as almas, os pássaros

as almas, os pássaros

as almas, os pássaros

as almas, os pássaros

domingo, 22 de agosto de 2010

Âncora de carne
viva,
tensão-sangue.

E o mar
a crescer,
negro.

Um olhar
como sal
alheio, infante,
ferrado na pele da alma-
-amante,
mais do que vitral
não fere

desidrata remoto,
mural






Era uma vez uma fada muito pequenina. Tinha os cabelos prateados, compridos, os olhos verdes e usava um vestido azul safira, muito brilhante. As asas, delicadas, eram entre o verde água e o azul. Vivia nos jardins da nossa cidade. Tinha muito trabalho, pois era ela que pintava as folhas das árvores todas as estações, com cores diferentes e também era ela que pintava as pétalas das flores, as pintas encarnadas das joaninhas e o intrincado padrão das asas das borboletas. Mas ela sentia-se muito sozinha e triste, porque apesar de todo o trabalho que tinha, era tão pequenina, tão pequenina, que ninguém a via e, por isso, só por isso, ninguém nunca lhe agradecia pelo seu trabalho. Era mais pequenina até que as formigas, que também passavam por ela sem a ver, apesar de às vezes se dar ao trabalho de refrescar as folhas já meio mortas que transportavam para o formigueiro com um verde vivo, que lhes devolvia a seiva.

Um dia, estava ela empoleirada numa árvore, a pensar desistir de tanto esforço vão, quando viu um pequeno aranhiço a trepar pela árvore acima. Este aranhiço também era MUITO pequeno. Quase tão pequeno como ela. Quando o aranhiço chegou a meio da árvore, olhou para ela com os seus oito olhos e perguntou: - Como te chamas?A fadinha ficou muito espantada e estremeceu de felicidade, pois era a primeira vez que alguém dava por ela. - Chamo-me Dóriel., respondeu, na sua voz musical, que também ninguém ouvia, excepto agora o aranhiço, claro. E tu?- Não sei, nunca ninguém me viu antes, nunca ninguém me deu um nome.Então, a fadinha, encantada por ter finalmente encontrado um verdadeiro amigo, resolveu transformá-lo no Homem-Aranha. Do aranhiço desajeitado, surgiu um lindo rapaz, só com um par de olhos, muito vivos, as pernas compridas e muita força. E embora ele fosse muito grande e combatesse heroicamente o mal neste mundo, quando estava perto dela, ficava sempre pequenino, como ela, e ajudava-a a pintar as folhas das árvores todas as estações, verdes no verão e amarelas e encarnadas no outono, as pétalas das flores, as pintas encarnadas das joaninhas e o intrincado padrão das asas das borboletas. Aliás, foi assim que nasceram as borboletas castanhas, pois o Homem-Aranha não tinha muito jeito para desenhos complicados e quis desenhar borboletas parecidas com ele, quando ainda era um MUITO PEQUENO aranhiço.Quando terminavam juntos a pintura da estação, ele voltava a crescer e saltava das árvores, regressando à cidade.

E é por isso que, apesar de vivermos na cidade, temos ainda tanta cor à nossa volta e ainda por cima temos o Homem-Aranha para nos proteger.


terça-feira, 17 de agosto de 2010

Violentamente só
desfeito em louco
- nem um gato lunar
te arranha um pouco

Morreram-te na família
irmãos mais velhos
Restam-te retratos de vidro
e espelhos

Entre as fêmeas bendita
não te quis
As outras mataste
(Nem há sangue que te baste)

O chão do teus país
deu-te água e uma raiz
muitas pedras mas prisões

- Senhor Demónio dos Sós
quando ele morrer
onde o pões?

