domingo, 12 de julho de 2009


Não há calor nem frio neste sítio onde me encontro,
nem luz nem escuridão. Apenas breves sombras
acinzentadas, como pálidos braços
de nevoeiro ondulantes, talvez serpentes adormecidas,
cujos dentes se tenham enterrado no sangue


outrora vermelho, agora igualmente cinzento,
espesso, enlameado.
Não há sentimento ou emoção,
apenas uma espécie de anestesia,
paralisia ou desaceleração, quase morte.
Não existe sequer peso ou leveza,
ou chão, ou caminho ou horizonte ou paisagem,
nem mesmo o tempo aqui sobreviveu.
Não existe vida. No entanto, existe algo.
Eu estou aqui e não estou morta.
Mas não há som, nem tacto, nem cheiro,
apenas a memória do sabor numa certa humidade
na boca e os restos de uma visão queimada.
Não estou adormecida. Não estou acordada.
Nada sinto. Estou mortalmente cansada.
Pedra vegetal. Dormente.


De repente fui despertada por guinchos horríveis. Só então me apercebi de que adormecera também. Os guinchos provêm da alma, que se contorce, perdendo gradualmente a forma, enquanto o punhal se crava no ser. As asas já não existem. Os guinchos são como os de uma criatura recém nascida, abandonada, esfomeada. Tento não ouvir. O tempo restabelece-se, toda a paisagem se desfaz, cores violentas invadem a minha sensibilidade. Tento ainda segurar o cabo do punhal, mas em vão, pois o cabo desfaz-me uma parte da mão. Enterra-se cada vez mais firmemente na alma, que se parece cada vez mais com um trapo sujo. O punhal desaparece e tudo fica silencioso. Em estado de choque, fito o que sobrou, na luz cinzenta. Fiapos negro-azulados de uma qualquer coisa. A coisa rasteja agora, em direcção ao corpo. Continua viva. Cobre todo o corpo, enquanto a mente enlouquece por um instante, e a coisa penetra nele, no corpo, pela pele, sem dor. À medida que o corpo cai, lentamente, na neve, a luz regressa. O tempo faz-se ouvir de novo. A mente adormece. Estamos no cimo de uma montanha gelada. Vejo o sol a rosar o horizonte. Não há caminho. As pálpebras erguem-se devagar. O olhar do corpo é triste. Vejo-o ficar azulado com o frio, braços, mãos, pernas, pés, nádegas enterrados na neve branca. A coisa está viva dentro dele. A mente desperta e começa a trabalhar. Mas é inútil. O corpo está nú, na neve gelada. Não há caminho. Preparo-me para partir. É então que ele surge, Raziel, sob a forma de esfinge ardente, do outro lado do cume, de ocidente. Desenhou uma estrada na encosta da montanha e traz um manto sobre o dorso. Com espanto, vejo o corpo erguer-se e precipitar-se na direcção do querubim e aninhar-se sob as suas patas dianteiras. Raziel baixa a enorme cabeça e o manto escorrega-lhe do pescoço para cima do corpo. Sussurra um nome, que não consegui escutar. O corpo adormece de novo, enrolado no manto. Raziel parte. Durante sete dias e sete noites, o corpo não se move, mas respira, e ouço a mente a trabalhar. No amanhecer do oitavo dia, o corpo ergue-se, enrolado no manto e vira-se para trás, o olhar gelado fixo em mim. Com voz rouca, murmura: Vens? Sem palavras, volto a fundir-me com o corpo e a mente e desço com eles a montanha, pela estrada calcinada que Raziel deixou aberta. Da alma, nem sinal.

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