as almas, os pássaros

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quarta-feira, 14 de outubro de 1987


Sinto-me como esta estação que morre. É sempre assim em setembro. Mas este ano é particularmente dolorosa para mim, esta morte do verão. Ontem, sentada num banco de madeira no jardim que não é meu, olhava as folhas secas das árvores, que se soltarão com o primeiro sopro de vento, os limões ressequidos - o limoeiro também morreu, este ano - sentia aquele calor estúpido, aquela secura na alma, aquela angústia, aquela fúria de tudo parecer perdido, terminado. Quando a Maria telefonou, só lhe disse: Esta noite já não faço mais nada, vou dormir, se saio de casa ainda me cai uma árvore em cima, estou péssima. Não, também não gostei do último da Duras. Concordo que é patológico, por isso mesmo não gostei. Não estava em condições de o ler. Sentiste-te gozada? Talvez fosse essa a intenção dela. Ou talvez ela seja doente. Pouco depois, telefonou-me o Pedro. O sono não vinha. Estava eléctrica como aquela atmosfera doentia. Fomos beber umas cervejas e isso fez-me bem. O Pedro é tão normal, tão saudável. Tem planos, sonhos, futuro. Rimo-nos imenso. Rir faz bem. A noite, ali passada ao ar livre, no Rossio, no meio do povo, deixou de me parecer sufocante. As ruas estavam molhadas dos carros da limpeza, levantara-se uma humidade fresca do chão. Havia ainda imensos estrangeiros de férias com cara triste, desiludida. Tinham vindo atrás de um sonho e chegado à conclusão de que todas as cidades são cidades e são sujas e são barulhentas e, assim, nada melhor que a nossa cidade natal, que ao menos é nossa, é familiar, criamos-lhe um certo amor enraivecido, apesar de tudo. Conhecemos os cheiros, a sujeira, o barulho e já não nos chocam e até são de graça. São nossos, como talvez seja nossa a nossa alma. Não sei. Gostei de estar ali com o Pedro. Gostava que ele fosse meu amigo mas nestas idades já não se chega a conhecer ninguém. As crianças dormem, a partir dos vinte anos, às vezes mais cedo, às vezes mais tarde. Sobra nas pessoas aquele ar igual, a noite das almas, à noite todos os gatos são pardos. Furar os medos, abrir um pequeno buraco na desilusão, é quase impossível. Penso agora no Pedro, no perfil dele. Quem é a pessoa que está por detrás do seu sorriso? Como é que eu chego lá? Mais difícil ainda, como é que eu me descubro, me abro, me revelo? Porque não vem chuva da montanha para nos molharmos? E onde ficam todas essas lágrimas reveladoras que não são choradas? Às vezes, sou eu que não ouço. Escuto-me a mim mesma, às conversas dos bêbedos, ao barulho dos carros, aos silêncios da minha alma que se escapa para longe da rua iluminada, além das estrelas. Outras vezes, é ele que não ouve. Não sei onde está a alma dele, talvez mais perto da minha do que posso imaginar, também lá, longe dos telhados, atrás das estrelas. Bebemos a cerveja fresca e rimos dos turistas, conscientes de que também somos turistas na nossa própria cidade natal. Tudo é sempre terrivelmente desconhecido. Não é um abismo. É um silêncio por detrás do barulho, a verdade atrás das palavras, as almas encavalitadas na mesma lua, as mãos separadas, ouvimos palavras diferentes e nem nos lembramos das palavras faladas. Um homem forte, de tronco nú e barba escura, está debruçado a uma janela. Espreita a rua e não olha para nós. Tem um ar encalorado de insónia. Gostava de saber o que está por detrás do homem, como é o quarto. Não sei como é que sei que por detrás do homem está um quarto. Sei-o, muito simplesmente. Imagino um quarto pequeno, uma cama estreita encostada à parede, um armário do outro lado, de madeira velha, com um espelho, pouca luz, as paredes amarelas da pouca luz e da sujidade. Imagino que o homem não consegue dormir e nem tem saudades de nenhuma mulher. Está apenas ali, à janela, à espera que o barulho acabe. Não tem vontade de se misturar com os bêbedos ou com os turistas. O mais provável é que não pense em nada. Se eu lesse a alma dele atrás dos olhos que mal se vêem, escrevia um