as almas, os pássaros

as almas, os pássaros

as almas, os pássaros

as almas, os pássaros

sexta-feira, 31 de julho de 2009



Uma muralha púrpura de água prenhe de memórias, sombras negras dos cadeados, das fechaduras, das correntes, riscos lilases luminosos dos segredos arrefecidos, como chamas moribundas, ergue-se a toda a largura da foz, a sua imensidão desequilibra-me, deixa-me tonta, quase embriagada de imaginar atravessá-la, beber dela, afogar-me nela, preferia voar, onde estão as asas? para voar precisas da leveza, ossos ocos e toda uma melodia aérea de corpo - que não tens quando a tristeza do lodo do rio te abraça venenosa a alma, as asas estão presas no leito do rio, descoladas do corpo, adiadas, a vida pesa como chumbo neste rio que devagar vou odiando cada vez mais, fujo para as margens, arquejos saltam-me do peito, fecho a boca, furiosa, corro para a floresta, percorro a correr toda a álea de palmeiras, o vento está quente, o verão prestes a morrer e a matar a esperança, como me irrita essa palavra, esperança, tanto como a palavra espera, corro, por isso é que corro, o vento traz-me o perfume das árvores e das flores, beija-me os pulmões, sento-me nos degraus de pedra do pequeno palácio escondido, em ruínas, estou quase em casa, aqui estou quase em casa, regresso devagar, abraço as árvores, enfrento a muralha na margem do rio.
um dia, com ou sem asas, irei para além de ti, coisa brutal... ou talvez descubra simplesmente que não existes.

Fonte da imagem: kendraseward

quinta-feira, 30 de julho de 2009



Por vezes solto-me do mundo, do rio. Paro à beira da estrada e mergulho numa pedra qualquer. Vejo a dor. Sintonizo-me com ela. Pedra cinzenta e negra, de respirar tão lento, que é quase como se pudesse não existir. Mas está ali. Nasceu de um vulcão e é lenta, apenas. Dor, como os outros. Então, o mundo desaparece e surge na pedra, em toda a sua plenitude inútil. Respiro fundo e toco-lhe. Surge este louco sonho de salvar a pedra e salvar o mundo. Interrompo a luz e chove. O frio desce sobre a estrada, a humidade inunda os ossos e congela a seiva. O tempo pára. O mundo à deriva, numa pedra. Vertigem. Tudo numa pedra. Solidão. As eras pesam-me, como mantos de lama. Apaixono-me pela pedra. Está tudo ali: as extinções em massa, as guerras, a fome, a morte. Tudo numa só pedra. Toco-lhe, tão ao de leve, e exorto-a: sê!

Então, subitamente, a pedra acorda. Sente-se o centro do universo e é-o, de facto, por um instante. Olha para mim, a luz eterna, e ri-se. Ri-se de mim, que reparei nela, na sua miséria, no seu negrume vazio que foi algo, talvez, no momento em que o meu olhar nela pousou. Mas o que faz a pedra? Incha. Ao inchar, esmaga-me. Tão forte e tão frágil sou.

É então que surge o abismo. Do inchaço da pedra, da sua vulgaridade, da sua ignorância, da sua fria e estúpida insensibilidade de pedra. Negro, imenso, magnético. A pedra vê-me cair e ri-se, uma última vez. Precipito-me no vazio, em voo picado. A velocidade é tal que as asas se rasgam, bocados esparsos de céu regressam à fonte. A luz da minha respiração destrói a prisão adivinhada. A energia do meu corpo embate, finalmente, contra o fundo, que aguarda, faminto, com mil e um rochedos afiados, como gumes de espadas rombas.

Tudo desaparece. Nasce um novo dia. O verão será curto este ano. Ou talvez nem exista, aqui onde permaneço. Milhões de pequenas partículas regressam ao mundo. Ninguém dá por elas. Minúsculas. Debaixo do meu voo, o abismo cerra-se, as espadas de novo adormecidas.



quarta-feira, 29 de julho de 2009


Os ramos de árvores despidos que nos lembram
o nada. Sobretudo na fase de exaltação
do espírito. Com a cabeça encostada
aos vidros altos.

Simultaneamente procurar o centro
da irradiação. O Sol matinal com os seus hiatos
preenchidos por casas. Ameias onde se
invertem os vértices do horizonte.
Sol magnânimo

fixo sobre as árvores abençoadas sem
folhas. Infinitos pormenores visíveis e
espaços audíveis preenchem a hora exaltada.
Ponto profusamente cheio. Um fino
silêncio exterior

sinal do nada circundante. Graveto
junto de graveto cruzados para além do fim
da perspectiva. Um significado diverso
naquelas ameias em outros planos. O nada
sempre coeso. Uma respiração intangível
e sem sombras.


Fiama Hasse Pais Brandão in Nova Natureza



Compreendo cada vez melhor que cada um de nós cria o seu próprio mundo. Ligados. estamos todos ligados, mas somos como Ilhas. não conseguimos chegar ao que nos liga: amor, separados por: ódio, medo, barro. o meu mundo é diferente do Teu e vivemos lado a lado. não consigo ligar-me à tua Ilha, crio Uma, esta é diferente, Ideal, não és Tu, Tu não estás mais aqui. é de madrugada, quando me refugio no sono-sonho onde te encontro, a Ti. estás sempre comigo em todas as Madrugadas esvaziadas da matéria-fronteira, sombras, onde apenas o meu Desejo impera, falo Contigo, sorrio para Ti, Tu sorris para mim, Tu, que mal sorris, sorris, adormecemos abraçados, Um. os dias, as horas, os anos, já nada me dizem, vivo para as madrugadas Contigo, onde o meu Mundo se torna real e o meu Mundo és Tu: aí, Mulher-plena, deslizo pela Foz e saio para a Luz do Mar. regressar à foz é-me cada vez mais difícil, um dia abandono-me à Loucura, tão frágil a fronteira, prefiro as sombras, idealizo-Te? não, és Tu sem mácula, sem dor, como vieste ao mundo a primeira vez, não nesta vida, a primeira de todas, o que vejo em Ti e desejo absolutamente e está fora do meu alcance, Tômâ. e no entanto, todas as madrugadas, chego lá, a Ti, e não há mácula nenhuma, é apenas Fogo e Terra a derramar-se na Água, que então se ergue e dança no Vento, Um.

