as almas, os pássaros

as almas, os pássaros

as almas, os pássaros

as almas, os pássaros

quinta-feira, 8 de novembro de 2012

Na minha família os animais domésticos não eram cães nem gatos nem pássaros; na minha família os animais domésticos eram pobres. Cada uma das minhas tias tinha o seu pobre, pessoal e intransmissível, que vinha a casa dos meus avós uma vez por semana buscar, com um sorriso agradecido, a ração de roupa e comida.

Os pobres, para além de serem obviamente pobres (de preferência descalços, para poderem ser calçados pelos donos; de preferência rotos, para poderem vestir camisas velhas que se salvavam, desse modo, de um destino natural de esfregões; de preferência doentes a fim de receberem uma embalagem de aspirina), deviam possuir outras características imprescindíveis: irem à missa, baptizarem os filhos, não andarem bêbedos, e sobretudo, manterem-se orgulhosamente fiéis a quem pertenciam. Parece que ainda estou a ver um homem de sumptuosos farrapos, parecido com o Tolstoi até na barba, responder, ofendido e soberbo, a uma prima distraída que insistia em oferecer-lhe uma camisola que nenhum de nós queria:

- Eu não sou o seu pobre; eu sou o pobre da minha Teresinha.

O plural de pobre não era «pobres». O plural de pobre era «esta gente». No Natal e na Páscoa as tias reuniam-se em bando, armadas de fatias de bolo-rei, saquinhos de amêndoas e outras delícias equivalentes, e deslocavam-se piedosamente ao sítio onde os seus animais domésticos habitavam, isto é, uma bairro de casas de madeira da periferia de Benfica, nas Pedralvas e junto à Estrada Militar, a fim de distribuírem, numa pompa de reis magos, peúgas de lã, cuecas, sandálias que não serviam a ninguém, pagelas de Nossa Senhora de Fátima e outras maravilhas de igual calibre. Os pobres surgiam das suas barracas, alvoraçados e gratos, e as minhas tias preveniam-me logo, enxotando-os com as costas da mão:

- Não se chegue muito que esta gente tem piolhos.

Nessas alturas, e só nessas alturas, era permitido oferecer aos pobres, presente sempre perigoso por correr o risco de ser gasto

(- Esta gente, coitada, não tem noção do dinheiro)

de forma de deletéria e irresponsável. O pobre da minha Carlota, por exemplo, foi proibido de entrar na casa dos meus avós porque, quando ela lhe meteu dez tostões na palma recomendando, maternal, preocupada com a saúde do seu animal doméstico

- Agora veja lá, não gaste tudo em vinho

o atrevido lhe respondeu, malcriadíssimo:

- Não, minha senhora, vou comprar um Alfa-Romeu

Os filhos dos pobres definiam-se por não irem à escola, serem magrinhos e morrerem muito. Ao perguntar as razões destas características insólitas foi-me dito com um encolher de ombros

- O que é que o menino quer, esta gente é assim

e eu entendi que ser pobre, mais do que um destino, era uma espécie de vocação, como ter jeito para jogar bridge ou para tocar piano.

Ao amor dos pobres presidiam duas criaturas do oratório da minha avó, uma em barro e outra em fotografia, que eram o padre Cruz e a Sãozinha, as quais dirigiam a caridade sob um crucifixo de mogno. O padre Cruz era um sujeito chupado, de batina, e a Sãozinha uma jovem cheia de medalhas, com um sorriso alcoviteiro de actriz de cinema das pastilhas elásticas, que me informaram ter oferecido exemplarmente a vida a Deus em troca da saúde dos pais. A actriz bateu a bota, o pai ficou óptimo e, a partir da altura em que revelaram este milagre, tremia de pânico que a minha mãe, espirrando, me ordenasse

- Ora ofereça lá a vida que estou farta de me assoar

e eu fosse direitinho para o cemitério a fim de ela não ter de beber chás de limão.

Na minha ideia o padre Cruz e a Saõzinha eram casados, tanto mais que num boletim que a minha família assinava, chamado «Almanaque da Sãozinha», se narravam, em comunhão de bens, os milagres de ambos que consistiam geralmente em curas de paralíticos e vigésimos premiados, milagres inacreditavelmente acompanhados de odores dulcíssimos a incenso.

Tanto pobre, tanta Sãozinha e tanto cheiro irritavam-me. E creio que foi por essa época que principiei a olhar, com afecto crescente, uma gravura poeirenta atirada para o sótão que mostrava uma jubilosa multidão de pobres em torno da guilhotina onde cortavam a cabeça aos reis.

António Lobo Antunes

 


quarta-feira, 10 de outubro de 2012

quinta-feira, 20 de setembro de 2012



Every wolf`s and lion`s howl

Raises from hell a human soul.

[William Blake]

Os índios americanos acreditam que todos nós temos um animal guardião e que este nos é revelado em sonhos. Talvez esta crença tenha um significado mais profundo. Sonhei com um lobo preto de olhos dourados. Estava com os dentes todos arreganhados, a rosnar baixinho, e pregou-me um enorme susto. Primeiro, quis fugir, mas algo me fez voltar a olhar para ele outra vez. Estava a flutuar no ar, à minha frente, e pousara a cabeça entre as patas dianteiras. Abanou ligeiramente a cauda e desapareceu.

A verdade é que os lobos estão à beira da extinção total, entre tantos outros seres. São dos poucos animais monógamos. São inteligentes, profundamente leais aos membros do grupo, meigos e brincalhões. Talvez a próxima geração possa vê-los apenas no YouTube. 
 
