as almas, os pássaros

as almas, os pássaros

as almas, os pássaros

as almas, os pássaros

domingo, 25 de outubro de 2009



Não se pode falar do deserto como de uma paisagem, pois ele é, apesar da sua variedade, ausência de paisagem.
Essa ausência concede-lhe a sua realidade.
Não se pode falar do deserto como de um lugar; pois ele é, também, um não lugar; o não-lugar de um lugar ou o lugar de um não-lugar.
Não se pode pretender que o deserto seja uma distância, porque ele é, ao mesmo tempo, real distância e não-distância absoluta por causa da sua ausência de marcas. Ele tem, como limites, os quatro horizontes, sendo o que os liga e os separa. Ele é a sua própria separação onde se torna lugar aberto; abertura do lugar.
Não se pode pretender que o deserto seja o vazio, o nada. Não se pode, tampouco, pretender que ele seja o fim, uma vez que ele é, igualmente, o começo.

Edmond Jabès in Un étranger, avec, sous le bras, un livre de petit format, Paris, Editions Gallimard, 1989, p. 107-8


Fotografia National Geographic: padrões de erosão no deserto entre o Nilo e o Mar Vermelho.


domingo, 18 de outubro de 2009



«By this art you may contemplate
the variation of the 23 letters...»
The Anatomy of Melancholy, part 2, sect. II, mem. IV

