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A leitura da Bíblia não tinha grande êxito. Ela considerava-a uma coisa primária, boa só para crianças. A mensagem da Bíblia era simples, e qualquer pateta a podia compreender em meia hora! A religião consistia em fazer coisas, não na leitura de coisas feitas. Uma vez recebida a mensagem, era inútil relê-la cem vezes. O cura da nossa paróquia ficou surpreendido quando interrogou Ana acerca de Deus. Foi esta mais ou menos a conversa:
- Acreditas em Deus?
- Acredito.
- Sabes quem é Deus?
- É Deus.
- Costumas ir à igreja?
- Não.
. Porquê?
- Porque já sei aquilo tudo.
- O que é que sabes?
- Sei amar o Tio Deus, amar as pessoas, e os gatos, e os cães, e as aranhas, e as flores, e as árvores... - a lista nunca mais acabava - ... com todo o meu coração.
Carol riu-se para mim, Stan fez uma careta e eu meti à pressa um cigarro na boca, disfarçando o riso com um ataque de tosse. Não havia nada a fazer perante esta acusação. Porque era uma acusação (Deus fala pela boca das crianças). Ana passara por cima de todo o acessório e resumira séculos de sabedoria numa simples frase: "E Deus disse: ama-me, ama-os, ama tudo,e não te esqueças de te amar a ti próprio."
Aquele costume de os adultos irem à igreja enchia Ana de suspeitas. A ideia do culto colectivo ia contra o sentido íntimo das conversas que ela tinha com Deus. Quanto a ir à igreja para se encontrar com o Tio Deus, era absurdo. Se ele não estava em toda a parte, então não estava em parte nenhuma. Não via a relação entre a igreja e "falar com o Tio Deus".
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- Toda a gente tem os seus pontos de vista, compreendes? O de cada um. Mas o Tio Deus não tem. O Tio Deus só tem "pontos para ver".
Outro dos livros da minha vida. Que posso dizer sobre ele? Li-o, era ainda eu própria uma criança e foi como uma chave que abriu uma porta e eu entrei e nunca mais voltei para trás. É-me difícil escolher excertos para aqui colocar. Lembro-me de tudo, de encontrar neste livro as respostas para as perguntas que tinha e que os adultos não conseguiam responder. Claro que caminhei muito e estou longe, agora, mas este foi o princípio. Este livro. Uma libertação da ignorância dos adultos.
Este ano levei a minha sobrinha à Feira do Livro e ela escolheu cinco livros. Houve quem me perguntasse se eu já os tinha lido. Disse que não. Então, e deixaste que ela os trouxesse? Sim. Não se deve escolher os livros para outra pessoa. Quando muito, pode-se recomendar. Por acaso, um dos livros que ela trouxe foi recomendado por mim, mas tenho a certeza de que será o último que ela lerá, se é que alguma vez o lerá. Cada criança deve poder escolher os seus livros. Cada criança tem o seu próprio caminho a seguir.