 
Fotografia de Jess Lee
Se quiser ajudar a preservar o Lobo Ibérico: Grupo Lobo


Sou sem dúvida alguma uma criatura do Verão e a minha hora preferida é o crepúsculo. Gosto de sentar-me no jardim e ver a luz dançar por entre as copas das árvores até desaparecer. Os pássaros regressam aos ninhos. Hoje uma toutinegra sentiu curiosidade a meu respeito e pensei no dia em que pousares nos meus ombros como as tuas antepassadas pousaram nos ombros da minha avó, nesse dia saberei que posso morrer em paz. São tão pequeninas, as toutinegras. A toutinegra e eu olhámos uma para a outra durante o cair da luz. Ambas queríamos conhecer-nos melhor. É sempre assim que o amor começa.


Lembram-se daquele sonho, em que caímos, e morremos, e depois acordamos?





A alma é em sua própria natureza, perfeita pureza, perfeita calma, perfeito silêncio; e tal como uma fonte nasce das próprias veias da terra, assim é a alma nutrida do sangue de Deus, o êxtase das coisas. 


Esta alma não pode ser ferida, não pode ser desfigurada, não pode ser corrompida. No entanto, todas as coisas somadas a ela, por um tempo a perturbam; e isso é tristeza. 

Alisteir Crowley
As relações entre os seres vivos, que querem e precisam de estar juntos, são como as árvores. Nascem como semente que cai do universo no presente tempo e momento - quem sabe se trazida no bico de um pássaro ou numa refrega do vento - e a semente cai na terra. Se a terra for boa, ela germina, se for má, morre. A terra boa é a confiança que a semente pode depositar na terra. A terra tem de alimentar a semente com água e nutrientes e criar um refúgio. Da minúscula semente nascem raízes que se estendem pela terra à procura da necessária confiança. Se esta existe, a semente começa a alimentar-se e a crescer, feliz em ventre, com as raízes a engrossarem e a abraçarem a terra e a terra a abraçar as raízes. E a confiança é pura. E um dia aperta a semente para que esta germine e com as raízes bem enterradas dentro da terra, do ventre, do alimento e água da confiança, a relação sai para a luz do sol e para a chuva e para o vento, mas não tem medo nem que o sol queime, nem que a água afogue, nem que o vento quebre ou arranque, pois as raízes estão solidamente implantadas na terra. E então a relação cresce e consoante as circunstâncias do clima, sol, chuva, vento, humidade e outras criaturas grandes e minúsculas em redor, pode crescer até ser uma árvore gigantesca, ou uma pequena árvore dobrada, mas é sempre sólida, enquanto a terra for boa e souber guardar a água e souber preservar os nutrientes. 

Por vezes, a mínima coisa torna a terra má. E qualquer que seja a fase - semente, raízes ou árvore - a relação morre.

Quem conhece as árvores, e estuda alcateias de lobos ou conhece a vida difícil dos pinguins ou dos albatrozes, conhece bem esta questão de terra.

A minha amendoeira... posso confiar nela e entre mim e ela existe amor. Pois escrevi que partiríamos com as flores e hoje quando cheguei a casa tinha florido para mim. São as primeiras flores do ano. Pode-se confiar mais numa amendoeira do que num ser humano. 
Penso que deve existir para cada um
uma só palavra que a inspiração dos povos deixasse
virgem de sentido e que,
vinda de um ponto fogoso da treva, batesse
como um raio
nos telhados de uma vida, e o céu
com águas e astros
caísse sobre esse rosto dormente, essa fechada
exaltação.
Que palavra seria, ignoro. O nome talvez
de um instrumento antigo, um nome ligado
à morte – veneno, punhal, rio
bárbaro onde
os afogados aparecem cegamente abraçados a enormes
luas impassíveis. Um abstracto nome de mulher ou pássaro.
Quem sabe? – Espelho, Cotovia, ou a desconhecida
palavra Amor.

Herberto Helder
O Reino dos Céus não virá por esperares vê-lo. Nem ninguém poderá dizer, ei-lo aqui, ou ei-lo ali, porque o Reino dos Céus está dentro de ti. […] Virão os dias, onde desejarás ver um Dia do Filho do Homem, mas não verás. 
E dir-te-ão, vê aqui, ou vê além. Não os ouças nem os sigas. 
Pois como o relâmpago, que liga o Céu e a Terra, assim será o Filho do Homem no seu Dia. Mas antes, terás de experimentar muito e ser a negação da tua geração. 

Yeshua, segundo Loukás
A música é tão importante para mim que me faz lembrar muitas vezes aquela canção do Rui Veloso. Uma musa sem dúvida. Na Grécia eram nove: Calíope ou Καλλιόπη, a de bela voz; Clio ou Κλειώ, a que celebra; Erato ou Ερατώ, a amorosa; Euterpe ou Ευτέρπη, a do deleite; Melpômene ou Μελπομένη, a que canta; Polímnia ou Πολυμνία, a dos muitos hinos; Tália ou θάλλεω, a que floresce; Terpsícore ou Τερψιχόρη, a que dança; Urânia ou Ουρανία, a celestial. 
Quatro delas têm uma relação directa com a música: Calíope, Melpômene, Polímnia e Terpsícore. Não por acaso. Música é a vibração essencial do ser.
A música que escutas, a música que és, aquilo em que te transformas, o mundo que crias, o teu destino nesta vida. 
Já partilho as palavras, as ruínas, o caos, a Música, aqui, hoje, é um fio, o fio de água, o fio de Ariadne.

