as almas, os pássaros

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sexta-feira, 8 de fevereiro de 2008



Lembro-me muito bem de como era ser criança. O tempo era infinito e não havia morte. O mundo era ao mesmo tempo muito pequeno e muito grande, porque tudo nele era enorme. O relvado da escola parecia a pradaria americana. As férias grandes duravam anos e no fim das mesmas tínhamos crescido imenso, pelo menos era o que os adultos nos diziam. As emoções ainda eram grandes demais para nós, por isso submergiam-nos. A nossa casa era um palácio, com um jardim que parecia uma floresta. Demorava pelo menos seis horas a ver um filme do Walt Disney (hoje sabemos que duram apenas 80 minutos). Tudo era possível. Os adultos tinham todas as respostas, por isso a nossa própria ignorância não nos afligia muito. Deus era uma certeza. Entre a fantasia e a realidade não havia fronteiras. O meu último sonho de criança foi na Ericeira. O mar colocou na minha mão uma estranha pedra transparente. Eu segurei a pedra, acariciei a água, como se acariciasse um cão gigante e prometi-lhe que dedicaria a minha vida a defênde-lo.
Lembro-me também muito bem de como era ser adolescente. O tempo começava a encurtar. As férias acabavam mais depressa. Os adultos, afinal, não sabiam tudo. Pior, mentiam-nos muitas vezes e tentavam manipular-nos. Havia demasiadas regras, todas elas duvidosas e, no mínimo, questionáveis. Havia afinal muitos deuses diferentes. Cresciam paredes à nossa volta. Víamos a máquina dos adultos a girar, a roncar, a deitar fumo. Víamos as vidas estúpidas que eles levavam e pensávamos: eu não, eu nunca serei assim, do trabalho para casa, da casa para o trabalho, sentada diante da televisão nas horas vagas, deprimida e sem sentido para a vida. Eu vou ser diferente, vou ser vagabunda, artista, diletante, eremita. Vou viver no campo com os animais e ter uma quinta. Vou-me casar com um padeiro, vou ser amante dum pescador e ele vai levar-me com ele no barco.
Lembro-me também muito bem de como era ter 20 anos. O tempo começara a apanhar-nos. Os adultos tinham os melhores empregos e todos pareciam ter mais oportunidades do que nós. Eram agora nossos competidores e éramos nós que tentávamos usá-los e manipulá-los. Deus já não era nem resposta, nem mesmo pergunta. As férias eram insuportavelmente curtas. Fazíamos as nossas próprias regras e aceitávamos algumas outras, para que não nos incomodassem muito. O tempo livre era utilizado sôfrega e intensamente. Ainda quase tudo era possível: ia-me casar, ter cinco filhos, uma casa enorme com piscina, jardim e court de ténis (porque ele gostava de ténis), quando nos apetecesse íamos jantar a Paris no nosso avião particular... Ia ser empresária, colocar as crianças na minha escola, tinha nomes e caras e côres para elas.
Lembro-me muito bem de ter chegado aos 30. Então, o que estava em questão era toda a minha vida. Já não tinha férias, o tempo deixara de existir porque nunca havia tempo para nada, o mundo tornara-se insuportavelmente pequeno, todas as cidades iguais umas às outras, as pessoas eram uma desilusão, tudo era mentira, interesse, falsidade... Ilhas, éramos todos ilhas a navegar não sabíamos muito bem para onde. A navegar... muitos de nós ilhas ancoradas, presas. Não há comunicação. Não há sentido. Tudo é por acaso.
Foi aos 30 anos que me comecei a consolar com a ideia de envelhecer. Comecei a criar um ideal de mim própria assim velhinha: magra, os cabelos curtos e grisalhos, ainda elegante, enfiada em jeans desbotados, de docksides, com uma bengalinha de mogno com punho de prata, a passear na praia com os meus dois cães, com o motorista à espera no meu velho Mercedes. Isto de manhãzinha cedo. À tarde, escreveria os meus livros, sentada à minha escrivaninha de madeira de cerejeira, no meu velho computador, enquanto os cães ressonavam, refastelados no tapete persa, já tão velho que se desfiava. Nessa altura percebi que tinha que mudar de vida. A vida tecera a sua teia à minha volta, mas eu já não me iludia mais com grandes sonhos e sabia onde tudo ia dar. Fiquei subitamente lúcida, aos trinta anos. Encontrara tudo aquilo com que sonhara (aos 10? aos 20? aos 30?), mas nada me podia pertencer. Dei de caras com a felicidade tarde demais. Perdera demasiado tempo. Restava-me a lucidez e o sentido de humor. Mudei de vida.
O meu mal sempre foi ser rápida demais no trabalho e lenta demais na vida pessoal. Mas isso é, de facto, uma característica minha: rápida a pensar e a agir, lenta a sentir e a confiar. Foi a vida que me ensinou a ser prudente.
Neste momento, tudo o que quero é paz. Apenas PAZ. Serena utopia num mundo que se desmorona, sem que ninguém dê por isso...


