as almas, os pássaros

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quinta-feira, 22 de março de 2012

e há aqueles que não merecem nem a espada nem o chicote. O que se quer é o bem-estar de todos e não apenas de alguns. Difícil? Com certeza. Na natureza humana sempre foram os vassalos que cumpriram os desígnios do egoísmo, da ganância e da crueldade. Contentam-se com restos, lutam ferozmente pelos restos, eternamente longe do portão, onde uns poucos se contorcem, gordos e vesgos, cheios de baba. E entre esses poucos e o resto da Vida, estão os vassalos, bastão em riste, arcontes patéticos de sexo fremente e flácido que batem em mulheres e crianças e homens cheios de sensibilidade, inteligência e coragem. Não merecem nem a espada nem o chicote nem o cuspo.

terça-feira, 20 de março de 2012

se eu pudesse reproduzir num frasquinho de cristal com a forma de uma flor pequenina o perfume do nosso jardim ao pôr-do-sol na primavera e oferecê-lo

segunda-feira, 19 de março de 2012


quarta-feira, 14 de março de 2012

— Ah! senhor meu — acudiu a sobrinha — repare Vossa Mercê que tudo isso que diz dos cavaleiros andantes é fábula e mentira, e as suas histórias, a não serem queimadas, mereciam que se lhe pusesse a cada uma um sambenito, ou algum outro sinal, para que fosse conhecida por infame e destruidora dos bons costumes.

— Pelo Deus que me sustenta — disse D. Quixote — se não fosses minha sobrinha direita, como filha de minha própria irmã, havia de fazer em ti tal castigo, pela blasfêmia que disseste, que soaria em todo o mundo. Pois quê! é possível que uma rapariga, que apenas sabe mexer uns bilros, se atreva a pôr a boca nas histórias dos cavaleiros andantes, e a censurá-las? O que diria o senhor Amadis, se tal ouvisse? com certeza te perdoaria, porque foi o mais humilde e cortês cavaleiro do seu tempo, e sobretudo grande amparo de donzelas; mas poderia outro ouvir-te que não te tratasse com a mesma brandura, porque nem todos são corteses e bem assombrados; alguns há descomedidos e refeces; nem todos os que se chamam cavaleiros o são deveras, porque os há de ouro e de pechisbeque; muitos que parecem verdadeiros, e não podem ir seguros ao toque da pedra da verdade: há homens de baixa condição que estouram por parecer cavaleiros, há outros nobilíssimos que morrem por parecer gente baixa; àqueles levanta-os ou a ambição, ou a virtude; a estes rebaixa-os ou a frouxidão ou o vício; e é mister aproveitarmo-nos do conhecimento discreto para distinguir estas duas espécies de cavaleiros, tão parecidos nos nomes, e tão distantes nas ações.

— Valha-me Deus! — disse a sobrinha — saber Vossa Mercê tanto, que, se fosse mister, podia numa urgência subir ao púlpito ou ir a pregar por essas ruas, e com tudo isso cair numa insensatez tão óbvia, que dê a entender que é valente, sendo velho, que tem forças, estando enfermo, e que endireita tortos, estando derreado pela idade, e sobretudo que é cavaleiro, não o sendo, porque, ainda que o possam ser os fidalgos, nunca o são os pobres!