 
     E chamou Deus à luz Dia; e às trevas chamou Noite; e fez-se a tarde, e fez-se a manhã, dia primeiro.
     ... e fez a separação entre as águas que estavam debaixo do firmamento e as águas que estavam por cima do firmamento. (Génesis). 
     ... e eis que havia um grande terramoto: e o sol tornou-se negro como um saco de silício: e a lua tornou-se como sangue. 
     E as estrelas do céu caíram na terra, como quando a figueira lança os seus figos verdes, abalada de um grande vento: 
     E o céu retirou-se como um livro que se enrola: e todos os montes e ilhas se moveram dos seus lugares.
     E vi os mortos, pequenos e grandes, ... e foram abertos os livros. (Apocalipse). 
     Irmãos Humanos que depois de nós vivereis, não nos guardeis ódio em vossos corações. (François Villon). 
     Ah, como custa falar desta selvagem floresta tão áspera e inextricável, cuja simples lembrança basta para despertar o terror. 
     Denso granizo, águas negras e neves caíam do espaço tenebroso. (Dante). 
     Maravilha fatal da nossa idade. (Camões). 
     Rasgou os limbos a antiga luz das fábulas, luz terrivel que os homens e as mulheres beijavam cegamente e a que ficavam presos pela boca, arrastados, violentamente brancos - mortos. E essa colina subia e girava, puxando pelos lábios os seres deslumbrados e aniquilados. E dentro desta luz e desta morte, os sons amadureciam. Em baixo, vermeIhas, estalavam as cúpulas. (Autor). 

     E as estrelas do céu caíram na terra, como quando a figueira lança o seus figos verdes, abalada de um grande vento. E eis que havia um grande terramoto, e o sol tornou-se negro como um saco de silício e a lua tornou-se como sangue. E fez-se a separação entre as águas que estavam debaixo do firmamento e as águas que estavam por cima do firmamento. E o céu retirou-se como um livro que se enrola e todos os montes e ilhas se moveram dos seus lugares. Denso granizo, águas negras e neves caíam do espaço tenebroso. Rasgou os limbos a antiga luz das fábulas, luz terrível que os homens e as mulheres beijavam cegamente e a que ficavam presos pela boca, arrastados, violentamente brancos - mortos. E essa colina subia e girava, puxando pelos lábios os seres deslumbrados e aniquilados. E dentro desta luz e desta morte, os sons amadureciam. Em baixo, vermelhas, estalavam as cúpulas. E vi os mortos, pequenos e grandes, e foram abertos os livros. Ah, como custa falar desta selvagem floresta tão áspera e inextricável - maravilha fatal da nossa idade -, cuja simples lembrança basta para despertar o terror. Irmãos Humanos que depois de nós vivereis, não nos guardeis ódio em vossos corações. 

     ... E chamou Deus à luz Dia; e às trevas chamou Noite; e fez-se a tarde, e fez-se a manhã, dia primeiro...

     Ah, como custa falar desta selvagem floresta tão áspera e inextricável, cuja simples lembrança basta para despertar o terror. 
     E vi os mortos, como quando a figueira lança os seus figos verdes, entre as águas que estavam debaixo do firmamento, águas negras, e a lua como sangue, denso granizo e neves do espaço tenebroso. E as estrelas do céu e as águas que estavam por cima do firmamento caíram na terra, e eis que havia um grande terramoto, e rasgou os limbos a antiga luz das fábulas, e foram abertos os livros. E dentro desta luz e desta morte, os sons amadureciam. Os homens e as mulheres caíam cegamente pela boca, e o sol tornou-se negro como um livro que se enrola, e todos os pequenos e grandes montes e ilhas se moveram dos seus lugares. Abalada de um grande vento, a luz terrível subia e girava, puxando violentamente os mortos brancos que ficavam presos pelos deslumbrados e arrastados lábios ao céu que se tornou como um saco de silício. E os seres aniquilados beijavam essa colina, e em baixo o céu retirou-se, e fez-se a separação, e estalavam as cúpulas vermelhas. 
     Maravilha fatal da nossa idade...

     E chamou Deus à luz Dia; e às trevas chamou Noite; e fez-se a tarde, e fez-se a manhã, dia primeiro...

     Irmãos Humanos que depois de nós vivereis, não nos guardeis ódio em vossos corações. 
     Na maravilha desta luz inextricável, vi os homens e as mulheres que estalavam como estrelas, como figos deslumbrados. E o sol negro e a lua de sangue caíram no vento, nas águas, na terra, caíam da selvagem figueira por cima do firmamento que subia e girava como um livro terrível, uma colina que se enrola. E eis que se rasgou um grande terramoto de águas verdes no céu de silício violentamente baixo. E os seres moveram-se dos seus lugares pelo granizo tenebroso, puxando as cúpulas, os sons, os mortos abertos. E havia águas negras na luz abalada, na áspera floresta dos limbos, e as ilhas vermelhas e os montes arrastados amadureciam no terror da nossa idade. No espaço das fábulas os mortos, cegamente presos, estavam aniquilados pelos lábios e beijavam a grande luz, a grande morte. E fez-se a separação entre a boca e os livros. E quando as águas e as neves estavam dentro do céu, de cuja antiga lembrança custa falar, eu vi os mortos brancos despertar debaixo do céu fatal, e ficavam pequenos e grandes. E estavam todos mortos. Denso granizo, águas negras e neves caíam do espaço tenebroso.

     ... E chamou Deus à luz Dia; e às trevas chamou Noite; e fez-se a tarde, e fez-se a manhã, dia primeiro...

