segunda-feira, 29 de junho de 2009


Por vezes saio do rio, trepo pelas margens da Cidade acima, escorrendo água doce. Ninguém parece surpreendido, talvez porque nas cidades, nestas metrópoles que são como manicómios ou gigantescas masmorras ao ar livre, nada seja estranho demais. Nunca me afasto muito da margem, não posso perder de vista o Mar, a Floresta, desencarno longe deles. Gosto apenas de observar as pessoas, enquanto descanso. O cheiro da maresia chega até mim. A chuva limpa-me, cai no verão, agora, em grandes chapadas de água fresca, nessas alturas não há ninguém na rua, porque é verão, não há guarda-chuvas, refugiam-se nas portas das lojas e dos cafés, nas paragens de autocarro, não houve tempo para se adaptarem. Quando vem o sol, algumas vêem para perto do rio, homens com canas de pesca, pares de jovens namorados, adolescentes de patins, skate ou bicicleta, joggers obcecados com a boa forma física, homens a passearem os cães, as trelas a penderem displicentemente da mão direita, alguns casais idosos, o rio está ali, uma longa serpente prateada ou cor de safira ou uma enorme chapa de oiro rubro ao crepúsculo, cavou aquele enorme, profundíssimo leito ao longo das eras, poucos apreciam a sua força, a sua determinação, a sua paixão, água a perfurar terra, a rebentar com pedra, a galgar colinas, nasceu algures, tão frágil, o rio é assim, se não chegar ao mar morre algures, num pântano como a maior parte das pessoas, não encontram o seu mar, perderam toda a chuva, descruzaram-se de todos os riachos, quebraram com cada obstáculo. O rio devia ensiná-las, como cada gota de chuva é um ensinamento, cada riacho que se cruza connosco nos fortalece, como as pedras e troncos que surgem no percurso nos ajudam a derrubar montanhas, o rio sabe para onde vai. Choro as minhas lágrimas para dentro do rio, ele já não precisa delas, mas é o melhor lugar para as lágrimas, um rio assim. Depois mergulho nele uma vez mais, digo adeus à Cidade, e flutuo de novo, também sei para onde quero ir, mas de nada me vale toda a chuva que me choveu por dentro e por fora, nem todos os outros riachos, nem os pedregulhos e troncos das minhas marés interiores, por vezes, penso, enganei-me no mar, não era este mar, que me foge. Penso, pelo menos tenho o rio.

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