— Tens muita razão, sobrinha — respondeu D. Quixote — e a respeito de linhagens, poderia eu dizer-te coisas que te fariam espanto; mas, para não misturar o divino com o profano, não as digo. Olhai, queridas, a quatro espécies de linhagens (atendei bem) se podem reduzir todas as que há no mundo, e vem a ser: umas, que tiveram humildes princípios, e se foram estendendo e ampliando até chegar à suma grandeza; outras, que tiveram princípios grandes, e os foram conservando, e conservam e mantêm no mesmo pé em que começaram; outras, apesar de haverem tido grandes princípios, acabaram em ponta, como uma pirâmide, havendo diminuído e aniquilado o seu princípio até parar em nonada, como o é a ponta da pirâmide que, em comparação com a sua base ou assento, nada é; outras há, e são estas as mais numerosas, que nem tiveram bom princípio, nem meio razoável, e terão dessa forma o fim sem brilho, como a linhagem de gente plebéia e ordinária. Das primeiras, que tiveram princípios humildes e subiram à grandeza que conservam agora, sirva de exemplo a casa otomana, que de um humilde pastor, que lhe deu origem, está no auge em que a vemos; da segunda, que teve princípio em grandeza e a conserva sem a aumentar, dou para exemplo muitos príncipes, que o são por herança, e a conservam, contendo-se pacificamente nos limites dos seus estados; e dos que principiaram grandes e acabaram em ponta, há inúmeros exemplos, porque todos os Faraós e Ptolomeus do Egito, os Césares de Roma, com toda a caterva (se assim se lhe pode chamar) de infinitos príncipes, monarcas, senhores, medos, assírios, gregos e bárbaros, todas estas linhagens e todos estes senhores se aniquilaram, porque não será possível encontrar agora nenhum dos seus descendentes, e, se os encontrássemos, seria em baixo e humilde estado. Da linhagem plebéia não tenho que dizer, senão que serve unicamente para acrescentar o número dos que vivem, sem que mereçam outra fama nem outro elogio as suas grandezas. De tudo isto quero que infirais, minhas tolas, que há muita confusão entre as linhagens, e que só parecem grandes e ilustres as que o mostram ser na virtude, na riqueza e liberalidade dos seus representantes. Disse virtudes, riquezas e liberalidades, porque o grande que for vicioso será um grande vicioso, e o opulento não liberal será um avarento mendigo, que ao possuidor das riquezas não o faz feliz o possuí-las, mas sim despendê-las, e não o gastá-las como quiser, mas saber empregá-las bem. Ao cavaleiro pobre não lhe fica outro caminho para mostrar que é cavaleiro, senão o da virtude, sendo afável, cortês, comedido e serviçal, não soberbo, nem murmurador, nem arrogante, e, sobretudo, caritativo, que com dois maravedis que ele dê, com ânimo alegre, se mostrará tão liberal, como o que dá esmola com toque de sinos, e não haverá quem o veja adornado das referidas virtudes, que, ainda que o não conheça, deixe de o considerar homem de boa casta, e sempre o louvor foi prêmio da virtude. Há dois caminhos, por onde os homens podem chegar a ser ricos e considerados: um é o das letras, o outro o das armas. Eu, pela inclinação que tenho para as armas, vejo que nasci debaixo do influxo do planeta Marte, de forma que me é forçoso seguir por esse caminho; por ele hei-de ir, mau grado a toda a gente, e debalde vos cansareis em persuadir-me a que não queira o que os céus querem, o que a fortuna ordena, o que pede a razão, e, sobretudo, o que a minha vontade deseja; pois sabendo, como sei, os inúmeros trabalhos que tem a cavalaria andante, sei também os bens infinitos que com ela se alcançam, e sei que a senda da virtude é muito estreita, e o caminho do vício largo e espaçoso, que os seus fins e paradeiros são diferentes, porque o do vício, dilatado e espaçoso, acaba na morte, e o da virtude, apertado e íngreme, acaba em vida, e não em vida que tenha termo, mas na vida eterna, e sei como disse o nosso grande poeta castelhano:

Conduz-nos esta aspérrima vereda
da imortalidade ao alto assento,
aonde não chega quem dali se arreda.

— Ai! desditosa de mim — disse a sobrinha — que também meu tio é poeta; tudo sabe e tudo alcança, e aposto que, se imaginar ser alvenel, fabricará uma casa como ninguém.