     ... presos pela boca violentamente brancos os mortos amadureciam 
     dentro desta luz ficavam as mulheres puxando as fábulas vermelhas 
e
     a terrível colina subia pelos sons deslumbrados
e
     os limbos estalavam
e
     a luz rasgou cegamente os seres aniquilados
e
     cúpulas beijavam os lábios arrastados na luz 
e
     a morte antiga girava em baixo com homens... 

     ... E chamou Deus à luz Dia; e às trevas chamou Noite; e fez-se a tarde, e fez-se a manhã, dia primeiro... 

     ... luz selvagem... e terramoto que se enrola de estrelas... e água abalada... inextricável... o sol num saco de vento... e a lua debaixo das ilhas que se moveram... e livros em silício dentro dos mortos verdes... e coração dos figos abertos... maravilha nos grandes lugares por cima... e montes como dentro das águas negras... espaço... separação... e mulheres vermelhas com cúpulas... a antiga colina do firmamento... e homens violentamente... sons cegamente... e seres arrastados do céu da boca para... luz selvagem...

     ... E chamou Deus à luz Dia; e às trevas chamou Noite; e fez-se a tarde, e fez-se a manhã, dia primeiro... 

Herberto Helder, in Ofício Cantante, p. 217-221 (1963)
eu e os animais
eu e as árvores
eu e a terra
eu e o ar
eu e o mar
eu e o fogo
eu e o nada
eu, tu, tudo, nada
Horror é a falsa delicadeza dos demónios cobertos de sarcasmo.
Horror é a falsa compaixão dos políticos cobertos de ganância.
Horror é a pele ensanguentada do carneiro morto sobre as bestas.
Horror é a falsa glória a escorrer baba sobre a barriga do cavalo aberta pelos cornos do touro.
Horror é a falsa vitória do ego a saltar numa bola de fome.
Horror é o aplauso dos escravos aos carrascos.
Os rios regressam à superfície.
Por vezes é necessário um período de zanga e de reconciliação com as palavras.
As coisas são coisas, são coisas que são como são, quando não queremos dar-lhe um nome, acima de todos os nomes, as coisas, coisas que nos levam a aprender, a crescer.
Acima de todos os nomes existe o que não tem nome, não tem som, não tem palavras.
E é isso mesmo que procuram as palavras, lavrando o caminho com luz e escuridão.


os espinhos das rosas é que nos mantêm despertos
saudade de adormecer, mas
os espinhos das rosas
os espinhos
da rosa
o sangue da carne
vermelho
como as rosas
a minha rosa
os espinhos
acordam-me

quarta-feira, 22 de agosto de 2012

Não deixa de ser uma enorme vaidade imaginar que estamos despertos no meio dos que dormem. A nossa vaidade leva-nos a inventar estrelas ardentes que atiramos aos outros, sabendo que entre eles não há um único capaz de segurar uma estrela com a ponta do dedo mindinho. Imaginamos que estamos despertos, mas nenhum de nós tem um sorriso na cara, aquele sorriso mistura de dentes e riso, amor e humildade, dos que enterrados na carne chegaram finalmente à raíz e dela beberam a primeira água-luz perfumada e limpa. Se nem o sorriso temos, muito menos temos asas ou sabemos criar estrelas, nem tratámos de quebrar os ossos, rasgar veias e artérias, dilacerar órgãos e romper a carne e trepar pela raíz acima, desfeitos e nús, em pleno vôo, nem parámos a meio, por compaixão, nem mesmo nos sentámos então de pernas cruzadas a rir, de nós e dos outros. E se mesmo assim, algum de entre nós tivesse passado por tudo isto, teria fingido dormir de novo, com um só olho aberto, à espera dos seus irmãos?







Peço o silêncio,
silêncio da noite,
dos dias,
silêncio como
palavras,
coreografias,
escondidas, suaves,
caminhos
respirados, apagados,
lábios pousados nos ninhos
rasgados
das aves
feridas.

quinta-feira, 2 de agosto de 2012

tenho fome e não como, tenho sede e não bebo, tenho sono e não durmo, tenho raiva e não mato, quero quebrar e não quebro, sou uni-verso e não falo, de mim tudo é feito e nada é, exposta, sou invisível, em mim tropeçam os assassinos, os gulosos e os ladrões, contra mim se quebram os ocos, as máscaras e as mentiras, sou canto e ângulo essenciais, entrada para o abismo de baixo e de cima, sustenho o nada que o tudo gerou e canto the battle of epping forest e selling england by the pound até ao multiverso.

terça-feira, 17 de julho de 2012

Sou mãe de quatro
rios

o primeiro é subterrâneo e não tem pai
o segundo larguei-o no mar
o terceiro morreu no deserto
o quarto sobe para o céu

como cascata invertida
e não tem Pai
nem Mãe

domingo, 15 de julho de 2012

A vida... é aquilo que queremos que seja. Deus fez o humano à sua imagem e o humano diz: seja o que Deus quiser. Mas o humano tem de aprender que a vida é apenas o que o humano quiser.