livro, parecido com isto que estou a escrever. Escrevia a história do homem à janela com o verão a morrer, escritor falhado, trabalha num escritório num prédio velho da baixa lisboeta. E está farto, farto, farto. As histórias são todas iguais. A Maria diz que as pessoas tão patológicas como as pessoas da Duras deviam suicidar-se. Só assim ela poderia perdoar à Duras aquela sensação de nojo que ela lhe deixou. Ela ficou assim enojada por ter lido o livro. As pessoas não deviam escrever livros que deixassem as outras com nojo. Mas nojo de quê? Só sei que também fiquei enojada. Enojada da dor. Há dores que são nojo, como a dor do luto, ou esta última dor das feridas que arrefecem, das cicatrizes a sararem mal, sem bálsamo algum, ao ar, com a infeção dentro como restos que apodrecem. O nojo é nosso. De alguma dor que sentimos, de algum monstro que existe dentro de nós, prestes a devorar-nos. Não me suicidei. Estou no controlo. Pelo menos à superfície, o mar foi encarcerado, poderosamente encarcerado e o que se passa lá no fundo, não quero saber, é cedo demais para saber, também não interessa. A opção é a vida, o melhor é olhar em frente ou para o lado. Ao lado estava o Pedro, bem-disposto, falávamos das peles que ligam e das peles que não ligam, de Curaçao e de Itaparica. Eu, só posso falar de mim, cada pessoa que fala, diga o que disser, fala sempre e apenas de si mesma, eu sentia a minha juventude a saltitar-me entre as mãos. Como pássaros. Estava contente com essa juventude mas, como qualquer jovem, não sabia bem como usá-la, o que fazer com ela. Já quase a destruíra uma e outra vez, agora olhava-a, desconfiada, enquanto ela pulava nas minhas mãos e me fazia cócegas atrás das orelhas. Como fazer para não a estragar, para não a partir aos pedaços? Em primeiro lugar, não a entregar a ninguém. Nem mesmo ao Pedro. Fiquei com medo das almas cegas. São profundamente estúpidas na sua cegueira e atiram aos pássaros, geralmente acertando, embora ao acaso. Eu sei, eu sei que o Pedro talvez possivelmente não tenha uma alma cega, mas posso apenas falar de mim mesma, porque uma pessoa consegue única e exclusivamente conhecer-se a si própria em absoluto mais ou menos. Sei uma coisa, que este pássaro agora é só meu. Claro que um pássaro partilhado noutro vento podia - e digo, poderia - ser qualquer coisa mais bela. Mas não arrisco um novo encontro naquele deserto onde vivem as almas cegas. Posso guardar este pássaro só para mim. Manter-me sempre afastada, distante. Rir dos atiradores ao acaso. Podes atirar, não chegas cá! Agora, os céus são altos e imensos, claro que me sinto perdida e só, mas longe, longe, e é bom estar longe quando o perto foi quase morte. Não disse por isso ao Pedro que a pele dele ligava com a minha, até ligava muito bem. Deixei ficar isso no ar, como outro pássaro a rir-se empoleirado num ramo distante de um gato espantado. Não vale a pena trepar. Eu fujo. Tenho asas e tu não. Foi a Mélita que primeiramente me falou na teoria amena e sensual das peles. Da humidade, do calor, da textura das peles. Talvez retractem a violência das paixões ou os sentimentos virginais de certos desencontros. E também há peles sem personalidade nenhuma, como a pele daqueles pseudo-gigolos atrás das árvores, olhando as estrangeiras velhas com um ar guloso de dólares, marcos e francos suíços. De repente, alheei-me daquilo tudo. Já não estava assim tanto calor. A cerveja estava fresca e eu sentia-me bem com aquele pássaro desconhecido e perigoso entre as mãos e a proximidade do pássaro do Pedro, que espreitava nos olhos dele, menos rebelde, fluindo com as palavras, como a música de Mozart tocada num velho caramanchão numa noite de luar, com rosas e um perfume doce a canteiros molhados. Cada alma é uma interrogação universal. Quando cheguei a casa, dormi bem. Tinha deixado a morte do verão atrás das costas, o pássaro era eu, agora, debaixo dos lençóis frescos, a dormir embalada na esperança da manhã fresca. Enquanto houver manhãs.

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