as almas, os pássaros

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quinta-feira, 8 de outubro de 2009

A formação para se ser anjo é das mais difíceis que há. Temos que aprender a amar, a amar sem limites, a amar infinitamente e a saber que de todo o amor que semeamos no munido, nem um só grão de pó será colhido por nós. Temos de saber transformar-nos num mero canal, viver na penumbra, conviver com a nossa invisibilidade aos olhos dos outros. Por isso, quantas vezes nós, os jovens aprendizes, nos não sentamos nos degraus de pedra dos palácios onde vivemos e, com o rosto entre as mãos, choramos… Por isso, também, há tantos anjos que se tornam negros. Não regressam jamais nem à humanidade nem à luz. Perdem-se numa escuridão de dor, sem regresso. E combatem-nos o tempo todo.
O meu nome é Menahel e hoje preciso de vos contar a história de Dítě. Agora dá pelo nome de Oriana, para não ser descoberta. Também ela ganhou as suas asas. Mas não foi fácil. Até porque começou como nereida e não como humana. A mais pequena das nereidas…
Das nereidas, Dítě foi a última a nascer. Era a mais pequena de todas, mas também a mais bela, mais bela até que Anfitrite, e por isso a mãe lhe chamou Dítě e a escondeu dos olhares de Zeus e Poseídon. Era a preferida de seu pai Nereu, do avô Pontos, da bisavó Geia e até do trisavô Caos, que raras vezes se preocupava com a sua descendência. Dítě tinha os cabelos escuros, como Anfitrite, os olhos côr de âmbar, com laivos de esmeralda, enfeitava os cabelos com pérolas, madrepérola e corais vivos de todas as côres e percorria o fundo do mar sempre acompanhada de pequenos peixes dourados e prateados e cavalos marinhos azuis e amarelos. Era muito estimada por todas as criaturas, pois tinha o dom de curar. Onde quer que pousasse as suas pequenas mãos brancas e delicadas, a mácula desaparecia. Nas suas viagens, gostava particularmente de coleccionar pequenos objectos estranhos e aparentemente inúteis e guardava-os sob a concha rosada que lhe servia de cama, o que muito aborrecia sua mãe, Dóris, que não compreendia nem o estranho conteúdo nem a direcção da alma de Dítě e considerava tudo aquilo um monte de pó inútil.
Numa dessas viagens, junto a um jardim de coral sufocado de poluentes, que tinha acabado de limpar e salvar da morte certa, Dítě encontrou um estranho objecto a flutuar na superfície das águas: uma cesta de bambú com uma criança. Como forma de agradecimento, os corais tinham decidido retribuir com uma explosão de fecundação-reprodução e foi difícil para Dítě navegar por entre a nuvem alegre e brilhante e agarrar a cesta. Mal pousou os olhos na criança do sexo masculino, viu no seu futuro, com o dom da sua visão, um amor sem limites e decidiu chamar-lhe Amadis. Pousou-lhe as mãos no peito e deu-lhe a capacidade de respirar sob as águas para o poder transportar para o palácio de seus pais e partiu, a grande velocidade, pois tinha sentido a fome no minúsculo ser.
Chegada ao palácio, Dìtě depositou Amadis sob a sua concha, junto aos seus preciosos tesouros, e foi a correr buscar Gandales, o pai de todos os cavalos-marinhos. Gandales não tinha idade e era sábio e saberia como alimentar a criança. Foi difícil para Dìtě arrancar Gandales dos seus trabalhos, pois tinha acabado de nascer uma nova ninhada de cavalos-marinhos, mas Dítě tanto implorou que Gandales acabou por a seguir. Ao ver Amadis deitado na sua cesta, Gandales mandou de imediato chamar Urganda, a mãe de todos os golfinhos, e foi esta que o alimentou.
Amadis cresceu muito depressa com o leite de Urganda e os cuidados e ensinamentos de Gandales. Assim que Amadis atingiu a idade adulta, Dóris, que até ao momento tinha ignorado o que considerava mais uma loucura da sua filha mais nova, apercebeu-se do amor que surgia entre ele e Dìtě. Resolveu então que tinha chegado o momento de devolver aquele humano frágil e inútil, como o restante pó que a filha guardava debaixo da cama, à procedência. Como sabia que Dìtě não o iria permitir e para evitar uma nova guerra com a filha predilecta de Nereu, mandou chamar em segredo Arcalaus, o mais engenhoso dos feiticeiros, e encarregou-o de raptar Amadis em segredo e de o levar para bem longe dali, para perto do continente asiático. Arcalaus tinha como missão depositá-lo nos braços de Endriago, o pai dos furacões. Este saberia onde o deixar, de modo que Dìtě não pudesse jamais voltar a encontrá-lo. Jamais.