Miguel de Cervantes y Saavedra, (1547-1616), Don Quijote de la Mancha

 


segunda-feira, 12 de março de 2012

aquela palavra que diz tudo, não é uma palavra
gostava de saber o que é a fome, mas na minha sala apareceu-me a raiva. foi a criatura mais assustadora que enfrentei. a raiva, com os seus olhos vermelhos, a carne líquida e pegajosa a escorrer-lhe dos ossos, a tropeçar nos longos cabelos brancos, ralos, a raiva destruiu-me a sala. e eu fiquei quieta, no meu canto, enquanto ela mordia os meus amigos e me rasgava as pinturas, com garras afiadas e me mordia as palavras com dentes como punhais e me partia as mesas e os instrumentos de música e me queimava os livros com vómitos de fogo, a família pintada de cinzentos, a raiva entrou-me na sala e destruiu-me a casa e eu fiquei a olhar, quieta, olhos negros crivados nos olhos vermelhos da raiva, a sala a ser destruída, lá se vão as pinturas, os livros, as fotografias, os amigos foram-se, a família cinzenta, os que ficaram, deixei de os ver, mas ouvia-os, em sólida voz, mesmo com as palavras a quebrarem-se, os candeeiros a arderem. gostava de saber o que é a fome, disse eu à raiva e a raiva continuou, anos a fio, a partir-me tudo. mas o que é a fome, perguntei-lhe, olhos negros crivados nos olhos vermelhos, pensativa, diz-me o que é a fome. não havia mais nada para partir e só há raiva onde não há fome. a raiva fitou-me, exausta. o que é a fome? perguntei-lhe. a raiva saiu da minha sala, nunca fora convidada, a tropeçar nos seus longos cabelos brancos, a carne líquida a escorrer-lhe dos ossos, a casa destruída, a sala, os livros, a música, os amigos, a família, a raiva saiu-me da sala, exausta, a tremer.










Os que avançam de frente para o mar
E nele enterram como uma aguda faca
A proa negra dos seus barcos
Vivem de pouco pão e de luar.

Sophia de Mello Breyner

quinta-feira, 8 de março de 2012

Todas as árvores nascem de uma semente. Menos a primeira árvore, cuja semente se transformou em semente por força de um sonho. É isso que os sonhos fazem. Criam impossibilidades. Os sonhos não são sementes. São caos. São desorganização e energia. Até que alguém pegue neles e crie com eles uma semente. Ou um ovo. São impossibilidades à partida, porque tudo ao redor deles, o que já é, luta contra eles. Isto porque a nova semente, o novo ovo, irá, com o tempo, destruir tudo o que é.

As crianças sabem sempre o que querem ser, quando forem grandes. Também eu, quando criança, o sabia. O problema é que nunca fiquei grande. Quando permanecemos crianças, não sentimos necessidade de transformar os sonhos em realidade. Continuamos a sonhar e os sonhos vão mudando e, com a ajuda dos que nos rodeiam e já não têm sonhos, mais pequenos. Quanto mais pequenos os sonhos, maior a quantidade. São niquitos de sonhos. Como pirilampos. São aos milhares, talvez biliões. Mas tão pirilampos e fugazes que nem damos conta deles, desaparecem antes que consigamos tocar-lhes, mas mantêm o nosso interior vivo e iluminado. Porque são muitos biliões de pirilampos.

Hoje é um dia especial, porque todos os pirilampos se uniram e criaram um sonho maior, assim como um elefante. Não é possível ignorar um elefante, mesmo que um elefante bebé. Quando surge o elefante, já nada consegue parar essa visão. Até hoje, os pirilampos eram esmagados debaixo de sapatos crescidos, mas não é possível os sapatos esmagarem um elefante. Até porque o elefante é invisível para os sapatos. A única mente que o vê é a mãe dos pirilampos e sonhadora do elefante. O elefante começa a andar e espera pela sonhadora. Ela terá de o acompanhar. A mãe dos pirilampos caminha agora com o elefante. Neste novo caminho, a mãe dos pirilampos terá de aprender a manter o elefante vivo, porque o elefante é a semente do caos.



sexta-feira, 2 de março de 2012

o ideal de um cão é, sem dúvida alguma,
uma cadela.
o ideal de uma cadela é, sem dúvida alguma,
um cão.

fazem muito barulho e têm muitas crias.

silenciosos, precisos, exactos são
os lobos.

por isso os matam.

folhas soltas

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