quinta-feira, 30 de julho de 2009



Por vezes solto-me do mundo, do rio. Paro à beira da estrada e mergulho numa pedra qualquer. Vejo a dor. Sintonizo-me com ela. Pedra cinzenta e negra, de respirar tão lento, que é quase como se pudesse não existir. Mas está ali. Nasceu de um vulcão e é lenta, apenas. Dor, como os outros. Então, o mundo desaparece e surge na pedra, em toda a sua plenitude inútil. Respiro fundo e toco-lhe. Surge este louco sonho de salvar a pedra e salvar o mundo. Interrompo a luz e chove. O frio desce sobre a estrada, a humidade inunda os ossos e congela a seiva. O tempo pára. O mundo à deriva, numa pedra. Vertigem. Tudo numa pedra. Solidão. As eras pesam-me, como mantos de lama. Apaixono-me pela pedra. Está tudo ali: as extinções em massa, as guerras, a fome, a morte. Tudo numa só pedra. Toco-lhe, tão ao de leve, e exorto-a: sê!

Então, subitamente, a pedra acorda. Sente-se o centro do universo e é-o, de facto, por um instante. Olha para mim, a luz eterna, e ri-se. Ri-se de mim, que reparei nela, na sua miséria, no seu negrume vazio que foi algo, talvez, no momento em que o meu olhar nela pousou. Mas o que faz a pedra? Incha. Ao inchar, esmaga-me. Tão forte e tão frágil sou.

É então que surge o abismo. Do inchaço da pedra, da sua vulgaridade, da sua ignorância, da sua fria e estúpida insensibilidade de pedra. Negro, imenso, magnético. A pedra vê-me cair e ri-se, uma última vez. Precipito-me no vazio, em voo picado. A velocidade é tal que as asas se rasgam, bocados esparsos de céu regressam à fonte. A luz da minha respiração destrói a prisão adivinhada. A energia do meu corpo embate, finalmente, contra o fundo, que aguarda, faminto, com mil e um rochedos afiados, como gumes de espadas rombas.

Tudo desaparece. Nasce um novo dia. O verão será curto este ano. Ou talvez nem exista, aqui onde permaneço. Milhões de pequenas partículas regressam ao mundo. Ninguém dá por elas. Minúsculas. Debaixo do meu voo, o abismo cerra-se, as espadas de novo adormecidas.



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