quinta-feira, 20 de setembro de 2007

Ela está na árvore, de calções de ganga e blusa cor-de-rosa, quase invisível. Porque cresceu com elas, com as árvores, porque um dia adormeceu abraçada aos troncos rugosos com a música suave do vento a brincar com as folhas, porque arrancou as folhas, e as flores e os frutos, e rasgoub as primeiras, para as conhecer por dentro e por fora, e esmagou as pétalas das outras, para lhes sentir a fragrância e os óleos e abriu os últimos, para lhes ver o caroço e os saborear, porque sentiu nas suas pequenas mãos e nos joelhos e na parte interior das pernas todas as pequenas saliências e texturas, que arranhavam, por vezes feriam, numa retribuição de curiosidade e amor, e porque aprendeu tudo sobre a força dos troncos, inquebráveis e a fragilidade dos ramos, que arrancou com um só puxão, para sentir a seiva escorregar-lhe por entre os dedos, um dia ela amará as árvores. Como só uma criança que as trepou e conheceu por dentro e por fora pode amar as árvores. Será uma dríade.

 



terça-feira, 20 de setembro de 2005

Aliás, Portugal é muito mais água que terra. Sem árvores, não há água.
Hoje em dia a Humanidade começa a colocar-se a questão se deveremos ou não viver para sempre. Isto porque a imortalidade começa a parecer possível, tendo em conta os mais recentes avanços da ciência. Os geneticistas procuram freneticamente o gene do envelhecimento, o gene ou grupo de genes responsáveis por interromperem a vida de cada criatura viva. Mas talvez, quando o encontrarem, descubram que esses genes são multi-funções e que não podem manipulá-los, sem consequências. Tenho a certeza absoluta de que assim será. Tenho a certeza absoluta de que o Homem está muito longe desse tipo de imortalidade. O código genético é, de facto, fascinante. Mas o porquê, o porquê desse código genético, como foi escrito, o que é que leva a que determinados genes sejam activados e outros desactivados, ainda o é mais. Podemos ter em nós os genes das asas, por exemplo, e penso que os temos, no entanto, o Homem não tem asas. Podemos ter em nós os genes das barbatanas e das folhas das árvores e dos olhos das águias e das corolas das flores e da produção das teias de aranha e dos dentes do tigre, e no entanto, não temos barbatanas, nem abanamos ao vento, verdes como esmeraldas, nem vemos o que as águias vêm, nem as abelhas pousam em nós em busca do pólen que não produzimos, nem andamos a fazer teias de aranha durante a noite nem roemos ossos como o tigre. Mas temos em nós todos esses genes. Tomemos os genes das asas, por exemplo. Michio Kaku escreve que não é assim tão simples, termos asas como os anjos e continuarmos humanos. Para termos asas, provavelmente perderíamos as pernas e a figura longilínea que hoje temos, e os nossos ossos teriam de ser ocos. Quem toma estas decisões? Quem decidiu que vivíamos melhor fora de água? Quem decidiu que tínhamos que envelhecer e morrer? Quem decidiu que a melhor forma de não haver desperdício era comermo-nos uns aos outros? Quem decidiu ter pernas e não ter asas? Ou são fruto do acaso, do ambiente, das circunstâncias?
E o que aconteceria, se o Homem se tornasse Imortal? O que aconteceria às crianças? Deixaria de haver crianças? Quanto tempo aguentaria uma pessoa viva? O que faria com a sua imortalidade?
Woody Allen diria que não se importa. Ele diz que não quer sobreviver nas suas obras, que apenas quer sobreviver, ponto final. E o que aconteceria, se o Woody Allen vivesse para sempre? Estaríamos condenados a ver o mesmo tipo de filme para toda a eternidade, ou poderia o Woody Allen vir a fazer filmes como o Cinema Paradiso ou como Le Grand Bleu? Evoluiríamos? O que aconteceria aos nossos genes? Experimentariam as asas?
Claro que me dói, com graus diferentes de dor, quando morrem os meus ou quando morre uma poetisa como a Sophia de Mello Breyner.
Mas eu não quero a imortalidade. Não a minha. Prefiro ser uma chama, que arde e depois se apaga, uma estrela que acaba, o risco de um voo, a espuma de uma onda que nunca se repete. Eu não sou eu. Eu não sou um indivíduo. Eu não sou apenas um indivíduo, tal como as partículas não são apenas partícula, mas partícula e onda, ao mesmo tempo. Eu sou nós, sou parte de um tudo, sou a chama que não arde e as asas que não voam e a espuma que não rebenta na praia e os olhos da águia que não são. Sou a estrela que já implodiu e a chuva que já caiu e o vento que já soprou e a abelha que já morreu. Sou a terra e o mar e a árvore, sou a pedra na areia e também sou o pombo envenenado e o lince extinto e o dinossauro e a formiga e um diamante na rocha.
E voltarei a sê-lo um dia.
Prefiro a Eternidade à Imortalidade.