sexta-feira, 15 de junho de 2012

as bofetadas brancas do vento crú atiçam a madrugada



sexta-feira, 8 de junho de 2012

Quase todas as qualidades do estado nascente as encontramos concentradas na adolescência, fase da vida em que é mais frequente esse estado, e compreende-se porquê: a adolescência é o período de passagem da infância e da família infantil ao estado adulto em toda a sua complexidade (…) Separar-se da família, do mundo dos valores, das emoções e das crenças infantis, e unir-se a outras pessoas para amar, mas também aos partidos, aos grupos, à política, à ciência. A adolescência é, por isso, a idade do contínuo morrer e renascer para outro (…) A instituição tem horror do estado nascente, é a única coisa que receia, porque é a única que lhe abala, só pelo facto de aparecer, os alicerces. Do ponto de vista da instituição, o estado nascente é, por definição, o inesperado; porque a sua lógica é diferente da vida quotidiana (…) ataca a instituição em nome dos seus próprios valores, acusando de hipocrisia (…) perante o estado nascente, a instituição é abalada nas suas certezas, pois reproduzindo o evento do qual ela nasceu, revelando no estado puro as forças que o alimentam, o estado nascente cria uma situação de risco mortal. Os mecanismos sociais procuram extingui-lo, torná-lo impossível (…) o noivado, a separação, o divórcio, a mancebia, a vingança, o casamento, são tudo saídas institucionais daquele tipo particular de estado nascente que é o enamoramento (…) é este o rosto que a instituição apresenta ao estado nascente: rosto terrível, desumano, e que não pode surpreender por si, pois, de facto, ela surge também do estado nascente. Veremos em seguida como o amor, o pacto, o casamento, surgem do enamoramento. A um certo ponto, o estado nascente acaba e o seu lugar é tomado pela instituição, a qual declara realizar completamente a experiência do estado nascente. A missa é a reprodução do sacrifício da cruz, diz o catecismo, mas, na realidade, quem assiste à missa pode reviver ou não esta experiência. Um místico revive-a, um distraído não, porque pensa em outra coisa; alguém que não acredite observa a missa como um espectáculo mais ou menos estranho, mais ou menos aborrecido. A missa, que no estado nascente religioso do qual nasceu era o reviver do sacrifício da cruz (e que volta a sê-lo quando aquele estado nascente se reactiva), como instituição pretende reactivá-lo sem a participação dos homens. Todas as celebrações, todas as festas, todos os pactos, todas as instituições, nasceram – e renascem – através dos movimentos constituídos por homens concretos, mas, enquanto instituições, não têm necessidade dos homens.

Francesco Alberoni, in Enamoramento e Amor

quinta-feira, 7 de junho de 2012

Quando o homem brinca com o violoncelo, este quebra-se.


Um corpo pousado no colo do homem, violoncelo, espigão ligado à terra, voluta-céu, o homem precisa de um arco-alma para o tocar, para lhe ouvir a voz, a alma do violoncelo é de abeto, perfeita, perfeitamente posicionada, aguarda o movimento do corpo macio, vibração transmitida ao fundo da luz, as cordas enroladas em prata anseiam as crinas de cavalo do arco de pau-brasil adormecido, não pode tocar-lhe com os dedos, o homem, com os dedos pode apenas tocar-lhe no pescoço, a mão acaricia a voluta e cai, o corpo precisa do arco, o arco precisa da alma do homem para existir, o homem não consegue despertar o arco, que lhe pende da mão, inerte. Só, tão só, o homem agarra o violoncelo e chora, nú.

[publicado no #2 da Contra-Corrente com o pseudónimo Laura Miguéis Raposo]



Pintura de Wayne Roberts, Austrália

segunda-feira, 21 de maio de 2012

O primeiro pensamento de Deus foi um anjo.
A primeira palavra de Deus foi um homem.
[...]
A lembrança é uma forma de reunião.
O esquecimento é uma forma de liberdade.

Khalil Gibran, in Areia e Espuma - Primeiro


quinta-feira, 12 de abril de 2012

Influenciar uma pessoa é dar-lhe a nossa própria alma. O indivíduo deixa de pensar com os seus próprios pensamentos ou de arder com as suas próprias paixões. As suas virtudes não lhe são naturais. Os seus pecados, se é que existe tal coisa, são tomados de empréstimo. Torna-se o eco de uma música alheia, o actor de um papel que não foi escrito para ele. O objectivo da vida é o desenvolvimento próprio, a total percepção da própria natureza, é para isso que cada um de nós vem ao mundo. Hoje em dia as pessoas têm medo de si próprias. Esqueceram o maior de todos os deveres, o dever para consigo mesmos. É verdade que são caridosas. Alimentam os esfomeados e vestem os pobres. Mas as suas próprias almas morrem de fome e estão nuas. A coragem desapareceu da nossa raça e se calhar nunca a tivemos realmente. O temor à sociedade, que é a base da moral, e o temor a Deus, que é o segredo da religião, são as duas coisas que nos governam.

Oscar Wilde, in O Retrato de Dorian Gray

terça-feira, 10 de abril de 2012

Há uma mulher a morrer sentada
Uma planta depois de muito tempo
Dorme sossegadamente
Como cisne que se prepara
Para cantar

Ela está sentada à janela. Sei que nunca
Mais se levantará para abri-la
Porque está sentada do lado de fora
E nenhum de nós pode trazê-la para dentro

Ela é tão bonita ao relento
Inesgotável

É tão leve como um cisne em pensamento
E está sobre as águas
É um nenúfar, é um fluir já anterior
Ao tempo

Sei que não posso chamá-la das margens


Daniel Faria, in Dos Líquidos

segunda-feira, 9 de abril de 2012

súbitamente, tudo se vai. Escondo-me debaixo do palco, a música a ribombar-me na alma, como uma trovoada. Não quero que ninguém me veja, a luz, as lágrimas, a exactidão de todas as coisas. Escondo-me debaixo do palco e choro almadamente. No meio da tempestade, de todas as perdas, de toda a dor, conheço a perfeição. É algo que nunca se esquece. Debaixo do palco. Talvez devesse ter ficado em cima do palco, de braços abertos, o sangue como rios loucos, a baterem, a esmurrarem as margens, mas para quê? Tudo seria invisível para os cegos.
Quando dormimos, voamos das ameias, largamos o forte. Tocamos em pianos quebrados como steinways. Ligamo-nos à fonte.


sábado, 7 de abril de 2012

as ilhas não podem ser senão ilhas, num mundo onde os continentes se suicidam. mas o olhar das ilhas tem raízes na água. e a água liga tudo.


