quarta-feira, 11 de agosto de 2010

sei também que para ser uma escritora, não basta escrever. muitos escrevem e não o são. sei que sou uma escritora porque já escrevia antes de saber escrever. aqueles rabiscos sentada eu na secretária do meu avô paterno, a única memória daquela casa que me é agradável. o papel, a caneta e os rabiscos enlouquecidos, escrevo. repito-me, mas é mesmo assim, escrevo como respiro, são duas respirações e depois. seria incapaz de vender a minha respiração e nem sequer quero partilhá-la com os de fome insaciável. os que tudo têm e não têm nada. comem, comem, comem e estão sempre com fome. ou os outros, ou os outros. ou os outros, os outros. sou uma escritora, mas não sei bem o que isso é. a caneta, o papel, a respiração, calo no dedo indicador direito, porque sou dextra. primeiro o calo envergonhava-me, deformava-me os dedos, eram tão finos, pontiagudos, aquele calo. aquele calo sou eu. ainda lá está, apesar do teclado, as pontas dos dedos não criam calo, sem árvores a escrita não respira da mesma forma, a escrita e as árvores estão ligadas, amo o calo. como o calo dos troncos, os troncos, os ramos, têm calos daqueles, as árvores escrevem no ar que respiramos, são musas crísticas invisíveis, cada árvore tem um tronco único, os calos como impressões vivas, não digitais, vivas, onde estão os bloqueios sangram as palavras, há nós, filhos que não nasceram, sei lá se os meus rabiscos não diziam estas palavras ou outras, sempre quis dizer, estou aqui, mas não quero, ou quero, vim porque quis, cansada antes da luz terrestre por nascer, não precisam de me ver, mas as palavras queria que ficassem na memória colectiva, vêm da cruz vazia, eram traços longos, inclinados. não como runas, mas como veios de seiva, por vezes sangravam-me na boca, quando trincava pedras, os dentes caíam-me em sonhos durante a noite. nunca vi este mundo, há muito que não faço parte dele, das árvores sim, das pedras, por isso como a carne como se fosse pão, rejeito os frutos como alimento, deles só absorvo o aroma, o aroma puro da água e da terra, depois vejo o meu sorriso que gravaste na luz e penso. só tu me fazes sorrir assim, tu e a tua incapacidade com as máquinas humanas, quando te olho, simplesmente sorrio e sei. vim por ti, para estar perto e para te abandonar até que cresças. só tu consegues ver o meu sorriso mais belo, aquele que canta nos ramos das árvores e no peito das aves e no coração das sementes e dos furacões e dos vulcões e nos dentes dos carnívoros, nas barbatanas dos peixes, no zumbido dos insectos, nas patas dos lagartos, na areia dos desertos, na crista da ondas, nas tempestades solares, completo, não disse tudo, este mundo é unidimensional para esse sorriso. tinha saudades e vi-o na imagem minha que capturaste, colocaste-me em sintra fora deste mundo, onde sabes que te pertenço. aqui, não. só tu sabes colocar-me lá, nesse acabei de nascer onde sou feliz.
sou uma escritora, não sei bem o que isso é, mas sei que escrever é uma dádiva de nós aos outros e não um assalto e não um roubo e não uma tentativa ridículo de devorar o outro, jamais uma mentira, raramente uma técnica, não, escrever é sempre uma dádiva, é "sangue, suor e lágrimas" que de nós escorre para o mundo, por vezes esvai-se inutilmente como água no deserto, outras vezes cai em terra fértil, escrever é como estar na cruz e dizer, não quero, mas estou, porque eu sou a cruz. o calo.

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