terça-feira, 28 de julho de 2009


Quando passa o tempo, as coisas
retornam aos elementos. E as cria-
turas. Para a transformação
final. Mas nem o fim
permanece. O cardume dos lagos
que morre embranquecido
por fim é de água. Os boquilobos
multicolores na beira das áleas
caem na terra e são terra.


Fiama Hasse Pais Brandão, in Três Rostos - Ecos


O rio não dialoga senão pela alma
de quem o olha e embebeu a sua alma
de olhares ribeirinhos no passado
ou à flor do pensamento no futuro.

É um país que fala dentro da fronte,
olhando as naus, navios, barcos pesqueiros
e o trilho das famintas aves pintoras
de riscos negros, que perseguem o odor
das redes cheias, as outrossim poéticas
familiares gaivotas. É uma costa inteira
de imagens de gaivotas dentro dos olhos.
São bocas a pensar razões da vida,
gargantas já caladas pela nascença e morte,
quando entre si se vêem ou juntas olham
o mar dos seus próprios dias. São cabeças
velhas de labutar, entre dentes cerrados,
as palavras mudas de um ofício no mar,
antigas de silêncio, como se no esófago
guardassem há muito a sabedoria de ir
enfrentar o mar, transpor o mar, estar.

Tal como um rio o mar só quer falar
pela dor e alegria de alma com que o chama,
há séculos na orla, um povo mudo,
com as palavras presas, guturais sem fôlego,
dentro de si, tão firmes no palato, articuladas
na língua interior. E o mar é quieto ou bravo,
e a alma tensa de uma paixão secreta,
escondida atrás da boca, e sempre aberta,
tal como as pálpebras diante desta água.

Só a alma sabe falar com o mar,
depois de chamar a si o Rio, no imo
de cada um, recordações, de todos
os que cumprem na linha da costa o seu destino.
O de crianças, berços nascidos à beira-mar,
aleitadas por água marinha bebida por rebanhos,
alimentadas por frutos regados pela bruma.
Mesmo quando petroleiros, se olharmos o mar,
passam sem som na glote, para nós mesmos dizemos
que o tempo já findou das caravelas outrora
e dentro do nosso sangue passa o tempo de agora.

Também as varinas, fenícias áfonas no poema
que as canta, sabem as formas, pelo olhar,
de serem mulheres com peixes à cabeça.
E os pregões que eu calo, revendo-as, eram outra
língua do mar, os nomes com que nos chamam
para o seu modo de levar entre as casas o mar.
Mas as dores não as ecoa o mar, nem mesmo
as de poetas, só as pancadas das palavras
no encéfalo parecem ser voz do mar.

É uma nação única de memórias do mar,
que não responde senão em nós. Glórias, misérias,
que guardámos por detrás do olhar lírico
e da língua, a silabar dentro da boca.
Nunca chamámos o mar nem ele nos chama
mas está-nos no palato como estigma.


Fiama Hasse Pais Brandão in Cena Vivas, Relógio d´Água

domingo, 26 de julho de 2009


Nos traços quentes e perecíveis de um rosto a água deixa sulcos profundos e escuros, antiga perenidade gravada no vivo dos ossos malares, que os dedos frios tentam apagar. Não tem conserto, a água não pára, jorra de um abismo antigo, sem memória, vai desfazendo os ossos, a carne, a pele, vem de dentro, do fundo, do antes, corroendo o que respira, os ossos ardem? não sei, são duzentos e seis, a água é travada nos ombros, como se estes fossem dunas rebeldes, poderias consertar-me agora? dos ombros para cima, onde as dunas travaram a água, poderias consertar-me? não. o estrago é tão perene quanto a alma. por isso, com tudo o que sobrevive para lá das dunas danço, com tudo o que morre, canto.


sábado, 25 de julho de 2009



Um dia renasceu e tinha um irmão. Por causa desse irmão, esqueceu-se também de quem era. Cresceram juntos. Nas horas livres, corriam pelas praias atrás das gaivotas e dos caranguejos, deslizavam nas rochas cobertas de algas verdes e macias, coleccionavam conchas. Viviam na ponta mais ocidental da terra, para além da qual só havia mar. Uma terra ainda livre e intocada. O povo era rude e taciturno, a paisagem agreste, a comida escassa. À medida que crescia, recuperava os seus dons. Aprendeu a curar com mãos e plantas. Os campos tornaram-se férteis e a água doce brotou das rochas. As flores desabrochavam nos caminhos que pisava. Não havia lobo que comesse uma ovelha na sua presença. Quando atingiu os quinze anos, tal como a água brotara das rochas, também três rios prateados nasceram entre os seus cabelos negros. E foi então que chegaram os padres. Vinham vestidos de escuro, com capuzes e cruzes e rodeados de cavaleiros vestidos de ferro. Quando os viu pela primeira vez, mil pássaros enlouqueceram dentro dela e a sua energia estilhaçou-se, como vidro quebrado.