O universo (a que outros chamam a Biblioteca) compõe-se de um número indefinido, e talvez infinito, de galerias hexagonais, com vastos poços de ventilação no meio, cercados por parapeitos baixíssimos. De qualquer hexágono vêem-se os pisos inferiores e superiores: interminavelmente. A distribuição das galerias é invariável. Vinte estantes, a cinco longas estantes por lado, cobrem todos os lados menos dois; a sua altura, que é a dos pisos, mal excede a de um bibliotecário normal. Uma das faces livres dá para um estreito saguão, que vai desembocar noutra galeria, idêntica à primeira e a todas. À esquerda e à direita do saguão há dois gabinetes minúsculos. Um permite dormir de pé; o outro, satisfazer as necessidades fecais. Por aí passa a escada em espiral, que se afunda e eleva a perder de vista. No saguão há um espelho, que fielmente duplica as aparências. Os homens costumam inferir desse espelho que a Biblioteca não é infinita (se o fosse realmente, para que serviria esta duplicação ilusória?); eu prefiro sonhar que as superfícies polidas representam e prometem o infinito... A luz provém de umas frutas esféricas que têm o nome de lâmpadas. Há duas em cada hexágono: transversais. A luz que emitem é insuficiente, incessante.
Tal como todos os homens da Biblioteca, viajei na minha juventude; peregrinei em busca de um livro, se calhar do catálogo dos catálogos; agora que os meus olhos quase não conseguem decifrar o que escrevo, preparo-me para morrer a poucas léguas do hexágono em que nasci. Morto, não faltarão mãos piedosas que me atirem pela balaustrada; a minha sepultura será o ar insondável; o meu corpo precipitar-se-á longamente até se corromper e dissolver no vento gerado pela queda, que é infinita. Eu afirmo que a Biblioteca é interminável. Os idealistas argumentam que as salas hexagonais são uma forma necessária do espaço absoluto, ou pelo menos da nossa intuição do espaço. Consideram que é inconcebível uma sala triangular ou pentagonal. (Os místicos pretendem que o êxtase lhes revela uma câmara circular com um grande livro circular de lombada contínua, que dá toda a volta das paredes; mas o seu testemunho é suspeito; as suas palavras, obscuras. Esse livro cíclico é Deus.) Basta-me por agora repetir a clássica sentença: «A Biblioteca é uma esfera cujo centro cabal é qualquer hexágono, e cuja circunferência é inacessível.»
A cada uma das paredes de cada hexágono correspondem cinco prateleiras; cada prateleira contém trinta e dois livros de formato uniforme; cada livro é de quatrocentas e dez páginas; cada página, de quarenta linhas; cada linha, de umas oitenta letras de cor negra. Também há letras na lombada de cada livro; estas letras não indicam nem representam o que dirão as páginas. Sei que esta incongruência já chegou a parecer misteriosa. Antes de resumir a solução (cuja descoberta, apesar das suas trágicas projecções, é talvez o facto capital da história) vou rememorar alguns axiomas.
O primeiro: A Biblioteca existe ab aeterno. Desta verdade cujo corolário imediato é a eternidade futura do mundo, nenhuma mente razoável pode duvidar. O homem, o imperfeito bibliotecário, pode ser obra do acaso ou dos demiurgos malévolos; o universo, com a sua elegante dotação de estantes, de tomos enigmáticos, de infatigáveis escadas para o viajante e de latrinas para o bibliotecário sentado, só pode ser obra de um deus. Para perceber a distância que existe entre o divino e o humano, basta comparar estes rudes símbolos trémulos que a minha falível mão garatuja na capa de um livro, com as letras orgânicas do interior: pontuais, delicadas, negríssimas, inimitavelmente simétricas.
O segundo: «O número de símbolos ortográficos é vinte e cinco». Foi esta observação que permitiu, há trezentos anos, formular uma teoria geral da Biblioteca e resolver satisfatoriamente o problema que nenhuma conjectura tinha ainda decifrado: a natureza informe e caótica de quase todos os livros. Um, que o meu pai viu num hexágono do circuito quinze noventa e quatro, constava apenas das letras M C V perversamente repetidas da primeira linha até à última. Outro (muito consultado nesta zona) é um simples labirinto de letras, mas a penúltima página diz «Oh tempo as tuas pirâmides.» Já se sabe: por uma linha razoável ou uma notícia correcta há léguas de insensatas cacofonias, de embrulhadas verbais e de incoerências. (Sei de uma bárbara região cujos bibliotecários repudiam o vão e supersticioso costume de procurar sentido nos livros e o equiparam ao de procurá-lo nos sonhos ou nas linhas caóticas da mão... Admitem que os inventores da escrita imitaram os vinte e cinco símbolos naturais, mas afirmam que essa aplicação é casual e que os livros em si nada significam. Esta opinião, como veremos, não é totalmente falaciosa.)
Durante muito tempo julgou-se que esses livros impenetráveis correspondiam a línguas pretéritas ou remotas. É verdade que os homens mais antigos, os primeiros bibliotecários, usavam uma linguagem bastante diferente da que falamos agora; é verdade que poucas milhas à direita a língua é dialectal e que noventa pisos mais acima é incompreensível. Tudo isto, repito, é verdade, mas quatrocentas e dez páginas de inalteráveis M C V não podem corresponder a nenhum idioma, por mais dialectal ou rudimentar que seja. Houve quem insinuasse que cada letra podia ter influência sobre a seguinte e que o valor de M C V na terceira linha da página 71 não era o que pode ter a mesma série noutra posição de outra página, mas esta vaga tese não prosperou. Outros pensaram em criptografias; universalmente, aceitou-se esta conjectura, embora não no sentido em que a formularam os seus inventores.
Há quinhentos anos, o chefe de um hexágono superior[1] deu com um livro tão confuso como os outros, mas que tinha quase duas folhas de linhas homogéneas. Mostrou o seu achado a um decifrador ambulante, que lhe disse que estavam redigidas em português; outros disseram-lhe que era iídiche. Em menos de um século conseguiu-se estabelecer o idioma: um dialecto samoiedo-lituano do guarani, com inflexões de árabe clássico. Também se decifrou o conteúdo: noções de análise combinatória, ilustradas por exemplos de variações com repetição ilimitada. Estes exemplos permitiram que um bibliotecário de génio descobrisse a lei fundamental da Biblioteca. Este pensador observou que todos os livros, por muito diferentes que sejam, constam de elementos iguais: o espaço, o ponto, a vírgula, as vinte e duas letras do alfabeto. Também acrescentou um facto que todos os viajantes têm confirmado: «Não há, na vasta Biblioteca, dois livros idênticos.» Destas premissas incontroversas deduziu que a Biblioteca é total e que as suas estantes registam todas as possíveis combinações dos vinte e tal símbolos ortográficos (número, embora vastíssimo, não infinito) ou seja, tudo o que nos é dado exprimir: em todos os idiomas. Tudo: a história minuciosa do futuro, as autobiografias dos arcanjos, o catálogo fiel da Biblioteca, milhares e milhares de catálogos falsos, a demonstração da falácia desses catálogos, a demonstração da falácia do catálogo verdadeiro, o evangelho gnóstico de Basilides, o comentário desse evangelho, o comentário do comentário desse evangelho, o relato verídico da tua morte, a versão de cada livro em todas as lín­guas, as interpolações de cada livro em todos os livros, o tratado que Beda pode ter escrito (e não escreveu) sobre a mitologia dos Saxões, os livros perdidos de Tácito.