Fotografia: David Doubilet

quinta-feira, 5 de abril de 2012

uma verdadeira páscoa para vós. e para mim.


domingo, 1 de abril de 2012

Toda a terra tem pólen. Flor de laranjeira, flor de limoeiro. A água silencia os corvos por breves dias e breves noites. Toda a terra cheira a vida e a morte. A terra não conhece a diferença, na terra os sons alternam-se com o silêncio, o movimento com a quietude, a água com o deserto. A chuva lava e hoje à tarde houve um concerto de pássaros, pareciam violinos ou os violinos são pássaros nas tardes sombrias de água. Ouço todo este silêncio perfumado e sinto em mim esta gratidão que tudo perdoa, como um sorriso imenso de reconciliação com a vida e a morte, a morte e a vida, o cheiro doce a cadáveres frescos e flores de citrinos da terra.

Onde morre o animal, nasce a árvore. Onde morre a árvore, nasce a chuva. Onde morre a respiração, nasce o sol. Num ciclo sem fim.


quinta-feira, 22 de março de 2012

e há aqueles que não merecem nem a espada nem o chicote. O que se quer é o bem-estar de todos e não apenas de alguns. Difícil? Com certeza. Na natureza humana sempre foram os vassalos que cumpriram os desígnios do egoísmo, da ganância e da crueldade. Contentam-se com restos, lutam ferozmente pelos restos, eternamente longe do portão, onde uns poucos se contorcem, gordos e vesgos, cheios de baba. E entre esses poucos e o resto da Vida, estão os vassalos, bastão em riste, arcontes patéticos de sexo fremente e flácido que batem em mulheres e crianças e homens cheios de sensibilidade, inteligência e coragem. Não merecem nem a espada nem o chicote nem o cuspo.

terça-feira, 20 de março de 2012

se eu pudesse reproduzir num frasquinho de cristal com a forma de uma flor pequenina o perfume do nosso jardim ao pôr-do-sol na primavera e oferecê-lo

segunda-feira, 19 de março de 2012


quarta-feira, 14 de março de 2012

— Ah! senhor meu — acudiu a sobrinha — repare Vossa Mercê que tudo isso que diz dos cavaleiros andantes é fábula e mentira, e as suas histórias, a não serem queimadas, mereciam que se lhe pusesse a cada uma um sambenito, ou algum outro sinal, para que fosse conhecida por infame e destruidora dos bons costumes.

— Pelo Deus que me sustenta — disse D. Quixote — se não fosses minha sobrinha direita, como filha de minha própria irmã, havia de fazer em ti tal castigo, pela blasfêmia que disseste, que soaria em todo o mundo. Pois quê! é possível que uma rapariga, que apenas sabe mexer uns bilros, se atreva a pôr a boca nas histórias dos cavaleiros andantes, e a censurá-las? O que diria o senhor Amadis, se tal ouvisse? com certeza te perdoaria, porque foi o mais humilde e cortês cavaleiro do seu tempo, e sobretudo grande amparo de donzelas; mas poderia outro ouvir-te que não te tratasse com a mesma brandura, porque nem todos são corteses e bem assombrados; alguns há descomedidos e refeces; nem todos os que se chamam cavaleiros o são deveras, porque os há de ouro e de pechisbeque; muitos que parecem verdadeiros, e não podem ir seguros ao toque da pedra da verdade: há homens de baixa condição que estouram por parecer cavaleiros, há outros nobilíssimos que morrem por parecer gente baixa; àqueles levanta-os ou a ambição, ou a virtude; a estes rebaixa-os ou a frouxidão ou o vício; e é mister aproveitarmo-nos do conhecimento discreto para distinguir estas duas espécies de cavaleiros, tão parecidos nos nomes, e tão distantes nas ações.

— Valha-me Deus! — disse a sobrinha — saber Vossa Mercê tanto, que, se fosse mister, podia numa urgência subir ao púlpito ou ir a pregar por essas ruas, e com tudo isso cair numa insensatez tão óbvia, que dê a entender que é valente, sendo velho, que tem forças, estando enfermo, e que endireita tortos, estando derreado pela idade, e sobretudo que é cavaleiro, não o sendo, porque, ainda que o possam ser os fidalgos, nunca o são os pobres!