- O que tens? Perguntou Idevor, a remexer na areia com um pau.
Viria limitou-se a abraçar os joelhos com as mãos e nada disse. O mar espraiava-se diante dos seus olhos, prateado, ondas brancas quebravam-se lá mais longe, o céu carregado a ameaçar temporal. Mas os olhos escuros do irmão fitavam apenas a areia revolta nervosamente pelo pau.
- Não queres ir à missa, no domingo? Mas o pai diz que tens de ir.
- Não percebo nada do que eles dizem., respondeu Viria finalmente. Falam em latim. Porque é que tu vais? Também não percebes nada.
Tentou abraçar o irmão, mas este levantou-se, subitamente, rejeitando os seus braços magros e atirando furiosamente o pau na direcção das ondas.
- Dizem que és bruxa!, atirou-lhe, a voz alterada. E afastou-se rapidamente, deixando-a completamente só. Como quase sempre estivera.

O traje de serapilheira feria-lhe a pele delicada. Os longos cabelos negros tinham sido primeiro cortados e depois arrancados com ódio, mas nem mesmo assim tinham desaparecido os três rios de prata que lhe tinham nascido um dia da alma, que mais pareciam agora três cordões de estrelas. Olhou para trás uma última vez, para o irmão.
- Idevor… a voz falhou-lhe, espantada, na garganta.
- Esse já não é o meu nome!, respondeu-lhe o irmão, a voz seca, os olhos negros a espreitarem por entre o capuz de monge. Os dois soldados, vestidos de ferro da cabeça aos pés, torceram-lhe os dois braços, arrastando-a tão violentamente que lhe deslocaram um dos braços. Mas ela não tirava os olhos do irmão. Pensou Viria também nunca foi o meu nome. Murmurou para si mesma, uma vez mais, o nome do irmão. Idevor. Mas nenhum som saiu da sua garganta. O irmão atirou o capuz para trás, fitando-a e, para seu grande espanto, fitava-a com um profundo amor, como se fosse o seu salvador. Um amor rasgado pela dor. Como estás errado, Idevor… meu Tômânem com espadas, nem com palavras, nem com cruzes ou fogueiras… não adivinhaste ainda o único caminho para a Luz? Tu, que és Luz? E foi este o seu último pensamento, pois um dos guardas deu-lhe um pontapé tão forte na cabeça, que desmaiou. O que sofreu de seguida distorceu-lhe a alma, que só despertaria de novo passados mais de mil anos.


terça-feira, 21 de julho de 2009



Esta é a Hora do Chumbo—
Memória, se prolongado,
Como pessoas que Gelam, recolhem a Neve—
Primeiro—Arrepio—depois Torpor—depois o deixar ir—


[Emily Dickinson]

Entre o torpor e o deixar ir
existe um limbo de sinsépalos cálices
como mãos geladas
Estéril perianto de folhas maceradas

domingo, 19 de julho de 2009


Pain has an element of blank;
It cannot recollect
When it began, or if there were
A day when it was not.

It has no future but itself,
Its infinite realms contain
Its past, enlightened to perceive
New periods of pain.


Tradução:

A dor tem um elemento de branco;
Não consegue recordar-se
Quando começou, ou se houve
Um tempo em que não era.

Não tem futuro a não ser ela própria,
Os seus reinos infinitos contêm
O seu passado, iluminado para reconhecer
Novas eras de dor.


There's a certain slant of light,
On winter afternoons
That oppresses, like the weight
Of cathedral tunes.
Heavenly hurt it gives us;
We can find no scar,
But internal difference
Where the meanings, are.

None may teach it anything,
'T is the seal, despair,
An imperial affliction
Sent us of the air.

When it comes, the landscape listens,
Shadows hold their breath;
When it goes, 't is like the distance
On the look of death.

Tradução:

Há uma certa inclinação na luz,
Nas tardes de inverno
Que oprime, como o peso
Da música das catedrais.
Uma dor celestial nos traz;
Não deixa cicatriz,
Mas uma mudança interior
No lugar dos significados.

Ninguém lhe pode ensinar algo,
É o selo, desespero,
Uma aflição imperial
Que nos cai do ar.

Quando chega, a paisagem escuta,
As sombras sustêm a respiração;
Quando se vai, é como a distância
No olhar da morte.


After great pain, a formal feeling comes—
The Nerves sit ceremonious, like Tombs—
The stiff Heart questions was it He, that bore,
And Yesterday, or Centuries before?

The Feet, mechanical, go round—
Of Ground, or Air, or Ought—
A Wooden way
Regardless grown,
A Quartz contentment, like a stone—

This is the Hour of Lead—
Remembered, if outlived,
As Freezing persons, recollect the Snow—
First—Chill—then Stupor—then the letting go—


Tradução:

Após grande dor, surge um sentimento formal
As Têmperas sentam-se cerimoniais, como Túmulos
O rígido Coração questiona, foi Ele, que suportou,
E Ontem, ou Séculos atrás?