Quando se proclamou que a Biblioteca abrangia todos os livros, a primeira impressão foi de extravagante felicidade. Todos os homens se sentiram senhores de um tesouro intacto e secreto. Não havia problema pessoal ou mundial cuja eloquente solução não existisse: nalgum hexágono. O universo estava justificado, o universo bruscamente usurpou as dimensões ilimitadas da esperança. Naquele tempo falou-se muito das Reabilitações: livros de apologia e de profecia, que para sempre reabilitavam os actos de todos os homens do universo e guardavam arcanos prodigiosos para o seu porvir. Milhares de cobiçosos abandonaram o doce hexágono natal e lançaram-se pelas escadas acima, impelidos pelo vão propósito de encontrar a sua Reabilitação. Estes peregrinos brigavam nos corredores estreitos, proferiam obscuras maldições, estrangulavam-se nas escadas divinas, atiravam os livros enganadores para o fundo dos túneis, morriam defenestrados pelos homens de regiões remotas. Outros enlouqueceram... As Reabilitações existem (eu vi duas que se referem a pessoas do futuro, a pessoas porventura não imaginárias), mas os pesquisadores não se lembravam que a possibilidade de um homem achar a sua, ou alguma pérfida variação da sua, se pode computar à volta do zero.
Também se esperou então o esclarecimento dos mistérios básicos da humanidade: a origem da Biblioteca e do tempo. É verosímil que estes graves mistérios possam explicar-se por palavras: se não bastar a linguagem dos filósofos, a multiforme Biblioteca deve ter produzido o idioma inaudito que se requer, bem como os vocabulários e gramáticas desse idioma. Há já quatro séculos que os homens não dão descanso aos hexágonos... Há pesquisadores oficiais, inquiridores. Vi-os no desempenho da sua função: chegam sempre esgotados; falam de um escadote sem degraus que quase os matou; falam de galerias e de escadas com o bibliotecário; algumas vezes, pegam no livro mais próximo e folheiam-no, em busca de palavras infames. Visivelmente, ninguém espera descobrir nada.
À desaforada esperança, como é natural, sucedeu-se uma depressão excessiva. A certeza de que alguma prateleira nalgum hexágono continha livros preciosos e de que esses livros preciosos eram inacessíveis, pareceu quase intolerável. Uma seita blasfema sugeriu que cessassem as buscas e que todos os homens misturassem letras e símbolos, até construírem, por meio de um improvável dom do acaso, esses livros canónicos. As autoridades viram-se obrigadas a promulgar ordens severas. A seita desapareceu, mas na minha infância vi homens velhos que longamente se ocultavam nas latrinas, com uns discos de metal num covilhete proibido, e fracamente imitavam a divina desordem.
Outros, pelo contrário, acreditaram que a prioridade era eliminar as obras inúteis. Invadiam os hexágonos, exibiam credenciais nem sempre falsas, folheavam com tédio um volume e condenavam estantes inteiras: ao seu furor higiénico e ascético deve-se a insensata perda de milhões de livros. O seu nome é execrado, mas quem deplora os «tesouros» que o seu frenesim destruiu descura dois factos notórios. Um: a Biblioteca é de tal forma enorme que toda a redução de origem humana se torna infinitésima. Outro: cada exemplar é único, insubstituível, mas (como a Biblioteca é total) há sempre várias centenas de milhares de fac-símiles imperfeitos: de obras que só diferem por uma letra ou por uma vírgula. Contra a opinião geral, atrevo-me a supor que as consequências das depredações cometidas pelos Purificadores foram exageradas pelo terror que esses fanáticos provocaram. Impelia-os o delírio de conquistar os livros do Hexágono Carmesim: livros de formato menor que os naturais; omnipotentes, ilustrados e mágicos.
Também sabemos doutra superstição daquele tempo: a do Homem do Livro. Nalguma estante de algum hexágono (pensaram os homens) deve existir um livro que seja a chave e o resumo perfeito de todos os outros: deve haver algum bibliotecário que o tenha estudado e seja análogo a um deus. Na linguagem desta zona hão-de persistir ainda vestígios do culto desse funcionário remoto. Fizeram-se muitas peregrinações à procura d'Ele. Durante um século percorreram em vão os mais diversos rumos. Como localizar o venerado hexágono secreto que o alojava? Alguém propôs um método regressivo: Para localizar o livro A, consultar previamente um livro B que indique o sítio de A; para localizar o livro B, consultar previamente um livro C, e assim por diante até ao infinito... Foi em aventuras destas que desperdicei e consumi os meus anos de vida. Não acho inverosímil que nalguma estante do universo haja um livro total[2]; rogo aos deuses ignorados que um homem — um só que seja, há milhares de anos! — o tenha examinado e lido. Se não forem para mim a honra e a sabedoria e a felicidade, que sejam para outros. Que o céu exista, mesmo que o meu lugar seja o inferno. Que eu seja ultrajado e aniquilado, mas que num instante, num ser, a Tua enorme Biblioteca se justifique.
Afirmam os ímpios que o disparate é normal na Biblioteca e que o razoável (e até a humilde e pura coerência) é uma quase milagrosa excepção. Falam (eu sei-o) da «Biblioteca febril, cujos fortuitos volumes correm o incessante risco de se transformarem noutros e que tudo afirmam, negam e confundem como uma divindade que delira». Estas palavras que não só denunciam a desordem, mas também a exemplificam, provam de maneira notória o seu péssimo gosto e a sua desesperada ignorância. Com efeito, a Biblioteca inclui todas as estruturas verbais, todas as variações que permitem os vinte e cinco sinais ortográficos, mas não um único disparate absoluto. Não vale a pena observar que o melhor volume dos muitos hexágonos que administro se intitula Trono penteado, e outro A cãibra de gesso e outro Axaxaxas mlö. Essas propostas, à primeira vista incoerentes, sem dúvida são susceptíveis de uma justificação criptográfica ou alegórica; essa justificação é verbal e, ex hypothesi, já figura na Biblioteca. Não posso combinar uns caracteres

