terça-feira, 15 de dezembro de 2009

Deito-me tarde
Espero por uma espécie de silêncio
Que nunca chega cedo
Espero a atenção a concentração da hora tardia
Ardente e nua
É então que os espelhos acendem o seu segundo brilho
É então que se vê o desenho do vazio
É então que se vê subitamente
A nossa própria mão poisada sobre a mesa
É então que se vê passar o silêncio
Navegação antiquíssima e solene

Sophia de Mello Breyner 

 
Vi no silêncio / navegação antiquíssima e solene de Sophia um cisne adormecido embalado nos braços do rio da noite.


É bom quando os cisnes dormem. A minha filha-demónio, que tem de crescer rapidamente, só viu os cisnes adormecidos. Eu já os vi acordados, um branco e um preto, quebram-me o sono com pesadelos, um cisne branco e um cisne preto enrolados como um novelo em fúria a tentarem matar o pato, um pato tão esmagado pelos cisnes que não lhe vejo a cor.
No pesadelo o pato chamou-me, os patos gritam? choram? e fomos as duas de mãos dadas à procura dele no lago, a criança muito pequena, os olhos enormes, um vestido branco de algodão. Olhámos para o lago vazio à tona e foi quando vimos as três aves afundadas, bem no fundo do lago, e a criança-demónio atirou-se à água, tentava salvar as três aves, tentava salvar os cisnes daquele ódio impiedoso pelo pato, tentava salvar o pato dos cisnes e eu agarrei a criança pelos pés, perdeu a consciência assim que o seu pequeno corpo caiu na água, tentava salvar as três aves, duas a morrer de ódio e a outra a morrer do ódio das outras duas, as três aves num abraço violento e mortal, tanta tensão, tanta força nos pescoços dos cisnes, como serpentes em redor do corpo do pato e eu tentava salvar a criança da dor, não lhe largava os pés, precisava segurar-lhe a cabeça, agarrava-lhe os pés, não a queria perto das aves, já estavam mortas, as aves já estavam mortas.
Não devemos tentar salvar os que já estão mortos, segurava a criança-demónio contra o peito e dizia-lhe, não morras a tentar salvar os que já estão mortos.
É bom quando os cisnes dormem, minha filha-demónio. Não os acordes. Cresce, mas não acordes os cisnes adormecidos.


Pintura de Frankie Welk


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