Os Pés, mecânicos, rodam
Da Terra, ou Ar, ou Dever
Num caminho Lenhoso
Descortesmente aberto,
Um contentamento de Quartzo, como uma pedra

Esta é a Hora do Chumbo
Memória, se prolongado,
Como pessoas que Gelam, recolhem a Neve
Primeiro—Arrepio—depois Torpor—depois o deixar ir—

sábado, 18 de julho de 2009


Porque há dias assim, em que me sinto cansada e arrasto a alma fendida pelo chão, com a fúria a gritar na outra mão, quando vejo o que fazem aos meus irmãos.


quinta-feira, 16 de julho de 2009


A desidratação torna-nos quebradiços. Podemos partir-nos em milhões de pedaços e nem dar por isso ou tal ser extremamente doloroso. Para lidar com a desidratação temos de a enfrentar como uma desconstrução e não aproveitar nenhum pedaço daquilo que se partiu. O cálice parte-se, sim. Mas era um cálice de terra, Inês. Barro. Era um cálice imperfeito. Temos de reconstruir-nos, agora, e sim, podes usar o barro, mas tens de o amassar com luz. Inês escutava Alaïs atentamente, o corpo trémulo e dorido, tinha frio e tinha medo, mas escutava-a. Sabia tudo o que tinha de largar e não era fácil. Já não tinha mais lágrimas, rios e mar estavam secos. A luz existe na escuridão, tal como a eternidade existe no tempo. Com o teu corpo formas uma cruz, abraças e colhes, abraça e colhe, mas lembra-te, o que colhes não é aquilo que abraçaste. Abraças no plano do barro e colhes no plano da luz. Só assim poderás construir o cálice perfeito. Pois é assim que se amassa o barro com a luz.


quarta-feira, 15 de julho de 2009


Outrora as palavras corriam líquidas, de uma ilha para outra, de oceano em oceano, no dorso dos golfinhos, luziam no orvalho matinal dos mastros, de alga em alga abraçadas, em canto espraiado de coral para coral, saíam do meu peito como cavalos marinhos, altivas, espuma prateada e branca, pérolas libertas nas penas húmidas das gaivotas em vôos picados, conchas abertas, búzios secretos, sal e plancton, seios em seixos, brilho nocturno fértil na superfície das águas, tinham um destino, as palavras, o teu peito fortificado.

O mar morreu de assalto e as palavras secaram, fossilizadas, jazem num leito de pedra à espera do dilúvio de uma memória que singelamente lhes degole a sede.

domingo, 12 de julho de 2009


Não há calor nem frio neste sítio onde me encontro,
nem luz nem escuridão. Apenas breves sombras
acinzentadas, como pálidos braços
de nevoeiro ondulantes, talvez serpentes adormecidas,
cujos dentes se tenham enterrado no sangue


outrora vermelho, agora igualmente cinzento,
espesso, enlameado.
Não há sentimento ou emoção,
apenas uma espécie de anestesia,
paralisia ou desaceleração, quase morte.
Não existe sequer peso ou leveza,
ou chão, ou caminho ou horizonte ou paisagem,
nem mesmo o tempo aqui sobreviveu.
Não existe vida. No entanto, existe algo.
Eu estou aqui e não estou morta.
Mas não há som, nem tacto, nem cheiro,
apenas a memória do sabor numa certa humidade
na boca e os restos de uma visão queimada.
Não estou adormecida. Não estou acordada.
Nada sinto. Estou mortalmente cansada.
Pedra vegetal. Dormente.


De repente fui despertada por guinchos horríveis. Só então me apercebi de que adormecera também. Os guinchos provêm da alma, que se contorce, perdendo gradualmente a forma, enquanto o punhal se crava no ser. As asas já não existem. Os guinchos são como os de uma criatura recém nascida, abandonada, esfomeada. Tento não ouvir. O tempo restabelece-se, toda a paisagem se desfaz, cores violentas invadem a minha sensibilidade. Tento ainda segurar o cabo do punhal, mas em vão, pois o cabo desfaz-me uma parte da mão. Enterra-se cada vez mais firmemente na alma, que se parece cada vez mais com um trapo sujo. O punhal desaparece e tudo fica silencioso. Em estado de choque, fito o que sobrou, na luz cinzenta. Fiapos negro-azulados de uma qualquer coisa. A coisa rasteja agora, em direcção ao corpo. Continua viva. Cobre todo o corpo, enquanto a mente enlouquece por um instante, e a coisa penetra nele, no corpo, pela pele, sem dor. À medida que o corpo cai, lentamente, na neve, a luz regressa. O tempo faz-se ouvir de novo. A mente adormece. Estamos no cimo de uma montanha gelada. Vejo o sol a rosar o horizonte. Não há caminho. As pálpebras erguem-se devagar. O olhar do corpo é triste. Vejo-o ficar azulado com o frio, braços, mãos, pernas, pés, nádegas enterrados na neve branca. A coisa está viva dentro dele. A mente desperta e começa a trabalhar. Mas é inútil. O corpo está nú, na neve gelada. Não há caminho. Preparo-me para partir. É então que ele surge, Raziel, sob a forma de esfinge ardente, do outro lado do cume, de ocidente. Desenhou uma estrada na encosta da montanha e traz um manto sobre o dorso. Com espanto, vejo o corpo erguer-se e precipitar-se na direcção do querubim e aninhar-se sob as suas patas dianteiras. Raziel baixa a enorme cabeça e o manto escorrega-lhe do pescoço para cima do corpo. Sussurra um nome, que não consegui escutar. O corpo adormece de novo, enrolado no manto. Raziel parte. Durante sete dias e sete noites, o corpo não se move, mas respira, e ouço a mente a trabalhar. No amanhecer do oitavo dia, o corpo ergue-se, enrolado no manto e vira-se para trás, o olhar gelado fixo em mim. Com voz rouca, murmura: Vens? Sem palavras, volto a fundir-me com o corpo e a mente e desço com eles a montanha, pela estrada calcinada que Raziel deixou aberta. Da alma, nem sinal.

sábado, 11 de julho de 2009


Senhor das Palavras, não te quero aqui.
As palavras que te roubei estão mortas.
Eu também.

Recebeu, no seu regaço, as palavras que não lhe eram destinadas. Por elas se apaixonou perdidamente, embalou-as, deu-lhes peito, beijou-as, acariciou-as, explorou-as, bebeu delas, fez amor com elas uma noite atrás da outra, como louca que era, como uma ladra, como uma perdida. As palavras definharam no seu colo, nunca se transmutaram, nunca cresceram, nem sequer falaram. Pertenciam a outra, uma qualquer, pouco lhe interessava, apenas a queria desviva, a essa outra, a bruxa dele.