dhcmrlchtdj

que a divina Biblioteca não haja previsto e que nalguma das suas línguas secretas não contenham um terrível sentido. Ninguém pode articular uma sílaba que não esteja plena de ternuras e de temores; que não seja nalguma dessas linguagens o nome poderoso de um deus. Falar é incorrer em tautologias. Esta epístola inútil e palavrosa já existe num dos trinta volumes das cinco prateleiras de um dos incontáveis hexágonos — e também a sua refutação. (Um número n de linguagens possíveis usa o mesmo vocabulário; numas, o símbolo biblioteca admite a correcta definição do ubíquo e duradouro sistema de galerias hexagonais, mas biblioteca é pão ou pirâmide ou outra coisa qualquer, e as sete palavras que a defi­nem têm outro valor. Tu que me lês, tens a certeza de que compreendes a minha linguagem?)
A escrita metódica distrai-me da presente condição dos homens. A certeza de que está tudo escrito anula-nos ou envaidece-nos. Conheço distritos onde os jovens se ajoelham diante dos livros e lhes beijam baramente as páginas, mas não sabem decifrar uma única letra. As epidemias, as discórdias heréticas, as peregrinações, que inevitavelmente degeneram em banditismo, têm dizimado a população. Creio já ter mencionado os suicídios, de ano para ano cada vez mais frequentes. Talvez me enganem a velhice e o temor, mas tenho a suspeita de que a espécie humana — a única — está prestes a extinguir-se e que a Biblioteca perdurará: iluminada, solitária, infinita, perfeitamente imóvel, armada de volumes preciosos, inútil, incorruptível, secreta.
Acabo de escrever infinita. Não intercalei este adjectivo por um hábito retórico; digo que não é ilógico pensar que o mundo é infinito. Quem o julga limitado, postula que em lugares longínquos os corredores e escadas e hexágonos podem inconcebivelmente cessar — o que é absurdo. Quem o imagina sem limites, esquece que os tem o número possível de livros. Atrevo-me a insinuar esta solução do antigo problema: A biblioteca é ilimitada e periódica. Se um eterno viajante a atravessasse em qualquer direcção, verificaria ao cabo dos séculos que os mesmos volumes se repetem na mesma desordem (que, repetida, seria uma ordem: a Ordem). A minha solidão alegra-se com esta elegante esperança[3].

Mar da Prata, 1941.