Naquela noite, Arcalaus pegou em Amadis, profundamente adormecido com um feitiço negro, e transportou-o durante milhares de quilómetros pelo Mediterrâneo, Atlântico e Índico. No meio do Índico, encontrou-se com Endriago e atirou-lhe para os braços o corpo adormecido do amado de Dìtě. Mal saiu das águas para os ventos, a respiração de Amadis cessou. O seu corpo tinha-se habituado ao elemento aquoso e já não podia respirar nos ares. Nem Arcalaus, que de imediato se pusera de regresso a casa, nem Endriago, prestes a abater-se violentamente sobre o Japão, deram por nada. Mas Dìtě acordou subitamente, sem conseguir respirar. O que Dóris não sabia, porque nunca entendera Dìtě ou os seus poderes, é que a filha, ao partilhar com Amadis a capacidade de respirar e viver na água, ficara ligada a ele para viver e morrer com ele. Dìtě levou as mãos à garganta, absolutamente consciente do que estava prestes a acontecer. Não conseguia sequer gritar. Mas Urganda, que amamentara Amadis em criança, soube de imediato o que se passava e acordou subitamente. Como um raio de luz, precipitou-se para Dìtě, atirou-a para o seu dorso com as suas fortes barbatanas e dirigiu-se a uma velocidade louca para a costa do Japão.
Deixou Dìtě quase inconsciente com as mãos agarradas aos pés de Endriago, lívidas de tanta força que era necessária para os segurar, afastou-se e aguardou, a tremer. Urganda não tinha poderes para enfrentar o pai dos furacões. Com o seu último suspiro, Dìtě torceu e mordeu até rasgar os pés de Endriago. Este gritou de dor e foi devolvido aos céus, deixando cair Amadis no mar.
Dìtě teve apenas tempo de o agarrar rapidamente e mergulhar com ele, o mais fundo que conseguiu. Perdeu de vez a consciência e ambos caíram que nem pedras em direcção ao leito do oceano. Urganda seguia-os com dificuldade, pois esgotara toda a sua energia naquela última viagem. Quando chegou perto deles, ambos jaziam inertes sobre os corais. Urganda chorou, pois sentiu que, por mais rápida que tivesse sido, não tinha conseguido levar Dìtě a Endriago a tempo de ela salvar Amadis e assim se salvar a si própria. Agora, estavam ambos mortos. O seu canto triste, de profunda agonia, acordou os corais.
Só que alguns daqueles corais eram descendentes dos que Dìtě um dia salvara e reconheceram imediatamente aqueles que estavam pousados sobre eles.
A fecundação e reprodução dos corais tem os seus mistérios. Quando acontece, os recém-nascidos captam as energias e poderes mágicos que existem em seu redor. E passam essas energias e magia de geração em geração.
Estes corais, em particular, eram muito poderosos, pois tinham herdado de Dìtě o dom da cura e de Amadis o amor sem limites. Com um impulso totalmente incontrolável de amor e vontade de curar, explodiram sobre os corpos de Dìtě e Amadis, sacrificando a própria vida pela dos dois amantes. Urganda viu apenas uma nuvem brilhante e densa cobrir os dois corpos e no momento seguinte todos os corais tinham desaparecido e Dìtě e Amadis estavam nos braços um do outro, os pulmões de ambos de novo em uníssono e ritmado movimento. Inspira, expira, inspira, expira, inspira, expira… com a água do mar a fluir entre um e outro.
Nenhum dos três regressou a casa. Ouviram-se histórias, no fundo do mar, de que Nereu terá matado Arcalaus e mandado prender Dóris. Mas podem ser apenas histórias. Dìtě adoptou o nome de Oriana, o preferido de Amadis, e dedicou o resto da sua vida ao amado e à protecção dos corais do Índico. Urganda ficou, pois Amadis tornara-se seu filho e já não podia separar-se dele. Quanto a Amadis, ganhou o gosto de Dìtě por coleccionar objectos estranhos e em oceano algum havia mais objectos estranhos do que ali mesmo, no Índico.
Foi precisamente sobre os objectos que ambos coleccionavam que Dìtě-Oriana resolveu começar a escrever contos de fino recorte. Escreve sobre jarros jomon, espantalhos, porcelanas Imari e Satsuma, bolas de neve, bules de ferro de Ashiya, bolas de cal, máscaras de laca, conchas, taças de bambu dourado, chávenas de café, peças Ukiyo-e, ligaduras, dogus, arrumadores de carros, dobokos, pratos de balança, gravuras Shin-Hanga, relâmpagos, dotakus, labaredas, kanjis, jóias, kimonos de seda, pó, kongokais, casacos, mandalas, sépia, kirikanes…
E nós, simples humanos, deliciamo-nos com os seus contos, que são depositados pela espuma do mar nos sítios mais inesperados. Por exemplo, aqui?...
 

[Nota: Alguns dos nomes dos personagens foram inspirados no único romance de cavalaria português, Amadis de Gaula, romance datado provavelmente de finais do século XIII, pertencente ao ciclo arturiano, de autor desconhecido. Há fontes que indicam que o primeiro autor foi um tal de Vasco de Lobeira, armado cavaleiro na batalha de Aljubarrota ou João de Lobeira. Os outros nomes de personagens foram inspiração da mitologia grega. Os objectos de nome japonês encontrados por Amadis, são na sua maioria objectos de arte, cujo significado, para quem seja mais curioso, pode ser encontrado na Internet. Só uma pequena curiosidade: em checoslovaco, Dìtě significa “criança”. No conto significa “de pura essência”.]


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