Até que a realidade a trespassou de lança, como a um estafermo de barro fresco, ao ver as palavras secas a corromperem-se entre os dedos famintos. Pegou então no que restava delas, pedaço a pedaço, e devorou-as, mastigou-as raivosamente, rasgou-as com os dentes caninos, triturou-as com os molares, desfez o resto em papa com a acidez da saliva e tentou cuspi-las. As palavras, vingativas, invadiram-lhe as entranhas e penetraram-lhe no sangue. Agora, deliciadas, vampirizam-lhe o corpo e a vida, devagar, muito devagar, com o prazer deleitoso, profundo e egoísta das mortas-vivas.



sexta-feira, 10 de julho de 2009


Ezequiel 10:14


E cada um deles tinha quatro rostos:
o primeiro, era o rosto de um touro
e o segundo o rosto de um humano,
e o terceiro o rosto de um leão
e o quarto o rosto de uma águia.

Árvore da vida
irmã, guardo-te com a flama,
quatro nomes e quatro rostos, terra,
mar, fogo e vento.
Onde está o meu irmão?
Não há abraço
na mentira.
Sobra o fogo:
keruvim araiot.
Cálice de luz, sei
todos os nomes, encontrarei
o que te perdeu,
será teu,
na tua
mão.

A alma não acorda. Já tentei várias vezes arrancar-lhe o punhal que tem cravado entre as frágeis asas, mas em vão. O punhal é estranho. Parece cristal, mas não é sólido. Cada vez que tento puxá-lo, enterra-se mais e estende pelas costas da alma uma espécie de pequenos tentáculos de água, que seguram as asas de encontro às margens delicadas do ser etéreo. Retiro a mão e os tentáculos desaparecem. Não são realmente água. Já tentei senti-los. Estão muito quentes e emitem luz, como se fossem de matéria plasmática. O corpo e a mente já acordaram. Só me falta acordar a alma, mas sem tirar o punhal, não consigo. Pela primeira vez, não sei o que fazer. Preciso compreender como surgiu este punhal e de que material ou energia é feito. Sem a alma, não sei para onde vamos. Já descansámos o suficiente. Posso abandoná-los aos três e partir, mas sei que ainda não chegou o tempo. Estou agora aqui confinada a este espaço, onde existe apenas uma estranha mistura de penumbra e claridade. Senti-a sonhar, a noite passada. Invocou Raziel. Não faço ideia o que pretende do querubim. Não se devem invocar os querubins sem mais nem menos. Mas como a tonta, como de costume, não sabe o que está a fazer, resta-me esperar. O corpo recupera devagar, mas de forma segura. A mente, a mais cobarde de todas, ainda treme. Aqui o tempo foi silenciado, o que ainda me preocupa mais, pois sem a música do tempo não faço ideia se isto pode ter um fim. Isto, este intervalo forçado num buraco do tempo, com a alma a dormir, o punhal cristalino enterrado entre as asas. Não que esteja desconfortável. Só me sinto incomodada. A maior parte da luz que aqui existe vem do punhal. Não gostava que ele se apagasse. Mas sei que tenho de arranjar uma forma de o arrancar ou de o enterrar de vez dentro da alma. Só que não sei se ela poderá voar com o punhal enterrado lá dentro. É importante compreender primeiro as coisas antes de lhes tocar ou de as forçar a algo. E a única forma absoluta de compreensão é através do amor. Tento amar o punhal, mas não consigo. É demasiado estranho. Nunca vi tal coisa. Vou ter de aguardar. Sento-me e dou pequenos toques na alma. Nada. No sítio onde depositei os toques, surgiram pequenos jasmins brancos. Suspiro. Sinto pela primeira vez com dor a ausência da música. O silêncio dói. Mas isso já eu sabia.