Luiza Neto Jorge
Esta mão que escreve a ardente melancolia
da idade
é a mesma que se move entre as nascenças da cabeça,
que à imagem do mundo aberta de têmpora
a têmpora
ateia a sumptuosidade do coração. A demência lavra
a sua queimadura desde os seus recessos negros
onde se formam
as estações até ao cimo,
nas sedas que se escoam com a largura
fluvial
da luz e a espuma, ou da noite e as nebulosas
e o silêncio todo branco.
Os dedos.
A montanha desloca-se sobre o coração que se alumia: a língua
alumia-se: O mel escurece dentro da veia
jugular talhando
a garganta. Nesta mão que escreve afunda-se
a lua, e de alto a baixo, em tuas grutas
obscuras, essa lua
tece as ramas de um sangue mais salgado
e profundo. E o marfim amadurece na terra
como uma constelação. O dia leva-o, a noite
traz para junto da cabeça: essa raiz de osso
vivo. A idade que escrevo
escreve-se
num braço fincado em ti, uma veia
dentro
da tua árvore. Ou um filão ardido de ponto a ponta
da figura cavada
no espelho. Ou ainda a fenda
na fronte por onde começa a estrela animal.
Queima-te a espaçosa
desarrumação das imagens. E trabalha em ti
o suspiro do sangue curvo, um alimento
violento cheio
da luz entrançada na terra. As mãos carregam a força
desde a raiz
dos braços a força
manobra os dedos ao escrever da idade, uma labareda
fechada, a límpida
ferida que me atravessa desde essa tua leveza
sombria como uma dança até
ao poder com que te toco. A mudança. Nenhuma
estação é lenta quando te acrescentas na desordem, nenhum
astro
é tao feroz agarrando toda a cama. Os poros
do teu vestido.
As palavras que escrevo correndo
entre a limalha. A tua boca como um buraco luminoso,
arterial.
E o grande lugar anatómico em que pulsas como um lençol lavrado.
A paixão é voraz, o silêncio
alimenta-se
fixamente de mel envenenado. E eu escrevo-te
toda
no cometa que te envolve as ancas como um beijo.
Os dias côncavos, os quartos alagados, as noites que crescem
nos quartos.
É de ouro a paisagem que nasce: eu torço-a
entre os braços. E há roupas vivas, o imóvel
relâmpago das frutas. O incêndio atrás das noites corta
pelo meio
o abraço da nossa morte. Os fulcros das caras
um pouco loucas
engolfadas, entre as mãos sumptuosas.
A doçura mata.
A luz salta às golfadas.
A terra é alta.
Tu és o nó de sangue que me sufoca.
Dormes na minha insónia como o aroma entre os tendões
da madeira fria. És uma faca cravada na minha
vida secreta. E como estrelas
duplas
consanguíneas, luzimos de um para o outro
nas trevas.


Herberto Helder

domingo, 15 de agosto de 2010

Sou casada com a Verdade.
Hipácia de Alexandria

Hipácia de Alexandria
Existiu em Alexandria uma mulher de nome Hipácia, filha do filósofo Teão, que foi tão longe na literatura e na ciência que ultrapassou todos os filósofos do seu tempo. Discípula da escola de Platão e Plotino, ensinava os princípios da filosofia aos seus alunos, muitos dos quais vinham de terras distantes para escutarem os seus ensinamentos. Com um grande auto-controlo e descontracção, que obteve como consequência do cultivo da sua mente, não raras vezes aparecia em público, na presença dos magistrados. Nem se coibia de comparecer numa assembleia de homens. Pois todos os homens a admiravam ainda mais devido à sua extraordinária dignidade e virtude. Mas até ela foi vítima da inveja política que ao tempo prevalecia. Ao manter diálogos frequentes com Orestes, foi caluniosamente relatado entre a populaça cristã que era ela que impedia Orestes de se reconciliar com o bispo. Alguns deles, impulsionados por um zelo feroz e fanático, cujo líder era um leitor [das escrituras] chamado Pedro, arrancaram-na da sua carruagem quando ela regressava a casa, arrastaram-na para o templo chamado Caesareum, onde lhe rasgaram as roupas e a apedrejaram (*) até à morte. Depois de rasgarem o seu corpo em pedaços, levaram os seus membros mutilados a um local chamado Cinaron e aí os queimaram. Este assunto trouxe não pequeno opróbrio quer a Cirilo, quer a toda a igreja Alexandrina. E certamente que nada poderá estar mais distante do espírito do Cristianismo que a permissão de massacres, lutas e acontecimentos de tal ordem. Isto aconteceu no mês de Março, durante a Quaresma, durante o quarto ano do episcopado de Cirilo, sob o décimo consulado de Honorius e o sexto de Teodósio.

Sócrates Escolástico, A vida de Hipácia, in História Eclesiástica

Nota: (*) a palavra grega original é ostrakois, literalmente conchas de ostras, mas a palavra também era aplicada a azulejos de tijolo usados nos telhados das casas.

