não som, e o homem de cabeça nas mãos, nos pratos, na cozinha, na mesa da cozinha, as paredes que ela vinha tacteando, as rugas, as farpas, furioso o ranger que invadia a cozinha, o homem as mãos na cabeça os pratos pelo canto da porta, de nada lhe vale porque o vento, o vento que não tem som, o vento assobia nas frinchas, nas arestas, nos cantos da porta, a porta que não estala mas perto, o vento a empurrá-la com fúria, Vem, que o vento, diz, e ela chega, agarra-lhe nas mãos e na cabeça e nos pratos e na mesa da cozinha e olha-o, o homem as mãos na cabeça, na falta de som, ou no excesso de som, o que veio pelo canto da porta, da porta da cozinha, virada ao vento veloz furando mais furioso, um pequeno som inaudível agigantando-se, e todos os sons deixam de ser silêncio, todo e qualquer pequeno bulir já não agulha surda no chão, salto de pulga, agora um vendaval, mais que uma interminável banda momentos antes do espectáculo, momentos antes da melodia, como tudo o que houvesse fosse um grande e único som que não se percebe, tão perto do silêncio como da brutalidade e ela disse assim Vem que o som, o som que vem pela porta, que o som pelo canto da porta não te incomode, homem mãos na cabeça, a cabeça perto do prato, da mesa, da mesa da cozinha.

Paulo Melo Lopes

Yeshua disse: a tua próxima tarefa é sentir, sentir sem pensar.
Sentir sem pensar é amar-me e, através de mim, o universo inteiro.
Mas eu estou tão cansada. Há fome e dor no mundo. Há guerra. Há revolução.
E tu tens fome, sei que tens fome e eu não posso saciar-te.
Tamanha beleza, tão inalcançável, tão à mão de semear, semeemos então, semeemos, saciemos então o mundo com pensamentos de paz.
Já te disse que me doem os pés e perguntam-me todos porquê, porque me doem os pés, são as pedras do caminho, são mais do que pedras, são navalhas, punhais, espadas, estalagmites de gelo a dez milhões de graus negativos e os pés doem-me, o pior é que a alma também dói.

Um verdadeiro professor espiritual não tem nada para ensinar no sentido convencional da palavra. Não tem nada para te dar ou acrescentar como nova informação, crenças ou regras de conduta. A única função de tal professor é ajudar-te a remover aquilo que te separa da verdade. 

Eckhart Tolle

quinta-feira, 10 de setembro de 2009



Os pássaros do jardim
andam loucos, agitados,
não vêm junto de mim,
procuram por ti, coitados.

Manuel Dias de Almeida



domingo, 6 de setembro de 2009



Não é amigo aquele que alardeia a amizade: é traficante; a amizade sente-se, não se diz.
Machado de Assis


Penso que, como todos, tenho poucos amigos. Muito poucos. Penso que, cada vez mais, há menos pessoas na sociedade dita civilizada dignas de poderem ser consideradas amigas. Porque existem cada vez menos pessoas empáticas, ternas, atentas, curiosas em relação aos outros. Nunca recuso ninguém. O problema é que a maior parte das pessoas que aceito no meu círculo não merecem o tempo que se lhes dedica. O que verifico, ao fim de uma análise interessada e profunda, é que no fundo, são pessoas extremamente sós e vazias, o que não é de admirar, mas o que nunca há-de deixar de me surpreender, é o que compõe o lodo que está no fundo: tanta inveja, tanta fome, tanta amargura, tanta secura. Machado de Assis tem razão, aliás como Krishnamurti, quando diz que uma verdade dita muitas vezes se torna uma mentira. Os afectos profundos e verdadeiros não se dizem, sentem-se. Os traficantes da amizade são da mesma forma traficantes de amor. Traficam palavras das quais desconhecem o verdadeiro significado, cuja profunda verdade lhes escapa, pois estão tão cheios de matéria corrompida e pesada, que passam pela vida como caixões de chumbo com a podridão a roe-los por dentro. Também os que criticam o Facebook, como Miguel Sousa Tavares e outros, têm razão. Amigos, no Facebook, tenho meia dúzia e depois talvez mais meia dúzia que considero serem merecedores de tal distinção. Os restantes são contactos, alguns profissionais, outros porque partilham de uma paixão comum, letras, pintura, música... Acredito sempre que sejam boas pessoas, dignas, que tenham palavra. Mas muitas vezes me desiludo. Hoje em dia, por isso mesmo, já não quero olhar e ver mais profundamente. Tenho horror.
Ter Palavra. Isto já não se usa, pois não? Eu uso. Aprendi com o meu avô Manuel, que nasceu em 1903, sobre o que era ter Palavra. E depois aprendi com os outros sábios que lhe sucederam, nos tantos livros que li, que a Palavra era Verbo e que o Verbo era Deus. Não se usa, mas devia usar-se. Quem não tem Palavra, usa mal a Palavra e nem mesmo é digno de a pronunciar. Quem não tem Palavra, não sabe o significado profundo das palavras e mente o tempo todo com todos os dentes que tem na boca. Quem não tem Palavra é como um mau actor no palco da vida, pedindo emprestado aos outros vidas e sentimentos, vampirizando os que ainda sentem alguma coisa... e sim, digo mau actor, porque os bons actores transformam-se e absorvem o que os rodeia, crescendo e evoluindo. Há quem peça emprestado para crescer. A esses não se empresta. Dá-se. Os maus actores não pedem, roubam, roubam e estragam o que roubaram, tudo neles se suja e parte. Quem não tem Palavra, não sabe ser amigo de ninguém. E também não sabe amar. Sinto compaixão por essas pessoas, mas não sei como ajudá-las. Não sei como quebrar os caixões de chumbo e libertar a podridão. Confesso que já desisti. Como já disse uma vez, estou cansada. Estou cansada de não encontrar Deus naqueles que o deviam trazer dentro. E quem poderá saber o que para mim significa a Palavra-Deus? Talvez ninguém vivo.
Tal como disse Buda, um amigo falso e maldoso é mais temível que um animal selvagem; o animal pode ferir o teu corpo, mas um falso amigo irá ferir a tua alma. Tenho que a proteger, à minha alma. Afinal, mais ninguém o fará.
Quanto aos amigos, aos poucos que tenho, esses, como li uma vez, são anjos tranquilos. Ao pé deles sinto sempre paz e bem-estar. Fazem-me acreditar em tudo aquilo que não pode ser provado ou testado. Alguns desses meus amigos, não são humanos. Mas foi com esses que mais aprendi sobre o amor e os laços que unem os seres. Sobre a devoção desinteressada.



sábado, 5 de setembro de 2009

Como um incêndio lavra na floresta, indiferente e cruel, assim lavra a raiva, como um incêndio ou a gangrena no corpo, surge repentinamente, surge sempre da Verdade, nunca da Mentira, a Mentira apenas perde, atrapalha, desorienta, a Verdade incendeia e diz: amputa, amputa, corta, arde, a dor do corte, do fogo, é ignorada, arde, arde, cura-te, larga essa coisa que te envenenou a vida, que te escureceu, que te fez escoar todo o teu ser para um pântano, só dói enquanto é gangrena, enquanto tem bicho, enquanto há seiva, mas a raiva seca a seiva, como um incêndio, já nada dói, agarra no machado e corta, arranca o que está podre, queima o que está doente, o que vale a pena foge, alguma coisa que vale a pena morre, paciência.








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