as almas, os pássaros

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terça-feira, 20 de outubro de 2015

Foi num Outubro quente que ouvi isto a primeira vez, da boca da minha avó Jorseth. No Inverno seguinte, houve temporais. Lembro-me disso e lembro-me também de que não havia melhor boletim meteorológico do que o do meu avô Manuel. Os antigos não eram alienados, como os de hoje. Ditados populares, crendices ou um conhecimento profundo da natureza, o que é certo é que quando falavam, as coisas aconteciam, assim como se - tal como nos livros de fantasia de hoje - eles conhecessem o nome verdadeiro das coisas. Este é o segundo Outubro quente de que me lembro e eles, os avós, já não estão comigo. Lembro-me deles e das suas palavras e da casa sempre cheia de pessoas e dos poemas e dos contos lidos em voz alta, do cheiro do arroz doce e do leite creme, o meu avô a apanhar romãs para a minha avó. Não sei se este Outubro também traz o diabo no ventre, mas agradeço ao Verão ter esperado pelas minhas férias. Assim, posso ainda andar descalça pela casa e pelo jardim, a apanhar as últimas amêndoas e romãs, enquanto espero pelos meus novos óculos para poder voltar a ler. Pela primeira vez desde há três anos e meio, sinto uma grande tranquilidade nestas férias, quase como se fossem férias grandes. Digo todos os dias a mim mesma que não mereço o que a vida me tem dado. Porquê a mim? E se não é a vida que me dá tudo isto, a minha casa, a minha família, o meu novo trabalho, as pessoas que me rodeiam e se preocupam comigo, como e porquê? A minha avó teria uma resposta simples: nasceste no segundo dia de lua nova, vais ter sempre sorte na vida.

terça-feira, 21 de julho de 2015

Não prometo nada.

quinta-feira, 8 de novembro de 2012

Na minha família os animais domésticos não eram cães nem gatos nem pássaros; na minha família os animais domésticos eram pobres. Cada uma das minhas tias tinha o seu pobre, pessoal e intransmissível, que vinha a casa dos meus avós uma vez por semana buscar, com um sorriso agradecido, a ração de roupa e comida.

Os pobres, para além de serem obviamente pobres (de preferência descalços, para poderem ser calçados pelos donos; de preferência rotos, para poderem vestir camisas velhas que se salvavam, desse modo, de um destino natural de esfregões; de preferência doentes a fim de receberem uma embalagem de aspirina), deviam possuir outras características imprescindíveis: irem à missa, baptizarem os filhos, não andarem bêbedos, e sobretudo, manterem-se orgulhosamente fiéis a quem pertenciam. Parece que ainda estou a ver um homem de sumptuosos farrapos, parecido com o Tolstoi até na barba, responder, ofendido e soberbo, a uma prima distraída que insistia em oferecer-lhe uma camisola que nenhum de nós queria:

- Eu não sou o seu pobre; eu sou o pobre da minha Teresinha.

O plural de pobre não era «pobres». O plural de pobre era «esta gente». No Natal e na Páscoa as tias reuniam-se em bando, armadas de fatias de bolo-rei, saquinhos de amêndoas e outras delícias equivalentes, e deslocavam-se piedosamente ao sítio onde os seus animais domésticos habitavam, isto é, uma bairro de casas de madeira da periferia de Benfica, nas Pedralvas e junto à Estrada Militar, a fim de distribuírem, numa pompa de reis magos, peúgas de lã, cuecas, sandálias que não serviam a ninguém, pagelas de Nossa Senhora de Fátima e outras maravilhas de igual calibre. Os pobres surgiam das suas barracas, alvoraçados e gratos, e as minhas tias preveniam-me logo, enxotando-os com as costas da mão:

- Não se chegue muito que esta gente tem piolhos.