quarta-feira, 11 de agosto de 2010

sei também que para ser uma escritora, não basta escrever. muitos escrevem e não o são. sei que sou uma escritora porque já escrevia antes de saber escrever. aqueles rabiscos sentada eu na secretária do meu avô paterno, a única memória daquela casa que me é agradável. o papel, a caneta e os rabiscos enlouquecidos, escrevo. repito-me, mas é mesmo assim, escrevo como respiro, são duas respirações e depois. seria incapaz de vender a minha respiração e nem sequer quero partilhá-la com os de fome insaciável. os que tudo têm e não têm nada. comem, comem, comem e estão sempre com fome. ou os outros, ou os outros. ou os outros, os outros. sou uma escritora, mas não sei bem o que isso é. a caneta, o papel, a respiração, calo no dedo indicador direito, porque sou dextra. primeiro o calo envergonhava-me, deformava-me os dedos, eram tão finos, pontiagudos, aquele calo. aquele calo sou eu. ainda lá está, apesar do teclado, as pontas dos dedos não criam calo, sem árvores a escrita não respira da mesma forma, a escrita e as árvores estão ligadas, amo o calo. como o calo dos troncos, os troncos, os ramos, têm calos daqueles, as árvores escrevem no ar que respiramos, são musas crísticas invisíveis, cada árvore tem um tronco único, os calos como impressões vivas, não digitais, vivas, onde estão os bloqueios sangram as palavras, há nós, filhos que não nasceram, sei lá se os meus rabiscos não diziam estas palavras ou outras, sempre quis dizer, estou aqui, mas não quero, ou quero, vim porque quis, cansada antes da luz terrestre por nascer, não precisam de me ver, mas as palavras queria que ficassem na memória colectiva, vêm da cruz vazia, eram traços longos, inclinados. não como runas, mas como veios de seiva, por vezes sangravam-me na boca, quando trincava pedras, os dentes caíam-me em sonhos durante a noite. nunca vi este mundo, há muito que não faço parte dele, das árvores sim, das pedras, por isso como a carne como se fosse pão, rejeito os frutos como alimento, deles só absorvo o aroma, o aroma puro da água e da terra, depois vejo o meu sorriso que gravaste na luz e penso. só tu me fazes sorrir assim, tu e a tua incapacidade com as máquinas humanas, quando te olho, simplesmente sorrio e sei. vim por ti, para estar perto e para te abandonar até que cresças. só tu consegues ver o meu sorriso mais belo, aquele que canta nos ramos das árvores e no peito das aves e no coração das sementes e dos furacões e dos vulcões e nos dentes dos carnívoros, nas barbatanas dos peixes, no zumbido dos insectos, nas patas dos lagartos, na areia dos desertos, na crista da ondas, nas tempestades solares, completo, não disse tudo, este mundo é unidimensional para esse sorriso. tinha saudades e vi-o na imagem minha que capturaste, colocaste-me em sintra fora deste mundo, onde sabes que te pertenço. aqui, não. só tu sabes colocar-me lá, nesse acabei de nascer onde sou feliz.
sou uma escritora, não sei bem o que isso é, mas sei que escrever é uma dádiva de nós aos outros e não um assalto e não um roubo e não uma tentativa ridículo de devorar o outro, jamais uma mentira, raramente uma técnica, não, escrever é sempre uma dádiva, é "sangue, suor e lágrimas" que de nós escorre para o mundo, por vezes esvai-se inutilmente como água no deserto, outras vezes cai em terra fértil, escrever é como estar na cruz e dizer, não quero, mas estou, porque eu sou a cruz. o calo.

segunda-feira, 2 de agosto de 2010

Sei que o homem lavava os cabelos como se fossem longos
Porque tinha uma mulher no pensamento
Sei que os lavava como se os contasse

Sei que os enxugava com a luz da mulher
Com os seus olhos muito claros voltados para o centro
Do amor, na operação poderosa
Do amor

Sei que cortava os cabelos para procurá-la
Sei que a mulher ia perdendo os vestidos cortados

Era um homem imaginado no coração da mulher que lavava
O cabelo no seu sangue

Na água corrente

Era um homem inclinado como o pescador nas margens para ouvir
E a mulher cantava para o homem respirar

Daniel Faria
Site oficial do poeta: Daniel Faria

 