terça-feira, 7 de julho de 2009


Amanhã vejo-te de novo. Se não for amanhã, em breve. Se não for em breve, um dia qualquer. Haverá mais um dia, pelo menos. Assim espero. Procuro-te. Em todos os carros, em todas as ruas, em todas as janelas, em todas as cidades por onde viajo. Procurei-te debaixo das pedras. Não. Não morreste. Não podes ter morrido. Mais uma vez. Só mais uma vez. Ausente, apenas. Ainda não procurei nos caixotes do lixo. Devia ter procurado nos caixotes do lixo. Olho para as árvores. Todas as folhas caem, e os frutos. Vê-se bem que não estás nas árvores. Tenho a noção vaga de que já passaram muitos dias e muitas noites. Não consigo dormir. Não te encontro. Os caixotes do lixo cheiram mal. Sei que não posso continuar à espera, nesta procura, nesta desorientação, preciso de dormir. Porque é que não estás aqui? Todos os carros, ruas, janelas, cidades, vazios. Debaixo das pedras, areia. Apenas um buraco negro à minha frente, um túnel estreito e circular. Entra nele. Não quero. Não quero entrar, mas não há outro caminho. Tenho medo das alturas, das pontes, das falésias carcomidas. Não há outro caminho. Entro. Sou levada por águas profundas e subterrâneas. Tento manter-me à tona de água. A raiva mantem-me acordada. Não quero morrer, não quero. Onde estás, grandessíssimo idiota? Esmurro a água com os punhos fechados, esmurro as paredes do túnel, duro como granito. O sangue mistura-se com a água. Cada vez que dou murros, afogo-me. Desisto de os dar. Concentro-me só em manter-me à superfície. Ao fundo do túnel não há luz. Mas as águas desaparecem e estou sentada na lama. Preciso de luz, preciso de dormir. A noite parece ser eterna. Sem sono. Levanta-te e anda. Estou cansada. Sinto a falta do sol. Reconheço que morreste. Não. Reconheço que nunca exististe. À minha frente surge agora o espaço e o tempo onde pareceste real. Há apenas ar contido dentro das delicadas paredes da minha imaginação, incham até ocuparem todo o espaço e tempo de uma alma, a minha, paredes essas que agora ruiram, silenciosamente, depois de lhes dar um pequeno corte com a unha do meu indicador direito. Ou terá sido o esquerdo? Não me recordo. Ruíram com uma simples unhada. O ar foi-se todo. Ouço um ruído estranho. Vem do meu peito. Fico quieta, a olhar para o que sobrou. Apesar do silêncio, apesar da quietude, parece que uma qualquer bomba passou por aqui. Nada está onde devia estar. Nada ficou inteiro. O túnel desapareceu. A destruição é total. Onde está a minha vida? Tantas cabeças de olhos abertos e ouvidos espetados a flutuar à minha volta. Onde estão os corpos? Onde estão as mãos, os abraços? Grito e não me ouvem. As cabeças estão zangadas comigo, não têm bocas, a certa altura deixo de as ver. Cansei-me de olhar para a destruição. Cansei-me de estar em pé. Primeiro o joelho esquerdo no chão, depois o direito. Tenho a certeza de que primeiro foi o esquerdo. Depois todo o peso do tronco apoiado sobre os pés cruzados, as mãos em forma de lua pousadas nas coxas, a cabeça pende um pouco para a frente e adormeço. Descanso. Não descanso, acho que me apago. Vêm os rios, outra vez. Deixo-os passar por mim, não me levam, os olhos fechados. Reabro-os quando a água se silencia. Esta é a tua nova casa. Esta? Por onde começar? Não vejo nada. Reconheço agora que não voltarei a ver-te. Reconheço que morreste. Reconheço que me enganei, nunca exististe. Não és. Amanhece. Está frio. À frente, o mar, a luz rosada nas minhas costas. Debaixo de mim, as pedras, grandes, pequenas. Doem-me os joelhos. Pego numa pedra pequena e macia, do tamanho da concha da minha mão esquerda. Ou será da direita? Não sei bem. Quero viver. Seguro a pedra com toda a força, é branca, aperto-a na mão. A brisa agita-me os cabelos, soltos, desalinhados, gotas de espuma aterram-me no rosto. O que sobrou das águas subterrâneas e dos rios nasce-me agora brevemente no olhar. O teu cadáver estava no caixote do lixo. Por entre as últimas gotas de água, amanhece outra vez, um sorriso rente ao mar. O pesadelo acabou. O mar existe.


Todas as madrugadas se afundam no vórtice de uma noite sem fim. Madrugadas, como flores de lótus azuis, impedidas de emergir pelo peso cruel de pesadelos alheios, incolores, que escorrem em sangue espesso dos teus cortes para as minhas feridas, raízes de metal irracionais, fractais de guilhotinas microscópicas cortando o ser. As mãos procuram desesperadamente sarar o que não tem cura. As guilhotinas que rasgam os dedos não perdoam, as palmas, folhas de nenúfares embriagadas, desflutuam no lodo desidratado, quase fóssil.

Ancorada a uma espera de refracção impossível, luz devorada pela própria sombra, pulsão de irreversibilidade, inexisto. Até que a única imperfeição da flor, rebelde e gelada, me liberte, sem som algum ou compaixão.


No man is an island, entire of itself;
every man is a piece of the continent, a part of the main.
If a clod be washed away by the sea,
Europe is the less, as well as if a promontory were,
as well as if a manor of thy friend's or of thine own were.
Any man's death diminishes me, because I am involved in mankind;
and therefore never send to know for whom the bell tolls; it tolls for thee...

John Donne, Meditation 17, Devotions upon Emergent Occasions


Quando não tenho que lidar com os teus temporais, tudo no meu universo fica mais tranquilo. A minha dança apazigua a tua eterna deslealdade. Mãos como raízes, braços como ramos, pés como frutos. A dança é fluida. Véus de vento, água e luz cobrem a terra. Pequenas línguas de fogo despertam no núcleo; a sua extrema intensidade transforma os metais e regula os pólos; a sua delicadeza poupa as árvores.

Talvez um dia consiga despertar-te desse sono profundo. Melhor ainda... talvez um dia despertes por ti e por aqueles que precisam de ti. E esqueças as meras questões mundanas que nos separam.

As aves marinhas voam à altura do meu olhar, agora sereno. Como cenário de fundo, uma cidade ao crepúsculo, uma foz, um rio, o mar cor de prata, os tons azuis, roxos e rosa do sol que desaparece na orla do planeta, que por vezes parece perdido... As luzes vão-se acendendo uma a uma, ofuscando as estrelas, e os sinos tocam. São dezoito horas e trinta e dois minutos. Porque tocarão os sinos? Talvez por mim, como tão bem escreveu John Donne. Não deixa de ser uma hora estranha para eles tocarem. Agora, que me sentei a escrever, enquanto anoitece. Tocam por mim, com certeza.

Hoje não sei qual de mim sou. Estou numa cidade estranha, mas ao mesmo tempo familiar, onde não há táxis. As aves continuam a voar à altura dos meus olhos, assim levam-me com elas, estou precisamente no sétimo piso, no plano exacto do vôo tranquilo do crepúsculo, antes que adormeça tudo o que é natural e ao dia pertence. É um óptimo plano para se estar. Mas continuo sem saber qual de mim sou e que partes de mim estão acordadas e quais dormem. Talvez seja por estar numa cidade estranha, talvez nada em mim durma ou nada em mim esteja acordado, se quando viajo estou sempre no plano do sonho, afinal no plano do vôo, afinal longe, até de mim.