quinta-feira, 20 de setembro de 2001

Uma das minhas frases preferidas do livro Gone with the wind, de Margaret Mitchell:




She said we could give ourselves airs and get ourselves all rigged up and we were like race horses and we were just mules in horse harness and we didn't fool anybody. (na voz de Scarlett O'Hara)

domingo, 20 de setembro de 1992

Se fosses uma ave, eras coruja, eu, um albatroz.
Se fosses um mamífero, eras um urso pardo, eu, uma orca.
Se fosses uma pedra, eras sílex, eu, berilo.
Se fosses uma cidade, eras Séforis, eu, Atenas.
Se fosses um elementar, eras furacão, eu, nascente.
Se fosses um instrumento, eras uma maça, eu, uma ânfora.
Se fosses um sentimento, eras fúria, eu, serenidade.
Se fosses uma árvore, eras um carvalho, eu, um teixo.
Se fosses um mistério, eras mirra, eu, canela.
Se fosses um aroma, eras bergamota, eu, sândalo.
Se fosses um metal, eras titânio, eu, magnésio.
Se fosses uma paisagem, eras Mauna Loa, eu, o Atlântico.
Se fosses um pensamento, eras precipício, eu, vôo.
Se fosses dois, eras tu, eu, o outro.
Se fosses uma casa, eras uma torre de menagem, eu, uma ruína.
Se fosses um impulso, eras traição, eu, ternura.
Se fosses um filósofo, eras Sartre, eu, Platão.
Se fosses um amante, eras cruel, eu, doce.
Se fosses humano, eras homem, eu, mulher.

Então diz-me? O que poderia ligar-nos? Perguntou o Hidrogénio ao Oxigénio.

Respondeu a Estrela: perguntem ao Mar.

quarta-feira, 22 de agosto de 1990

Tombam as saudades
no vento que vem...

Trapos de luz em azul recortados,
Tenho os meus olhos cansados
de não ver o mar.



sexta-feira, 20 de novembro de 1987

Toda aquela prata, ali, espalhada no corpo da areia, toda aquela luz pelo corpo do mar fora e todo aquele azul por entre o vento. Todo aquele vento, ali, espalhado no corpo das dunas.
E era no meu corpo de areia que rebentava em espuma todo aquele mar. Era do meu corpo de vento que brotavam macias todas aquelas dunas, era o meu corpo de água que batia na areia, sôfrego.
E as mãos pesaram, tombaram ao longo dos corpos cansados, e a alma ficou leve, empurrou a areia no vento de encontro ao corpo das dunas. Foi quando todos os dias e anos pesaram, e soltaram-se, ali, espalhados sobre o corpo cansado e dorido da última praia deserta.
Na última praia as dunas inclinaram-se no vento, sorvendo o mar e o inverno, e eu deitei-me no chão de braços abertos, respirando aquele último verão que morria devagar, e sonhei, e senti e, pela primeira vez, amei.
Escrevi um nome na areia.
Faz-se tarde. Se não me encontrarem, procurem-me no vento.