[1] Dantes, para cada três hexágonos havia um homem. O suicídio e as doenças pulmonares destruíram esta proporção. Memória de indescritível melancolia: já cheguei a viajar muitas noites por corredores e escadas polidas sem encontrar um único bibliotecário.
[2] Repito: basta que um livro seja possível para existir. Só está excluído o impossível. Por exemplo: nenhum livro é também uma escada, embora sem dúvida haja livros que discutem e negam e demonstram essa possibilidade, e outros cuja estrutura corresponde à de uma escada.
[3] Letizia Álvarez de Toledo observou que esta vasta Biblioteca é inútil: rigorosamente, bastaria um único volume, de formato comum, impresso em corpo nove ou em corpo dez, que constasse de um número infinito de folhas infinitamente finas. (Cavalieri nos princípios do século XVII disse que todo o corpo sólido é a sobreposição de um número infinito de planos.) O manejo desse vade-mécum sedoso não seria cómodo: cada folha aparente desdobrar-se-ia noutras análogas; a inconcebível folha central não teria reverso.


quinta-feira, 8 de outubro de 2009

A formação para se ser anjo é das mais difíceis que há. Temos que aprender a amar, a amar sem limites, a amar infinitamente e a saber que de todo o amor que semeamos no munido, nem um só grão de pó será colhido por nós. Temos de saber transformar-nos num mero canal, viver na penumbra, conviver com a nossa invisibilidade aos olhos dos outros. Por isso, quantas vezes nós, os jovens aprendizes, nos não sentamos nos degraus de pedra dos palácios onde vivemos e, com o rosto entre as mãos, choramos… Por isso, também, há tantos anjos que se tornam negros. Não regressam jamais nem à humanidade nem à luz. Perdem-se numa escuridão de dor, sem regresso. E combatem-nos o tempo todo.
O meu nome é Menahel e hoje preciso de vos contar a história de Dítě. Agora dá pelo nome de Oriana, para não ser descoberta. Também ela ganhou as suas asas. Mas não foi fácil. Até porque começou como nereida e não como humana. A mais pequena das nereidas…
Das nereidas, Dítě foi a última a nascer. Era a mais pequena de todas, mas também a mais bela, mais bela até que Anfitrite, e por isso a mãe lhe chamou Dítě e a escondeu dos olhares de Zeus e Poseídon. Era a preferida de seu pai Nereu, do avô Pontos, da bisavó Geia e até do trisavô Caos, que raras vezes se preocupava com a sua descendência. Dítě tinha os cabelos escuros, como Anfitrite, os olhos côr de âmbar, com laivos de esmeralda, enfeitava os cabelos com pérolas, madrepérola e corais vivos de todas as côres e percorria o fundo do mar sempre acompanhada de pequenos peixes dourados e prateados e cavalos marinhos azuis e amarelos. Era muito estimada por todas as criaturas, pois tinha o dom de curar. Onde quer que pousasse as suas pequenas mãos brancas e delicadas, a mácula desaparecia. Nas suas viagens, gostava particularmente de coleccionar pequenos objectos estranhos e aparentemente inúteis e guardava-os sob a concha rosada que lhe servia de cama, o que muito aborrecia sua mãe, Dóris, que não compreendia nem o estranho conteúdo nem a direcção da alma de Dítě e considerava tudo aquilo um monte de pó inútil.
Numa dessas viagens, junto a um jardim de coral sufocado de poluentes, que tinha acabado de limpar e salvar da morte certa, Dítě encontrou um estranho objecto a flutuar na superfície das águas: uma cesta de bambú com uma criança. Como forma de agradecimento, os corais tinham decidido retribuir com uma explosão de fecundação-reprodução e foi difícil para Dítě navegar por entre a nuvem alegre e brilhante e agarrar a cesta. Mal pousou os olhos na criança do sexo masculino, viu no seu futuro, com o dom da sua visão, um amor sem limites e decidiu chamar-lhe Amadis. Pousou-lhe as mãos no peito e deu-lhe a capacidade de respirar sob as águas para o poder transportar para o palácio de seus pais e partiu, a grande velocidade, pois tinha sentido a fome no minúsculo ser.
Chegada ao palácio, Dìtě depositou Amadis sob a sua concha, junto aos seus preciosos tesouros, e foi a correr buscar Gandales, o pai de todos os cavalos-marinhos. Gandales não tinha idade e era sábio e saberia como alimentar a criança. Foi difícil para Dìtě arrancar Gandales dos seus trabalhos, pois tinha acabado de nascer uma nova ninhada de cavalos-marinhos, mas Dítě tanto implorou que Gandales acabou por a seguir. Ao ver Amadis deitado na sua cesta, Gandales mandou de imediato chamar Urganda, a mãe de todos os golfinhos, e foi esta que o alimentou.