Estou rodeada de mogno, seda, cabedal, aço, de tons castanhos, creme e côr de vinho maduro. Quente e confortável. Sólido. Não era necessário tanto para voar. Mas por vezes acontece. Talvez ainda não esteja pronta para voltar a andar de pés descalços. Ainda tenho as plantas dos pés queimadas. Talvez por isso os sinos toquem. Talvez pela morte de alguém. De alguém que sou. Pois sou todos os que já existiram e existem e virão a existir. Ou talvez apenas pelas plantas dos meus pés.


Tudo dorme. Escuto agora este silêncio que parece ter coberto todo o universo. Similar a um coração que pulsa, mas sem som. Não sinto nenhuma vibração. Os laços estão rompidos. Flutuam à minha volta como fitas de organza de um branco sujo, as pontas chamuscadas. Parecem agora tão frágeis. Isolei-me num oceano de tranquilidade. O oceano brilha e nele foi traçado um caminho de luar. As últimas memórias tombam sobre o silêncio, como folhas de inverno. Foi tudo em vão.

Vou reaprender a dança do leque no fim do silêncio. Serão os primeiros sons que escutarei. Durmo. Sei que durmo, aninhada no peito de alguém. Talvez no meu próprio. O leque aberto rasga, fechado é punhal. O leque é vermelho. Visualizo o leque a rasgar o ar, aberto. O leque torna-se o centro de gravidade do corpo. Estou dentro do leque, por isso o corpo dança à volta dele desenhando formas improváveis. O leque liga o céu e a terra. É um leque muito bonito. Sim, durmo. Sonho. O corpo à volta do leque, sem música, porque este silêncio nasceu da última lágrima. Vou ter de me habituar a escutá-lo, ao silêncio. Será o coração que pulsa sem som dentro da música do leque. Os movimentos do corpo são belos.

Vou para um nível de sono mais profundo. O oceano brilha e flutuo, adormecida, sobre os braços nele traçados do luar. Até as estrelas se silenciaram. Este é o silêncio do verdadeiro princípio. Ventre.


Preciso de um mundo vazio, agora. Quarenta dias num deserto. Não me sinto bem em lado algum. Não me sinto bem ao lado de ninguém. O temporal lá fora fustiga as árvores contra as paredes velhas e por caiar da casa. Os ramos a arranharem a parede do meu quarto recordam-me as unhas grossas de gigantescas e carnívoras criaturas ancestrais. Chove. Diluvianamente. Há já alguns dias. O vento chegou hoje, frio, gelado, forte. Receio pelos botões na amendoeira. As tangerinas são sacudidas e arrancadas dos ramos e rolam pela erva, como pequenas bolas macias. A alma parece adormecida. Cansou-se. Na véspera da partida, dorme, enrolada no peito do ser. O corpo, enfim em paz, também só quer dormir. Como a mente. Estão os três em perfeito equilíbrio de sono. Mas eu continuo desperta. Não durmo, não descanso. Aprendi que, tal como n'A Fada Oriana (*) , as asas só aparecem quando precisamos delas. Só é necessário não esquecer que as temos e não termos medo de saltar. Quero um mundo vazio, onde dormir. Um deserto branco e luminoso. O vôo também me cansou, mas não consigo dormir neste mundo. Faltam-me árvores. Já não há árvores suficientes. Sete árvores para cada ser humano. É o que é necessário para repôr o ar que respiramos. Sei que neste momento as árvores já não são suficientes. E matamos mais todos os dias. Preciso retirar-me, agora, deste mundo e partir para outro. Um que seja branco e vazio. Durante quarenta dias. Já que a alma, a corpo e a mente dormem, separá-los-ei, gentilmente, e levarei apenas a alma comigo. Nenhum deles dará por nada. Quarenta dias num deserto branco. Tomarei banho numa cascata de luz, lavarei os cabelos com água primordial, enrolar-me-ei depois num manto de nuvens aveludadas, deixar-me-ei cair suavemente na areia, tão fina, que mais parece algodão, regressarei à eterna posição de embrião e fecharei os olhos. E adormecerei também, com a alma aninhada no meu peito.

(*) Conto infantil de Sophia de Mello Breyner

domingo, 5 de julho de 2009


O tempo não existe, mas nenhum destino se cumpre sem ele. Porque será? O tempo existe, porque o criámos. Para quê? O tempo torna tudo curvo e redondo e esférico, dobra, dobra-nos, obriga-nos a circundar, a circunferenciar, a rodar, a acelerar e a desacelerar. O tempo consome-nos a energia, mata-nos as células, afasta-nos daqueles que amamos, murcha-nos as mãos e devora-nos a alma. Envenena-nos, ilude-nos, escraviza-nos, derrota-nos. O tempo, existe ou não? O que é o tempo, afinal?

O tempo... são mãos, criadoras, educadoras, castigadoras... mãos, que moldam barros, cortam joio, cavam leitos de rio, amassam pão, pisam uvas, fundem metais, desenham artes, dominam o fogo, rasgam sem compaixão os trilhos da nossa vida... mãos. O tempo são as nossas mãos. Delas surgiu o tempo, como da batuta de um maestro, e só se silenciará quando a música der lugar ao deslumbramento.