Fotografia de Dale Durfee

quarta-feira, 14 de outubro de 1987


Sinto-me como esta estação que morre. É sempre assim em setembro. Mas este ano é particularmente dolorosa para mim, esta morte do verão. Ontem, sentada num banco de madeira no jardim que não é meu, olhava as folhas secas das árvores, que se soltarão com o primeiro sopro de vento, os limões ressequidos - o limoeiro também morreu, este ano - sentia aquele calor estúpido, aquela secura na alma, aquela angústia, aquela fúria de tudo parecer perdido, terminado. Quando a Maria telefonou, só lhe disse: Esta noite já não faço mais nada, vou dormir, se saio de casa ainda me cai uma árvore em cima, estou péssima. Não, também não gostei do último da Duras. Concordo que é patológico, por isso mesmo não gostei. Não estava em condições de o ler. Sentiste-te gozada? Talvez fosse essa a intenção dela. Ou talvez ela seja doente. Pouco depois, telefonou-me o Pedro. O sono não vinha. Estava eléctrica como aquela atmosfera doentia. Fomos beber umas cervejas e isso fez-me bem. O Pedro é tão normal, tão saudável. Tem planos, sonhos, futuro. Rimo-nos imenso. Rir faz bem. A noite, ali passada ao ar livre, no Rossio, no meio do povo, deixou de me parecer sufocante. As ruas estavam molhadas dos carros da limpeza, levantara-se uma humidade fresca do chão. Havia ainda imensos estrangeiros de férias com cara triste, desiludida. Tinham vindo atrás de um sonho e chegado à conclusão de que todas as cidades são cidades e são sujas e são barulhentas e, assim, nada melhor que a nossa cidade natal, que ao menos é nossa, é familiar, criamos-lhe um certo amor enraivecido, apesar de tudo. Conhecemos os cheiros, a sujeira, o barulho e já não nos chocam e até são de graça. São nossos, como talvez seja nossa a nossa alma. Não sei. Gostei de estar ali com o Pedro. Gostava que ele fosse meu amigo mas nestas idades já não se chega a conhecer ninguém. As crianças dormem, a partir dos vinte anos, às vezes mais cedo, às vezes mais tarde. Sobra nas pessoas aquele ar igual, a noite das almas, à noite todos os gatos são pardos. Furar os medos, abrir um pequeno buraco na desilusão, é quase impossível. Penso agora no Pedro, no perfil dele. Quem é a pessoa que está por detrás do seu sorriso? Como é que eu chego lá? Mais difícil ainda, como é que eu me descubro, me abro, me revelo? Porque não vem chuva da montanha para nos molharmos? E onde ficam todas essas lágrimas reveladoras que não são choradas? Às vezes, sou eu que não ouço. Escuto-me a mim mesma, às conversas dos bêbedos, ao barulho dos carros, aos silêncios da minha alma que se escapa para longe da rua iluminada, além das estrelas. Outras vezes, é ele que não ouve. Não sei onde está a alma dele, talvez mais perto da minha do que posso imaginar, também lá, longe dos telhados, atrás das estrelas. Bebemos a cerveja fresca e rimos dos turistas, conscientes de que também somos turistas na nossa própria cidade natal. Tudo é sempre terrivelmente desconhecido. Não é um abismo. É um silêncio por detrás do barulho, a verdade atrás das palavras, as almas encavalitadas na mesma lua, as mãos separadas, ouvimos palavras diferentes e nem nos lembramos das palavras faladas. Um homem forte, de tronco nú e barba escura, está debruçado a uma janela. Espreita a rua e não olha para nós. Tem um ar encalorado de insónia. Gostava de saber o que está por detrás do homem, como é o quarto. Não sei como é que sei que por detrás do homem está um quarto. Sei-o, muito simplesmente. Imagino um quarto pequeno, uma cama estreita encostada à parede, um armário do outro lado, de madeira velha, com um espelho, pouca luz, as paredes amarelas da pouca luz e da sujidade. Imagino que o homem não consegue dormir e nem tem saudades de nenhuma mulher. Está apenas ali, à janela, à espera que o barulho acabe. Não tem vontade de se misturar com os bêbedos ou com os turistas. O mais provável é que não pense em nada. Se eu lesse a alma dele atrás dos olhos que mal se vêem, escrevia um