Não é amigo aquele que alardeia a amizade: é traficante; a amizade sente-se, não se diz.
Machado de Assis
Penso que, como todos, tenho poucos amigos. Muito poucos. Penso que, cada vez mais, há menos pessoas na sociedade dita civilizada dignas de poderem ser consideradas amigas. Porque existem cada vez menos pessoas empáticas, ternas, atentas, curiosas em relação aos outros. Nunca recuso ninguém. O problema é que a maior parte das pessoas que aceito no meu círculo não merecem o tempo que se lhes dedica. O que verifico, ao fim de uma análise interessada e profunda, é que no fundo, são pessoas extremamente sós e vazias, o que não é de admirar, mas o que nunca há-de deixar de me surpreender, é o que compõe o lodo que está no fundo: tanta inveja, tanta fome, tanta amargura, tanta secura. Machado de Assis tem razão, aliás como Krishnamurti, quando diz que uma verdade dita muitas vezes se torna uma mentira. Os afectos profundos e verdadeiros não se dizem, sentem-se. Os traficantes da amizade são da mesma forma traficantes de amor. Traficam palavras das quais desconhecem o verdadeiro significado, cuja profunda verdade lhes escapa, pois estão tão cheios de matéria corrompida e pesada, que passam pela vida como caixões de chumbo com a podridão a roe-los por dentro. Também os que criticam o Facebook, como Miguel Sousa Tavares e outros, têm razão. Amigos, no Facebook, tenho meia dúzia e depois talvez mais meia dúzia que considero serem merecedores de tal distinção. Os restantes são contactos, alguns profissionais, outros porque partilham de uma paixão comum, letras, pintura, música... Acredito sempre que sejam boas pessoas, dignas, que tenham palavra. Mas muitas vezes me desiludo. Hoje em dia, por isso mesmo, já não quero olhar e ver mais profundamente. Tenho horror.
Ter Palavra. Isto já não se usa, pois não? Eu uso. Aprendi com o meu avô Manuel, que nasceu em 1903, sobre o que era ter Palavra. E depois aprendi com os outros sábios que lhe sucederam, nos tantos livros que li, que a Palavra era Verbo e que o Verbo era Deus. Não se usa, mas devia usar-se. Quem não tem Palavra, usa mal a Palavra e nem mesmo é digno de a pronunciar. Quem não tem Palavra, não sabe o significado profundo das palavras e mente o tempo todo com todos os dentes que tem na boca. Quem não tem Palavra é como um mau actor no palco da vida, pedindo emprestado aos outros vidas e sentimentos, vampirizando os que ainda sentem alguma coisa... e sim, digo mau actor, porque os bons actores transformam-se e absorvem o que os rodeia, crescendo e evoluindo. Há quem peça emprestado para crescer. A esses não se empresta. Dá-se. Os maus actores não pedem, roubam, roubam e estragam o que roubaram, tudo neles se suja e parte. Quem não tem Palavra, não sabe ser amigo de ninguém. E também não sabe amar. Sinto compaixão por essas pessoas, mas não sei como ajudá-las. Não sei como quebrar os caixões de chumbo e libertar a podridão. Confesso que já desisti. Como já disse uma vez, estou cansada. Estou cansada de não encontrar Deus naqueles que o deviam trazer dentro. E quem poderá saber o que para mim significa a Palavra-Deus? Talvez ninguém vivo.
Tal como disse Buda, um amigo falso e maldoso é mais temível que um animal selvagem; o animal pode ferir o teu corpo, mas um falso amigo irá ferir a tua alma. Tenho que a proteger, à minha alma. Afinal, mais ninguém o fará.
Quanto aos amigos, aos poucos que tenho, esses, como li uma vez, são anjos tranquilos. Ao pé deles sinto sempre paz e bem-estar. Fazem-me acreditar em tudo aquilo que não pode ser provado ou testado. Alguns desses meus amigos, não são humanos. Mas foi com esses que mais aprendi sobre o amor e os laços que unem os seres. Sobre a devoção desinteressada.