A casa está cheia de lama. Chove lama dos céus. Agarro-me ao muro, sei que devia ter asas, mas não as sinto. As mãos escorregam, caio, sei que vou estatelar-me redonda no chão... e voo. Rente ao chão que me não quebrou. Há lama por todo o lado. Corpo esguio, enlameado, também. Não saí incólume. Pesa-me o corpo e apesar das asas, voo junto aos rios de lama no fundo, tudo cinzento e escuro, perdido, a espada segura junto ao corpo, fina, a única fonte de luz. Não há vivalma. Estou pele e osso... e alma. Leve, leve, não consigo erguer-me. Sei que chegou a minha hora. Foi para isto que nasci uma vez mais. Leve, leve, leve, magra, muito magra, uma corrente de ar soergue-me. Voo alto, agora, sobre a copa das árvores. Sei que nasci para isto. Não tenho medo. Faz um mundo melhor para os teus. Os meus partiram todos. Mas fiz um mundo melhor para eles. Protegi-os. Ama o teu próximo... o teu próximo... como a ti mesma. Tinha ouvidos. Escutei e obedeci. Obedeço apenas a um, que se chama Amor. O nome da minha espada. Assustou os ogres, apenas barro. Agora. É agora. Estou livre. Não voltarei aqui. Mas esta é a minha batalha final. A causa perdida da minha alma. De alfa a ómega. Armagedão. Lutarei pela última alma, até contra ti, Miguel.

sábado, 4 de julho de 2009


A Rosa está sujeita às leis da eternidade.
Lectorium Rosicrucianum



Saiph(1) e Eltanin(2): alguns graus e milhares de anos luz de separação.

Tudo numa não-relação é tangencial. Mas o desejo de fusão de uma estrela com outra pode ser tão forte quanto o medo. Pode transformar-nos em Ícaros. Eltanin está desperta, Saiph dorme um sono profundo. Nasceram em galáxias distantes. Se acordasses, Saiph, ver-me-ias. Mesmo longe, saberias quem sou. Desperta para a tua eternidade, para que possas baptizar-me. Ou terei sido em vão.


(1) Kappa Orionis (constelação de Orion)
(2) Gamma Draconis (constelação de Draco)


sexta-feira, 3 de julho de 2009


Há ogres a prenderem-me os calcanhares. Estão famintos. A fome deles é desmedida e desproporcional. Terei de roer as minhas próprias pernas para partir? Que falta me farão as pernas? Tu não me agarras os calcanhares. Mas estás no meio deles, insensível e indiferente. Sempre soube que serias a minha perdição. Mas ainda luto. Lutarei até à morte. Lutarei até que a fibrose me impeça de respirar. A morte é a minha última saída. Não a temo. Somos amigas. Os ogres, fêmeas e machos, babam-me os pés nús, o olho cego no meio da testa, os dentes como moedas de dois metais. Têm uma fome que não terminará nunca. Cobiçam-me as asas, e o amor, que se faz sangue irascível e me esmurra o peito com cada batida.

E a tonta da alma, que continua a cantar... a mente desistiu... o corpo já não se levanta, as manhãs tornaram-se noites profundas, sem estrelas, de sono cobertas, como pesados mantos de indiferença.

Sinto o rosto a arder, agora. É da lama. Enterro nela as mãos. A lama está quente, macia, cinzenta, quase barro. Dói-me o pescoço, da tensão. Penso em pousar a cabeça. Enquanto a alma cantar, ainda espero. Talvez com a boca consiga ainda fazer uma espada do barro que se prepara para me enterrar.


Porque tu já não estás aqui. Nunca estiveste. E o dia da minha partida aproxima-se. Por isso, quero escrever-te, não direi que pela última vez. Quero escrever-te agora, que já partiste e eu ainda aqui estou, de pés descalços, alma, mente e corpo em total desalinho, desalinhados do espaço e do tempo, em desarmonia comigo e contigo, as malas de vento prontas, só vento, pois nada mais possuo para levar comigo. E o vento sopra-me no rosto, por vezes gelado, outras apenas frio, e traz o cheiro do rio e do mar e da humidade das ruas e prédios e dos corpos dos outros, que passam. E tu já não estás aqui. Assim, parto sem poder despedir-me, mas também não gosto de despedidas, embora esteja sempre a despedir-me, mas só eu sei como as odeio, às despedidas. E estas cores com que pintei a vida, gostava de ver-me livre delas, mas não consigo. Queria apenas dizer-te as palavras que já não tenho ou a única palavra que não disse, a única que verdadeiramente importa, mas também sei que não a direi. Não vale a pena dizer uma palavra que morre na minha boca uma e outra vez porque não a ouvi da tua. Essa palavra não a direi. Faz-se tarde. Se não me encontrares, procura-me no vento, ou não me procures ou procura-me sem me encontrares, ou procura-me e encontra-me, mas será que estarei aqui? Obrigada, queria dizer-te obrigada, por ter-te encontrado, mesmo tarde, por te ter conhecido, por teres cruzado a minha vida ou teres-me deixado cruzar a tua, por breves instantes. Um dia a palavra saiu-me, mesmo morta, viva, sete vezes sete vezes noves fora quatro, quatro foram as luas durante as quais caminhámos lado a lado e saiu-me. Doeu-me a palavra, saída assim da boca, não, da alma, não, do corpo, não, de todo o meu ser, uma palavra surda, sem som, que se perdeu e não ouviste. Não peço mais perdão. A alma, porque é tonta, ouviu palavras da tua boca que não existiam, leu loucuras onde havia apenas bom senso. O corpo devorou o silêncio das palavras mortas. A mente tentou equilibrar as coisas, em vão. Dói-me não estares aqui. Fico feliz por não estares aqui. Estas são as não-palavras. Não sobrou nada. Não sobrou nada. Pego no vento, sinto o vento outra vez. Não. Vejo o futuro. Não estarei lá. Nem tu.

folhas soltas

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