livro, parecido com isto que estou a escrever. Escrevia a história do homem à janela com o verão a morrer, escritor falhado, trabalha num escritório num prédio velho da baixa lisboeta. E está farto, farto, farto. As histórias são todas iguais. A Maria diz que as pessoas tão patológicas como as pessoas da Duras deviam suicidar-se. Só assim ela poderia perdoar à Duras aquela sensação de nojo que ela lhe deixou. Ela ficou assim enojada por ter lido o livro. As pessoas não deviam escrever livros que deixassem as outras com nojo. Mas nojo de quê? Só sei que também fiquei enojada. Enojada da dor. Há dores que são nojo, como a dor do luto, ou esta última dor das feridas que arrefecem, das cicatrizes a sararem mal, sem bálsamo algum, ao ar, com a infeção dentro como restos que apodrecem. O nojo é nosso. De alguma dor que sentimos, de algum monstro que existe dentro de nós, prestes a devorar-nos. Não me suicidei. Estou no controlo. Pelo menos à superfície, o mar foi encarcerado, poderosamente encarcerado e o que se passa lá no fundo, não quero saber, é cedo demais para saber, também não interessa. A opção é a vida, o melhor é olhar em frente ou para o lado. Ao lado estava o Pedro, bem-disposto, falávamos das peles que ligam e das peles que não ligam, de Curaçao e de Itaparica. Eu, só posso falar de mim, cada pessoa que fala, diga o que disser, fala sempre e apenas de si mesma, eu sentia a minha juventude a saltitar-me entre as mãos. Como pássaros. Estava contente com essa juventude mas, como qualquer jovem, não sabia bem como usá-la, o que fazer com ela. Já quase a destruíra uma e outra vez, agora olhava-a, desconfiada, enquanto ela pulava nas minhas mãos e me fazia cócegas atrás das orelhas. Como fazer para não a estragar, para não a partir aos pedaços? Em primeiro lugar, não a entregar a ninguém. Nem mesmo ao Pedro. Fiquei com medo das almas cegas. São profundamente estúpidas na sua cegueira e atiram aos pássaros, geralmente acertando, embora ao acaso. Eu sei, eu sei que o Pedro talvez possivelmente não tenha uma alma cega, mas posso apenas falar de mim mesma, porque uma pessoa consegue única e exclusivamente conhecer-se a si própria em absoluto mais ou menos. Sei uma coisa, que este pássaro agora é só meu. Claro que um pássaro partilhado noutro vento podia - e digo, poderia - ser qualquer coisa mais bela. Mas não arrisco um novo encontro naquele deserto onde vivem as almas cegas. Posso guardar este pássaro só para mim. Manter-me sempre afastada, distante. Rir dos atiradores ao acaso. Podes atirar, não chegas cá! Agora, os céus são altos e imensos, claro que me sinto perdida e só, mas longe, longe, e é bom estar longe quando o perto foi quase morte. Não disse por isso ao Pedro que a pele dele ligava com a minha, até ligava muito bem. Deixei ficar isso no ar, como outro pássaro a rir-se empoleirado num ramo distante de um gato espantado. Não vale a pena trepar. Eu fujo. Tenho asas e tu não. Foi a Mélita que primeiramente me falou na teoria amena e sensual das peles. Da humidade, do calor, da textura das peles. Talvez retractem a violência das paixões ou os sentimentos virginais de certos desencontros. E também há peles sem personalidade nenhuma, como a pele daqueles pseudo-gigolos atrás das árvores, olhando as estrangeiras velhas com um ar guloso de dólares, marcos e francos suíços. De repente, alheei-me daquilo tudo. Já não estava assim tanto calor. A cerveja estava fresca e eu sentia-me bem com aquele pássaro desconhecido e perigoso entre as mãos e a proximidade do pássaro do Pedro, que espreitava nos olhos dele, menos rebelde, fluindo com as palavras, como a música de Mozart tocada num velho caramanchão numa noite de luar, com rosas e um perfume doce a canteiros molhados. Cada alma é uma interrogação universal. Quando cheguei a casa, dormi bem. Tinha deixado a morte do verão atrás das costas, o pássaro era eu, agora, debaixo dos lençóis frescos, a dormir embalada na esperança da manhã fresca. Enquanto houver manhãs.