Amadis cresceu muito depressa com o leite de Urganda e os cuidados e ensinamentos de Gandales. Assim que Amadis atingiu a idade adulta, Dóris, que até ao momento tinha ignorado o que considerava mais uma loucura da sua filha mais nova, apercebeu-se do amor que surgia entre ele e Dìtě. Resolveu então que tinha chegado o momento de devolver aquele humano frágil e inútil, como o restante pó que a filha guardava debaixo da cama, à procedência. Como sabia que Dìtě não o iria permitir e para evitar uma nova guerra com a filha predilecta de Nereu, mandou chamar em segredo Arcalaus, o mais engenhoso dos feiticeiros, e encarregou-o de raptar Amadis em segredo e de o levar para bem longe dali, para perto do continente asiático. Arcalaus tinha como missão depositá-lo nos braços de Endriago, o pai dos furacões. Este saberia onde o deixar, de modo que Dìtě não pudesse jamais voltar a encontrá-lo. Jamais.
Naquela noite, Arcalaus pegou em Amadis, profundamente adormecido com um feitiço negro, e transportou-o durante milhares de quilómetros pelo Mediterrâneo, Atlântico e Índico. No meio do Índico, encontrou-se com Endriago e atirou-lhe para os braços o corpo adormecido do amado de Dìtě. Mal saiu das águas para os ventos, a respiração de Amadis cessou. O seu corpo tinha-se habituado ao elemento aquoso e já não podia respirar nos ares. Nem Arcalaus, que de imediato se pusera de regresso a casa, nem Endriago, prestes a abater-se violentamente sobre o Japão, deram por nada. Mas Dìtě acordou subitamente, sem conseguir respirar. O que Dóris não sabia, porque nunca entendera Dìtě ou os seus poderes, é que a filha, ao partilhar com Amadis a capacidade de respirar e viver na água, ficara ligada a ele para viver e morrer com ele. Dìtě levou as mãos à garganta, absolutamente consciente do que estava prestes a acontecer. Não conseguia sequer gritar. Mas Urganda, que amamentara Amadis em criança, soube de imediato o que se passava e acordou subitamente. Como um raio de luz, precipitou-se para Dìtě, atirou-a para o seu dorso com as suas fortes barbatanas e dirigiu-se a uma velocidade louca para a costa do Japão.
Deixou Dìtě quase inconsciente com as mãos agarradas aos pés de Endriago, lívidas de tanta força que era necessária para os segurar, afastou-se e aguardou, a tremer. Urganda não tinha poderes para enfrentar o pai dos furacões. Com o seu último suspiro, Dìtě torceu e mordeu até rasgar os pés de Endriago. Este gritou de dor e foi devolvido aos céus, deixando cair Amadis no mar.
Dìtě teve apenas tempo de o agarrar rapidamente e mergulhar com ele, o mais fundo que conseguiu. Perdeu de vez a consciência e ambos caíram que nem pedras em direcção ao leito do oceano. Urganda seguia-os com dificuldade, pois esgotara toda a sua energia naquela última viagem. Quando chegou perto deles, ambos jaziam inertes sobre os corais. Urganda chorou, pois sentiu que, por mais rápida que tivesse sido, não tinha conseguido levar Dìtě a Endriago a tempo de ela salvar Amadis e assim se salvar a si própria. Agora, estavam ambos mortos. O seu canto triste, de profunda agonia, acordou os corais.
Só que alguns daqueles corais eram descendentes dos que Dìtě um dia salvara e reconheceram imediatamente aqueles que estavam pousados sobre eles.
A fecundação e reprodução dos corais tem os seus mistérios. Quando acontece, os recém-nascidos captam as energias e poderes mágicos que existem em seu redor. E passam essas energias e magia de geração em geração.
Estes corais, em particular, eram muito poderosos, pois tinham herdado de Dìtě o dom da cura e de Amadis o amor sem limites. Com um impulso totalmente incontrolável de amor e vontade de curar, explodiram sobre os corpos de Dìtě e Amadis, sacrificando a própria vida pela dos dois amantes. Urganda viu apenas uma nuvem brilhante e densa cobrir os dois corpos e no momento seguinte todos os corais tinham desaparecido e Dìtě e Amadis estavam nos braços um do outro, os pulmões de ambos de novo em uníssono e ritmado movimento. Inspira, expira, inspira, expira, inspira, expira… com a água do mar a fluir entre um e outro.
Nenhum dos três regressou a casa. Ouviram-se histórias, no fundo do mar, de que Nereu terá matado Arcalaus e mandado prender Dóris. Mas podem ser apenas histórias. Dìtě adoptou o nome de Oriana, o preferido de Amadis, e dedicou o resto da sua vida ao amado e à protecção dos corais do Índico. Urganda ficou, pois Amadis tornara-se seu filho e já não podia separar-se dele. Quanto a Amadis, ganhou o gosto de Dìtě por coleccionar objectos estranhos e em oceano algum havia mais objectos estranhos do que ali mesmo, no Índico.
Foi precisamente sobre os objectos que ambos coleccionavam que Dìtě-Oriana resolveu começar a escrever contos de fino recorte. Escreve sobre jarros jomon, espantalhos, porcelanas Imari e Satsuma, bolas de neve, bules de ferro de Ashiya, bolas de cal, máscaras de laca, conchas, taças de bambu dourado, chávenas de café, peças Ukiyo-e, ligaduras, dogus, arrumadores de carros, dobokos, pratos de balança, gravuras Shin-Hanga, relâmpagos, dotakus, labaredas, kanjis, jóias, kimonos de seda, pó, kongokais, casacos, mandalas, sépia, kirikanes…
E nós, simples humanos, deliciamo-nos com os seus contos, que são depositados pela espuma do mar nos sítios mais inesperados. Por exemplo, aqui?...
 