Nessas alturas, e só nessas alturas, era permitido oferecer aos pobres, presente sempre perigoso por correr o risco de ser gasto

(- Esta gente, coitada, não tem noção do dinheiro)

de forma de deletéria e irresponsável. O pobre da minha Carlota, por exemplo, foi proibido de entrar na casa dos meus avós porque, quando ela lhe meteu dez tostões na palma recomendando, maternal, preocupada com a saúde do seu animal doméstico

- Agora veja lá, não gaste tudo em vinho

o atrevido lhe respondeu, malcriadíssimo:

- Não, minha senhora, vou comprar um Alfa-Romeu

Os filhos dos pobres definiam-se por não irem à escola, serem magrinhos e morrerem muito. Ao perguntar as razões destas características insólitas foi-me dito com um encolher de ombros

- O que é que o menino quer, esta gente é assim

e eu entendi que ser pobre, mais do que um destino, era uma espécie de vocação, como ter jeito para jogar bridge ou para tocar piano.

Ao amor dos pobres presidiam duas criaturas do oratório da minha avó, uma em barro e outra em fotografia, que eram o padre Cruz e a Sãozinha, as quais dirigiam a caridade sob um crucifixo de mogno. O padre Cruz era um sujeito chupado, de batina, e a Sãozinha uma jovem cheia de medalhas, com um sorriso alcoviteiro de actriz de cinema das pastilhas elásticas, que me informaram ter oferecido exemplarmente a vida a Deus em troca da saúde dos pais. A actriz bateu a bota, o pai ficou óptimo e, a partir da altura em que revelaram este milagre, tremia de pânico que a minha mãe, espirrando, me ordenasse

- Ora ofereça lá a vida que estou farta de me assoar

e eu fosse direitinho para o cemitério a fim de ela não ter de beber chás de limão.

Na minha ideia o padre Cruz e a Saõzinha eram casados, tanto mais que num boletim que a minha família assinava, chamado «Almanaque da Sãozinha», se narravam, em comunhão de bens, os milagres de ambos que consistiam geralmente em curas de paralíticos e vigésimos premiados, milagres inacreditavelmente acompanhados de odores dulcíssimos a incenso.

Tanto pobre, tanta Sãozinha e tanto cheiro irritavam-me. E creio que foi por essa época que principiei a olhar, com afecto crescente, uma gravura poeirenta atirada para o sótão que mostrava uma jubilosa multidão de pobres em torno da guilhotina onde cortavam a cabeça aos reis.

António Lobo Antunes

 


quarta-feira, 10 de outubro de 2012

quinta-feira, 20 de setembro de 2012



Every wolf`s and lion`s howl

Raises from hell a human soul.

[William Blake]

Os índios americanos acreditam que todos nós temos um animal guardião e que este nos é revelado em sonhos. Talvez esta crença tenha um significado mais profundo. Sonhei com um lobo preto de olhos dourados. Estava com os dentes todos arreganhados, a rosnar baixinho, e pregou-me um enorme susto. Primeiro, quis fugir, mas algo me fez voltar a olhar para ele outra vez. Estava a flutuar no ar, à minha frente, e pousara a cabeça entre as patas dianteiras. Abanou ligeiramente a cauda e desapareceu.

A verdade é que os lobos estão à beira da extinção total, entre tantos outros seres. São dos poucos animais monógamos. São inteligentes, profundamente leais aos membros do grupo, meigos e brincalhões. Talvez a próxima geração possa vê-los apenas no YouTube. 
 
 
Fotografia de Jess Lee
Se quiser ajudar a preservar o Lobo Ibérico: Grupo Lobo


Sou sem dúvida alguma uma criatura do Verão e a minha hora preferida é o crepúsculo. Gosto de sentar-me no jardim e ver a luz dançar por entre as copas das árvores até desaparecer. Os pássaros regressam aos ninhos. Hoje uma toutinegra sentiu curiosidade a meu respeito e pensei no dia em que pousares nos meus ombros como as tuas antepassadas pousaram nos ombros da minha avó, nesse dia saberei que posso morrer em paz. São tão pequeninas, as toutinegras. A toutinegra e eu olhámos uma para a outra durante o cair da luz. Ambas queríamos conhecer-nos melhor. É sempre assim que o amor começa.