— Tens muita razão, sobrinha — respondeu D. Quixote — e a respeito de linhagens, poderia eu dizer-te coisas que te fariam espanto; mas, para não misturar o divino com o profano, não as digo. Olhai, queridas, a quatro espécies de linhagens (atendei bem) se podem reduzir todas as que há no mundo, e vem a ser: umas, que tiveram humildes princípios, e se foram estendendo e ampliando até chegar à suma grandeza; outras, que tiveram princípios grandes, e os foram conservando, e conservam e mantêm no mesmo pé em que começaram; outras, apesar de haverem tido grandes princípios, acabaram em ponta, como uma pirâmide, havendo diminuído e aniquilado o seu princípio até parar em nonada, como o é a ponta da pirâmide que, em comparação com a sua base ou assento, nada é; outras há, e são estas as mais numerosas, que nem tiveram bom princípio, nem meio razoável, e terão dessa forma o fim sem brilho, como a linhagem de gente plebéia e ordinária. Das primeiras, que tiveram princípios humildes e subiram à grandeza que conservam agora, sirva de exemplo a casa otomana, que de um humilde pastor, que lhe deu origem, está no auge em que a vemos; da segunda, que teve princípio em grandeza e a conserva sem a aumentar, dou para exemplo muitos príncipes, que o são por herança, e a conservam, contendo-se pacificamente nos limites dos seus estados; e dos que principiaram grandes e acabaram em ponta, há inúmeros exemplos, porque todos os Faraós e Ptolomeus do Egito, os Césares de Roma, com toda a caterva (se assim se lhe pode chamar) de infinitos príncipes, monarcas, senhores, medos, assírios, gregos e bárbaros, todas estas linhagens e todos estes senhores se aniquilaram, porque não será possível encontrar agora nenhum dos seus descendentes, e, se os encontrássemos, seria em baixo e humilde estado. Da linhagem plebéia não tenho que dizer, senão que serve unicamente para acrescentar o número dos que vivem, sem que mereçam outra fama nem outro elogio as suas grandezas. De tudo isto quero que infirais, minhas tolas, que há muita confusão entre as linhagens, e que só parecem grandes e ilustres as que o mostram ser na virtude, na riqueza e liberalidade dos seus representantes. Disse virtudes, riquezas e liberalidades, porque o grande que for vicioso será um grande vicioso, e o opulento não liberal será um avarento mendigo, que ao possuidor das riquezas não o faz feliz o possuí-las, mas sim despendê-las, e não o gastá-las como quiser, mas saber empregá-las bem. Ao cavaleiro pobre não lhe fica outro caminho para mostrar que é cavaleiro, senão o da virtude, sendo afável, cortês, comedido e serviçal, não soberbo, nem murmurador, nem arrogante, e, sobretudo, caritativo, que com dois maravedis que ele dê, com ânimo alegre, se mostrará tão liberal, como o que dá esmola com toque de sinos, e não haverá quem o veja adornado das referidas virtudes, que, ainda que o não conheça, deixe de o considerar homem de boa casta, e sempre o louvor foi prêmio da virtude. Há dois caminhos, por onde os homens podem chegar a ser ricos e considerados: um é o das letras, o outro o das armas. Eu, pela inclinação que tenho para as armas, vejo que nasci debaixo do influxo do planeta Marte, de forma que me é forçoso seguir por esse caminho; por ele hei-de ir, mau grado a toda a gente, e debalde vos cansareis em persuadir-me a que não queira o que os céus querem, o que a fortuna ordena, o que pede a razão, e, sobretudo, o que a minha vontade deseja; pois sabendo, como sei, os inúmeros trabalhos que tem a cavalaria andante, sei também os bens infinitos que com ela se alcançam, e sei que a senda da virtude é muito estreita, e o caminho do vício largo e espaçoso, que os seus fins e paradeiros são diferentes, porque o do vício, dilatado e espaçoso, acaba na morte, e o da virtude, apertado e íngreme, acaba em vida, e não em vida que tenha termo, mas na vida eterna, e sei como disse o nosso grande poeta castelhano:

Conduz-nos esta aspérrima vereda
da imortalidade ao alto assento,
aonde não chega quem dali se arreda.

— Ai! desditosa de mim — disse a sobrinha — que também meu tio é poeta; tudo sabe e tudo alcança, e aposto que, se imaginar ser alvenel, fabricará uma casa como ninguém.


Miguel de Cervantes y Saavedra, (1547-1616), Don Quijote de la Mancha

 


segunda-feira, 12 de março de 2012

aquela palavra que diz tudo, não é uma palavra
gostava de saber o que é a fome, mas na minha sala apareceu-me a raiva. foi a criatura mais assustadora que enfrentei. a raiva, com os seus olhos vermelhos, a carne líquida e pegajosa a escorrer-lhe dos ossos, a tropeçar nos longos cabelos brancos, ralos, a raiva destruiu-me a sala. e eu fiquei quieta, no meu canto, enquanto ela mordia os meus amigos e me rasgava as pinturas, com garras afiadas e me mordia as palavras com dentes como punhais e me partia as mesas e os instrumentos de música e me queimava os livros com vómitos de fogo, a família pintada de cinzentos, a raiva entrou-me na sala e destruiu-me a casa e eu fiquei a olhar, quieta, olhos negros crivados nos olhos vermelhos da raiva, a sala a ser destruída, lá se vão as pinturas, os livros, as fotografias, os amigos foram-se, a família cinzenta, os que ficaram, deixei de os ver, mas ouvia-os, em sólida voz, mesmo com as palavras a quebrarem-se, os candeeiros a arderem. gostava de saber o que é a fome, disse eu à raiva e a raiva continuou, anos a fio, a partir-me tudo. mas o que é a fome, perguntei-lhe, olhos negros crivados nos olhos vermelhos, pensativa, diz-me o que é a fome. não havia mais nada para partir e só há raiva onde não há fome. a raiva fitou-me, exausta. o que é a fome? perguntei-lhe. a raiva saiu da minha sala, nunca fora convidada, a tropeçar nos seus longos cabelos brancos, a carne líquida a escorrer-lhe dos ossos, a casa destruída, a sala, os livros, a música, os amigos, a família, a raiva saiu-me da sala, exausta, a tremer.










Os que avançam de frente para o mar
E nele enterram como uma aguda faca
A proa negra dos seus barcos
Vivem de pouco pão e de luar.

Sophia de Mello Breyner

quinta-feira, 8 de março de 2012

Todas as árvores nascem de uma semente. Menos a primeira árvore, cuja semente se transformou em semente por força de um sonho. É isso que os sonhos fazem. Criam impossibilidades. Os sonhos não são sementes. São caos. São desorganização e energia. Até que alguém pegue neles e crie com eles uma semente. Ou um ovo. São impossibilidades à partida, porque tudo ao redor deles, o que já é, luta contra eles. Isto porque a nova semente, o novo ovo, irá, com o tempo, destruir tudo o que é.