[Nota: Alguns dos nomes dos personagens foram inspirados no único romance de cavalaria português, Amadis de Gaula, romance datado provavelmente de finais do século XIII, pertencente ao ciclo arturiano, de autor desconhecido. Há fontes que indicam que o primeiro autor foi um tal de Vasco de Lobeira, armado cavaleiro na batalha de Aljubarrota ou João de Lobeira. Os outros nomes de personagens foram inspiração da mitologia grega. Os objectos de nome japonês encontrados por Amadis, são na sua maioria objectos de arte, cujo significado, para quem seja mais curioso, pode ser encontrado na Internet. Só uma pequena curiosidade: em checoslovaco, Dìtě significa “criança”. No conto significa “de pura essência”.]


quarta-feira, 7 de outubro de 2009


(1) É verdade, certo e muito verdadeiro:
(2) O que está em baixo é como o que está em cima e o que está em cima é como o que está em baixo, para realizar os milagres de uma única coisa.
(3) E assim como todas as coisas vieram do Um, assim todas as coisas são únicas, por adaptação.
(4) O Sol é o pai, a Lua é a mãe, o vento o embalou em seu ventre, a Terra é sua alma;
(5) O Pai de toda Telesma do mundo está nisto.
(6) Seu poder é pleno, se é convertido em Terra.
(7) Separarás a Terra do Fogo, o sutil do denso, suavemente e com grande perícia.
(8) Sobe da terra para o Céu e desce novamente à Terra e recolhe a força das coisas superiores e inferiores.
(9) Desse modo obterás a glória do mundo.
(10) E se afastarão de ti todas as trevas.
(11) Nisso consiste o poder poderoso de todo poder:
Vencerás todas as coisas sutis e penetrarás em tudo o que é sólido.
(12) Assim o mundo foi criado.
(13) Esta é a fonte das admiráveis adaptações aqui indicadas.
(14) Por esta razão fui chamado de Hermes Trismegistos, pois possuo as três partes da filosofia universal.
(15) O que eu disse da Obra Solar é completo.