Lembram-se daquele sonho, em que caímos, e morremos, e depois acordamos?





A alma é em sua própria natureza, perfeita pureza, perfeita calma, perfeito silêncio; e tal como uma fonte nasce das próprias veias da terra, assim é a alma nutrida do sangue de Deus, o êxtase das coisas. 


Esta alma não pode ser ferida, não pode ser desfigurada, não pode ser corrompida. No entanto, todas as coisas somadas a ela, por um tempo a perturbam; e isso é tristeza. 

Alisteir Crowley
As relações entre os seres vivos, que querem e precisam de estar juntos, são como as árvores. Nascem como semente que cai do universo no presente tempo e momento - quem sabe se trazida no bico de um pássaro ou numa refrega do vento - e a semente cai na terra. Se a terra for boa, ela germina, se for má, morre. A terra boa é a confiança que a semente pode depositar na terra. A terra tem de alimentar a semente com água e nutrientes e criar um refúgio. Da minúscula semente nascem raízes que se estendem pela terra à procura da necessária confiança. Se esta existe, a semente começa a alimentar-se e a crescer, feliz em ventre, com as raízes a engrossarem e a abraçarem a terra e a terra a abraçar as raízes. E a confiança é pura. E um dia aperta a semente para que esta germine e com as raízes bem enterradas dentro da terra, do ventre, do alimento e água da confiança, a relação sai para a luz do sol e para a chuva e para o vento, mas não tem medo nem que o sol queime, nem que a água afogue, nem que o vento quebre ou arranque, pois as raízes estão solidamente implantadas na terra. E então a relação cresce e consoante as circunstâncias do clima, sol, chuva, vento, humidade e outras criaturas grandes e minúsculas em redor, pode crescer até ser uma árvore gigantesca, ou uma pequena árvore dobrada, mas é sempre sólida, enquanto a terra for boa e souber guardar a água e souber preservar os nutrientes. 

Por vezes, a mínima coisa torna a terra má. E qualquer que seja a fase - semente, raízes ou árvore - a relação morre.

Quem conhece as árvores, e estuda alcateias de lobos ou conhece a vida difícil dos pinguins ou dos albatrozes, conhece bem esta questão de terra.

A minha amendoeira... posso confiar nela e entre mim e ela existe amor. Pois escrevi que partiríamos com as flores e hoje quando cheguei a casa tinha florido para mim. São as primeiras flores do ano. Pode-se confiar mais numa amendoeira do que num ser humano. 
Penso que deve existir para cada um
uma só palavra que a inspiração dos povos deixasse
virgem de sentido e que,
vinda de um ponto fogoso da treva, batesse
como um raio
nos telhados de uma vida, e o céu
com águas e astros
caísse sobre esse rosto dormente, essa fechada
exaltação.
Que palavra seria, ignoro. O nome talvez
de um instrumento antigo, um nome ligado
à morte – veneno, punhal, rio
bárbaro onde
os afogados aparecem cegamente abraçados a enormes
luas impassíveis. Um abstracto nome de mulher ou pássaro.
Quem sabe? – Espelho, Cotovia, ou a desconhecida
palavra Amor.

Herberto Helder
O Reino dos Céus não virá por esperares vê-lo. Nem ninguém poderá dizer, ei-lo aqui, ou ei-lo ali, porque o Reino dos Céus está dentro de ti. […] Virão os dias, onde desejarás ver um Dia do Filho do Homem, mas não verás. 
E dir-te-ão, vê aqui, ou vê além. Não os ouças nem os sigas. 
Pois como o relâmpago, que liga o Céu e a Terra, assim será o Filho do Homem no seu Dia. Mas antes, terás de experimentar muito e ser a negação da tua geração. 

Yeshua, segundo Loukás

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