As crianças sabem sempre o que querem ser, quando forem grandes. Também eu, quando criança, o sabia. O problema é que nunca fiquei grande. Quando permanecemos crianças, não sentimos necessidade de transformar os sonhos em realidade. Continuamos a sonhar e os sonhos vão mudando e, com a ajuda dos que nos rodeiam e já não têm sonhos, mais pequenos. Quanto mais pequenos os sonhos, maior a quantidade. São niquitos de sonhos. Como pirilampos. São aos milhares, talvez biliões. Mas tão pirilampos e fugazes que nem damos conta deles, desaparecem antes que consigamos tocar-lhes, mas mantêm o nosso interior vivo e iluminado. Porque são muitos biliões de pirilampos.

Hoje é um dia especial, porque todos os pirilampos se uniram e criaram um sonho maior, assim como um elefante. Não é possível ignorar um elefante, mesmo que um elefante bebé. Quando surge o elefante, já nada consegue parar essa visão. Até hoje, os pirilampos eram esmagados debaixo de sapatos crescidos, mas não é possível os sapatos esmagarem um elefante. Até porque o elefante é invisível para os sapatos. A única mente que o vê é a mãe dos pirilampos e sonhadora do elefante. O elefante começa a andar e espera pela sonhadora. Ela terá de o acompanhar. A mãe dos pirilampos caminha agora com o elefante. Neste novo caminho, a mãe dos pirilampos terá de aprender a manter o elefante vivo, porque o elefante é a semente do caos.



sexta-feira, 2 de março de 2012

o ideal de um cão é, sem dúvida alguma,
uma cadela.
o ideal de uma cadela é, sem dúvida alguma,
um cão.

fazem muito barulho e têm muitas crias.

silenciosos, precisos, exactos são
os lobos.

por isso os matam.

quarta-feira, 29 de fevereiro de 2012





Ai Orpheu, Orpheu! Por vezes temos mesmo de ir ao Inferno resgatar o Amor.

quarta-feira, 15 de fevereiro de 2012

Enquanto a única diferença entre o senhor e o escravo for a mão que segura o chicote, homem algum será livre.

sábado, 4 de fevereiro de 2012

quando tudo o que os alimenta é o sangue dos outros, porque não têm uma mulher que os ame, ou um filho que os admire, ou um único amigo em quem possam confiar, têm apenas o sangue dos outros, e os contratos que lhes permitem bebê-lo, porque não vêm a estrela do norte, a lua ou o sol, vêm apenas o vermelho escuro do sangue dos outros, que bebem sôfrega e amargamente, é natural que fiquem cada vez mais feios, chupados, com olheiras, porque o sangue dos outros bebe-os a eles.

[a propósito da entrevista a Ricardo Espírito Santo Salgado, presidente do Banco Espírito Santo 
e outros vassalos que quereriam ser como ele, sei lá eu porquê]

terça-feira, 31 de janeiro de 2012

Porque já ninguém olha para ela.

North Star May Be Wasting Away




quinta-feira, 19 de janeiro de 2012

Constituição da República Portuguesa, Artigo 21.º, Direito de resistência

Todos têm o direito de resistir a qualquer ordem que ofenda os seus direitos, 
liberdades e garantias e de repelir pela força qualquer agressão, 
quando não seja possível recorrer à autoridade pública.


Os menos afoitos podem exercer o seu direito da segunda forma mais bela: sorrindo. Quanto aos mais afoitos, deles tudo e nada se pode esperar. Podem tudo, até o nada mais belo.



terça-feira, 17 de janeiro de 2012



eles, os donos, cangam os
criados, vós, cangais os
bois, nós, não cangamos o
touro, ele, não (te) canga
tu cangas(te),
eu não me cango,
ca(n)ga-te



quarta-feira, 11 de janeiro de 2012

a vulgaridade é sempre premiada com um estrondoso aplauso


 

A que regressamos? Porque regressamos? Porquê o aparentemente infinito regresso a não sei que ponto de não sei que céu? Que melodia é esta que nos une e separa, que pulsa e nos pulsa e nos toma o pulso? E porque é que pergunto, se tudo o que escuto é um eco?

surda. devo estar surda. cega. tudo se confunde, letras, imagens, criaturas, vivências, memórias. fecho os olhos à noite e viro-os para dentro              então        
                     vejo o universo. por vezes é preto e adormeço logo. por vezes tem estrelas e galáxias, como a música que me mantém desperta, quando tem cores, sossego, as cores e as batidas de coração nas partículas, um silêncio estrondoso, melodioso, tudo nasce e morre, a conhecer-se, a conhecer-se, a conhecer-se. eco. ecoo em tudo. tudo ecoa em mim. regresso. não sei se dormi.



To what do we return? Why do we return? Why the seemingly endless return to "I do not know which point of I do not know which heaven"? What music is this that binds and separates us, that pulses and senses us and experiences us? And why do I ask if all I hear is echo?

deaf. i must be deaf. blind. everything merges, characters, images, creatures, lives, memories. i close my eyes at night and turn them inside. then
i see       the universe. sometimes it is black and i fall asleep instantly. sometimes it has stars and galaxies, as the music that keeps me awake. if it has colors, i rest. the colors and heartbeats in  particles, an astounding, melodic silence. everything is born and dies, knowing itself, knowing oneself, knowing the self. echo. i echo in everything. everything echoes in me. return. i can not tell if i ever slept.



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