Há muitas eras atrás, vivia no Ribatejo um Rei foragido. Ele era um foragido, porque embora tivesse nascido Rei, nunca o tinha querido ser. E assim, quando a ocasião se proporcionou, pela calada de uma certa noite, aparelhou e montou o cavalo que havia pertencido a seu Pai, o Rei-Surdo e cavalgou, cavalgou, até chegar ao Ribatejo. Aí, soltou o cavalo, que imediatamente se sentiu em casa com os seus amigos Lusitanos selvagens, e refugiou-se numa pequena casa de cal, abandonada.
O sonho dele era ser Poeta. Não podia ser Poeta, sendo Rei. Começou por
recuperar a casa abandonada, pois é com o trabalho das nossas mãos que a
poesia começa a formar-se, dentro da nossa cabeça. A casa era pequenina. Tinha
um quarto, que também era sala, com uma lareira de pedra. Estava em muito mau
estado, mas o Poeta voltou a caiá-la por fora e a pintá-la por dentro, removeu
todo o entulho e com a madeira abandonada no terreno circundante, construiu a
cama, a mesa, as cadeiras e até uma escrivaninha, para poder escrever.
O meu nome é Menahel. Já apareci noutras histórias. Preocupei-me com este
Rei-Poeta, pois estava sozinho e esquecia-se de comer. Mal a mesa ficou
pronta, passei a deixar todas as noites em cima dela um pão e uma garrafa de
vinho que surripiava das quintas vizinhas. O Rei-Poeta comia e bebia, e nem se
lembrava de perguntar como é que o pão e o vinho tinham aparecido na sua mesa.
É natural. Afinal, tinha sido criado como Rei. Estava habituado a ser servido.
Quando terminou os trabalhos de recuperação e carpintaria, sentou-se pela
primeira vez à escrivaninha, com o pergaminho, pena e tintas que trouxera do
palácio do Rei-Surdo e preparou-se para escrever o seu primeiro poema. Estava
uma bela tarde nas Lezírias. Era Verão e estava calor, mas dentro da casinha
caiada de branco estava fresco. Pela porta e janelas abertas entrava uma brisa
cheia dos aromas da terra e dos frutos maduros. O Poeta mergulhou a pena na
tinta, aproximou-a do pergaminho… e ficou paralisado. A tinta pingou um enorme
borrão no pergaminho.
Bem, é preciso dizer que este Poeta não acreditava nem nas musas dos poetas,
nem em fadas, nem mesmo no Pai Natal. Muito menos em anjos ou unicórnios ou
cavalos alados. Nem tinha reparado nas asas do cavalo de seu Pai. Afinal,
tinha sido educado como Rei. E os Reis são educados para acreditarem apenas no
poder e na divindade do seu sangue azul.
Fiquei novamente preocupada com o Poeta. Como iria ele escrever o seu primeiro
poema, se durante a infância os seus educadores tinham afastado dele todas as
musas, fadas, anjos e unicórnios? Eu era apenas uma fada. Não podia
inspirá-lo. Quando muito, podia alimentá-lo. Esperei, muito sossegada, no
canto da lareira, enquanto via os borrões encherem o pergaminho. Até que o
Poeta chorou. Foi então que a Musa dele regressou. Surgiu da casa caiada,
linda e branca, como uma inspiração e sentou-se no seu ombro. Não resistiu às
suas lágrimas e muito menos aos borrões. Estava zangada com ele, e por isso
decidiu que nunca nenhum dos seus Poemas teria título algum, pois também o
Poeta não conheceria o nome da Musa rejeitada, que regressava agora. Assim, o
primeiro poema que escreveu não tem título, como nenhum dos outros que
escreveu depois, chamou-se apenas: Sem título (00) e, sem que ele o saiba, foi
escrito e dedicado à Musa branca e linda, fruto do trabalho das suas mãos,
renascida da sua casa de Poeta.
E durante anos e anos, alimentado por uma fada e inspirado pela Musa branca, prosseguiu com a sua Poesia, ao ritmo de apenas dois poemas por mês, porque não conseguiu esquecer totalmente a sua educação de Rei e tudo tinha de ser perfeito, poderoso e brilhante, como o trono e coroa que rejeitara. Não foi Rei-Poeta, mas foi Poeta-Rei.
E durante anos e anos, alimentado por uma fada e inspirado pela Musa branca, prosseguiu com a sua Poesia, ao ritmo de apenas dois poemas por mês, porque não conseguiu esquecer totalmente a sua educação de Rei e tudo tinha de ser perfeito, poderoso e brilhante, como o trono e coroa que rejeitara. Não foi Rei-Poeta, mas foi Poeta-Rei.