folhas soltas

a tua alma apontada (1) A viagem da alma (28) Agnieszka Kurowska (1) Agostinho da Silva (2) Agustina Bessa-Luís (1) Aida Cordeiro (1) Al Berto (1) Alexandre Herculano (1) Alisteir Crowley (1) Almada Negreiros (2) Amanda Palmer (1) amigos (1) Ana Cristina Cesar (1) Ana Hatherly (1) Anne Stokes (1) Antero de Quental (1) António Lobo Antunes (2) António Ramos Rosa (2) Apocalyptica (1) apócrifos (2) Arte Virtual (1) as almas os pássaros (1) As Arqui-inimigas (1) Ashes and Snow (1) Auguste Rodin (1) autores preferidos (88) avós (1) Bocelli (1) Bon Jovi (1) Buda (1) Carl Sagan (1) Carolina (3) Caroline Hernandez (1) Catarina Nunes de Almeida (1) ce qu’il faut dépenser pour tuer un homme à la guerre (1) Cheyenne Glasgow (1) Chiyo-ni (1) Chogyam Trungpa Rinpoche (1) cinema (6) Cinema Paradiso (1) Clarice Lispector (1) Coldplay (1) Colin Horn (1) Constantin Brancusi (1) contos (28) Contos para crianças (6) Conversas com os meus cães (2) Curia (1) Daniel Faria (2) David Bohm (1) David Doubilet (1) Dítě (1) Do Mundo (32) Dylan Thomas (1) Eça de Queiroz (1) Eckhart Tolle (1) Edgar Allan Poe (1) Edmond Jabès (1) Elio Gaspari (1) Emily Dickinson (4) Ennio Morricone (1) Eric Serra (1) escultura (2) Federico Mecozzi (1) Fernando Pessoa (3) Fiama Hasse Pais Brandão (3) Fiona Joy Hawkins (1) Física (1) fotografia (9) Francesco Alberoni (1) Francisca (2) Fynn (1) Galileu (1) Gastão Cruz (2) Georg Szabo (1) George Bernanos (1) Giuseppe Tornatore (1) Gnose (2) Gonçalo M. Tavares (1) Gregory Colbert (1) Haiku (1) Hans Christian Andersen (1) Hans Zimmer (1) Henri de Régnier (1) Henry Miller (1) Herberto Helder (5) Hermes Trismegisto (1) Hilda Hilst (3) Hillsong (1) Hipácia de Alexandria (1) Igor Zenin (1) inteligência artificial (1) James Lovelock (1) Jean-François Rauzier (1) Jess Lee (1) João Villaret (1) Johannes Hjorth (1) Jonathan Stockton (1) Jorge de Sena (1) Jorge Luis Borges (2) Jorseth Raposo de Almeida (1) José Luís Peixoto (2) José Mauro de Vasconcelos (1) José Régio (1) José Saramago (1) Khalil Gibran (1) Krishnamurti (1) Kyrielle (1) Laura (1) Linkin Park (1) Lisa Gerrard (3) Live (1) Livros (1) Loukanikos (1) Luc Besson (1) Ludovico Einaudi (1) Luis Fonsi (1) Luís Vaz de Camões (1) Luiza Neto Jorge (1) Lupen Grainne (1) M. C. Escher (1) M83 (1) Machado de Assis (1) Madalena (1) Madan Kataria (1) Manuel Dias de Almeida (1) Manuel Gusmão (1) Marco Di Fabio (1) Margaret Mitchell (1) Maria Gabriela Llansol (1) Memórias (25) Michelangelo (1) Miguel de Cervantes y Saavedra (1) Miguel Esteves Cardoso (1) Miguel Sousa Tavares (1) Miguel Torga (1) Milan Kundera (1) música (25) Neil Gaiman (1) Nick Cave (1) Noite de todos os santos (1) O sal das lágrimas (2) Olavo de Carvalho (1) Orações (1) Orides Fontela (1) Orpheu (1) Oscar Wilde (3) Palavras preferidas (1) Palavras que odeio (1) Paolo Giordano (1) páscoa todos os dias (3) Patrick Cassidy (1) Paul Valéry (1) Paulo Melo Lopes (2) pensamentos (76) pintura (5) Platão (1) poemas (15) Poemas Gregos (2) Poesia (2) prosas (25) Prosas soltas (1) Radin Badrnia (1) Richard Linklater (1) rios de março (1) Roland Barthes (1) Russell Stuart (1) Serafina (2) Shalom Ormsby (1) Sigur Rós (1) Simone Weil (1) sobrinhas (5) Sócrates Escolástico (1) Sofia Raposo de Almeida (176) Sophia de Mello Breyner (14) Stephen Fry (1) Stephen Simpson (1) Steve Jobs (1) Susan J. Roche (1) Sytiva Sheehan (1) Teresa Vale (1) The Cinematic Orchestra (2) The Verve (1) Thomas Bergersen (1) Todd Gipstein (1) Tomás Maia (1) traduções de poemas (5) Uma Mulher na Foz de um Rio (4) valter hugo mãe (1) Vincent Fantauzzo (1) Wayne Roberts (1) wikihackers (1) William Blake (2) Yeshua (2) Yiruma (1)

cinco mais