domingo, 20 de setembro de 1987


Flutuo para trás e para a frente na corrente, como uma folha arrancada da árvore-raíz. A foz e a luz aproximam-se e afastam-se consoante as luas e as marés, suspiro pelo mar limpo, é outono no meio do verão e perdi-me, o mar não chega, não chego ao mar. Recordo-me do espaço e tempo mais dolorosos desta vida que não quis ou será que quis? Dezassete anos. Estava só. Antes, durante e depois da minha morte, estava só. Sei o que senti naquela noite. Foi a noite em que deixei de confiar. Não estava só, simplesmente não estava ninguém ali. O mais estranho para mim agora é que nunca ninguém me fez pergunta alguma. Nunca ninguém perguntou: porque fizeste isso? Foi como se nunca tivesse acontecido. Depois as memórias apagam-se e regressaram as outras, as não-memórias, preencheram o vazio que ficou. Preferia não as ter. No meio do rio, olho para as margens, do lado direito a Cidade, do esquerdo a Floresta. Flutuo com a espada na mão, sempre a espada, aquela com que vim ao mundo, não posso largá-la. Quando descobri que era diferente, era tarde demais para falar no assunto fosse a quem fosse. Quando era muito criança, limitava-me a berrar a plenos pulmões até que certas pessoas saíssem da casa onde cresci. Mais tarde, fugia, fugia para os ramos das árvores, onde ficava escondida até que as pessoas saíssem. Depois aprendi a controlar a... visão. Tornei-me sábia e silenciosa. Passei a invocar nos outros apenas respeito, em alguns inveja, um pouco de medo, talvez. Estava só, nunca esteve ninguém neste sítio onde estou ou em nenhum dos sítios onde estive anteriormente. Como agora, na foz deste rio, estou só. Às vezes é tão grande o peso da espada que sinto que vou afundar-me nas águas turvas. Outras vezes, é a espada que me mantém à superfície. O seu peso varia. Olho para a Cidade, tantas pessoas de um lado para o outro, quase nunca olham para o Rio, pequenas, apressadas, silenciosas, umas alegres, principalmente as mais jovens, crianças, estudantes, outras tristes, algumas tão tristes que dói olhar para elas. Quase que fico feliz por estar aqui e não estar no lugar delas. Evito olhar para a Floresta. A Floresta, vejo-me a subir a margem esquerda do rio e a desistir de sair a foz, a desistir do mar. Não olho para a Floresta, ainda. No entanto, já não acredito, simplesmente já não acredito que algum dia chegue ao mar ou que o mar venha até mim, buscar-me ao rio, onde flutuo para a frente e para trás, eternamente até dizer basta, basta de luas, de marés, de esperas infinitas. O mar não vem. Porque estou aqui?

Aquela ave estava rubra de (a)mar.
As suas asas batiam contra um rio de pedra, o corpo tremia, os olhos fechados.
Havia uma luz matinal, clara, por entre a chuva,
havia um canto no ar, doce ou azul, ou amargo.
Do vôo dos navios, sobrara um sulco profundo na pedra.
Nem vento, nem mastro, nem vela, apenas fundo.
Aquela ave, esta manhã, ardeu contra a pedra sulcada.
Dela, apenas sobraram cinzas ou a luz de um canto azul, ou doce, ou amargo,
como gritos ou rios de março,
pelo chão.

folhas soltas

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