Nunca fui tão feliz como durante essas noites. Fechava os olhos e via-a dentro de mim. A mulher mais bonita do mundo. E ia conhecendo mais do seu rosto, ia conhecendo mais do seu olhar que me via e que brilhava. Ficávamos durante horas só a olharmos um para o outro. Às vezes, fechava os olhos para a ver quando era de noite. Depois, havia uma luz que começava lentamente a atravessar-me as pálpebras. Abria os olhos, e era já de dia. Naquelas horas, conhecemo-nos. Eu via uma mulher que me olhava: os seus olhos atentos a cada brilho com que os meus olhos interiores lhe diziam que qualquer coisa na beleza ou no mundo me conduzia para ela. Naquelas horas, sem falarmos, construíram-se certezas dentro de nós. Ainda hoje o não sei explicar. A beleza, como o amor, são mistérios proibidos. Naquelas horas, a beleza e o amor eram simples. Nos nossos olhares, abriam-se caminhos para a beleza e para o amor. Eu olhava para ela no mesmo momento em que ela olhava para mim. Esse era o mistério, o milagre, o labirinto simples que usámos para nos conhecermos e para dizermos palavras de silêncio: palavras maiores, profundas, abismos, palavras que eram de sangue e que ali, eu um rapaz, ela uma rapariga, pareciam palavras de sol terno, e de sol suave, e de sol brando. Sei hoje que, durante aquele tempo, amava e era amado. Durante aquele tempo, a beleza da mulher de luz que estava dentro de mim, tinha-se misturado com esse sentimento. Esse sentimento. Esse sentimento que era um entusiasmo a mandar em todos os meus instantes, uma febre de onde não conseguia sair mesmo que quisesse, esse sentimento que era uma palavra: amor: uma palavra estranha porque era importante, eu achava que era uma palavra importante, mas sabia que era uma palavra que eu, desde os meus dezasseis anos, tinha tornado vulgar. Esse sentimento que era uma palavra, e eu perguntava-me a mim próprio sobre quantas pessoas a teriam tornado vulgar. Eu sentia que sentia totalmente esse sentimento. Amava e era amado.
[...]
A nossa casa estava toda envolvida em hera. Vista da montanha, a nossa casa era um pequeno monte de verde com janelas, com uma varanda e com um brasão de pedra. Estivera a escrever toda a noite e, no banco ao meu lado, tinha já trinta páginas escritas. Ao escrevê-las, sentira palavra a palavra, quase letra a letra. Eram as trinta páginas mais importantes da minha vida. Ao escrever, tinha vivido. Eram trinta páginas que eram o meu amor todo e a minha esperança. Sentado à escrivaninha onde os anos passavam, olhávamo-nos muito: ela dentro de mim e o meu olhar dentro de mim, junto dela. O meu braço tremia e, com a esferográfica, escrevia em folhas brancas cada uma das palavras que a diziam. Ela sentia as palavras a tocarem-na. Ela fechava lentamente os olhos. E o tempo em que mantinha as pálpebras fechadas era tocar-me, era tocar o sol, e, na pele, absorver toda a sua luz. Eu, que não podia ter nos braços aquela vida interior que era a minha vida toda, que não podia dar-lhe a mão, que não podia sequer passar-lhe os dedos devagar pelo rosto, fazia tudo isso escrevendo.
José Luís Peixoto in Uma Casa na Escuridão