Fotografia: Cavan Images

folhas soltas

a tua alma apontada (1) A viagem da alma (28) Agnieszka Kurowska (1) Agostinho da Silva (2) Agustina Bessa-Luís (1) Aida Cordeiro (1) Al Berto (1) Alexandre Herculano (1) Alisteir Crowley (1) Almada Negreiros (2) Amanda Palmer (1) amigos (1) Ana Cristina Cesar (1) Ana Hatherly (1) Anne Stokes (1) Antero de Quental (1) António Lobo Antunes (2) António Ramos Rosa (2) Apocalyptica (1) apócrifos (2) Arte Virtual (1) as almas os pássaros (1) As Arqui-inimigas (1) Ashes and Snow (1) Auguste Rodin (1) autores preferidos (88) avós (1) Bocelli (1) Bon Jovi (1) Buda (1) Carl Sagan (1) Carolina (3) Caroline Hernandez (1) Catarina Nunes de Almeida (1) ce qu’il faut dépenser pour tuer un homme à la guerre (1) Cheyenne Glasgow (1) Chiyo-ni (1) Chogyam Trungpa Rinpoche (1) cinema (6) Cinema Paradiso (1) Clarice Lispector (1) Coldplay (1) Colin Horn (1) Constantin Brancusi (1) contos (28) Contos para crianças (6) Conversas com os meus cães (2) Curia (1) Daniel Faria (2) David Bohm (1) David Doubilet (1) Dítě (1) Do Mundo (32) Dylan Thomas (1) Eça de Queiroz (1) Eckhart Tolle (1) Edgar Allan Poe (1) Edmond Jabès (1) Elio Gaspari (1) Emily Dickinson (4) Ennio Morricone (1) Eric Serra (1) escultura (2) Federico Mecozzi (1) Fernando Pessoa (3) Fiama Hasse Pais Brandão (3) Fiona Joy Hawkins (1) Física (1) fotografia (9) Francesco Alberoni (1) Francisca (2) Fynn (1) Galileu (1) Gastão Cruz (2) Georg Szabo (1) George Bernanos (1) Giuseppe Tornatore (1) Gnose (2) Gonçalo M. Tavares (1) Gregory Colbert (1) Haiku (1) Hans Christian Andersen (1) Hans Zimmer (1) Henri de Régnier (1) Henry Miller (1) Herberto Helder (5) Hermes Trismegisto (1) Hilda Hilst (3) Hillsong (1) Hipácia de Alexandria (1) Igor Zenin (1) inteligência artificial (1) James Lovelock (1) Jean-François Rauzier (1) Jess Lee (1) João Villaret (1) Johannes Hjorth (1) Jonathan Stockton (1) Jorge de Sena (1) Jorge Luis Borges (2) Jorseth Raposo de Almeida (1) José Luís Peixoto (2) José Mauro de Vasconcelos (1) José Régio (1) José Saramago (1) Khalil Gibran (1) Krishnamurti (1) Kyrielle (1) Laura (1) Linkin Park (1) Lisa Gerrard (3) Live (1) Livros (1) Loukanikos (1) Luc Besson (1) Ludovico Einaudi (1) Luis Fonsi (1) Luís Vaz de Camões (1) Luiza Neto Jorge (1) Lupen Grainne (1) M. C. Escher (1) M83 (1) Machado de Assis (1) Madalena (1) Madan Kataria (1) Manuel Dias de Almeida (1) Manuel Gusmão (1) Marco Di Fabio (1) Margaret Mitchell (1) Maria Gabriela Llansol (1) Memórias (25) Michelangelo (1) Miguel de Cervantes y Saavedra (1) Miguel Esteves Cardoso (1) Miguel Sousa Tavares (1) Miguel Torga (1) Milan Kundera (1) música (25) Neil Gaiman (1) Nick Cave (1) Noite de todos os santos (1) O sal das lágrimas (2) Olavo de Carvalho (1) Orações (1) Orides Fontela (1) Orpheu (1) Oscar Wilde (3) Palavras preferidas (1) Palavras que odeio (1) Paolo Giordano (1) páscoa todos os dias (3) Patrick Cassidy (1) Paul Valéry (1) Paulo Melo Lopes (2) pensamentos (76) pintura (5) Platão (1) poemas (15) Poemas Gregos (2) Poesia (2) prosas (25) Prosas soltas (1) Radin Badrnia (1) Richard Linklater (1) rios de março (1) Roland Barthes (1) Russell Stuart (1) Serafina (2) Shalom Ormsby (1) Sigur Rós (1) Simone Weil (1) sobrinhas (5) Sócrates Escolástico (1) Sofia Raposo de Almeida (176) Sophia de Mello Breyner (14) Stephen Fry (1) Stephen Simpson (1) Steve Jobs (1) Susan J. Roche (1) Sytiva Sheehan (1) Teresa Vale (1) The Cinematic Orchestra (2) The Verve (1) Thomas Bergersen (1) Todd Gipstein (1) Tomás Maia (1) traduções de poemas (5) Uma Mulher na Foz de um Rio (4) valter hugo mãe (1) Vincent Fantauzzo (1) Wayne Roberts (1) wikihackers (1) William Blake (2) Yeshua (2) Yiruma (1)

cinco mais