as almas, os pássaros

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quarta-feira, 20 de setembro de 2023



O ramo da cerejeira em flor
concede o seu perfume
a quem o quebrou

Chiyo-ni, poetisa japonesa, também conhecida como Kaga no Chiyo e Matto no Chiyo, é provavelmente a mais célebre poetisa de haiku (via Infopedia)

 



lamúria
nome feminino
lamentação interminável e importuna; choradeira; queixume
(Do lat. Lemurìa, «festas em honra dos lémures») – espíritos, fantasmas
fonte: Infopedia

Na verdade a Lemurìa era um dos Festivais dos Mortos dos Romanos, mas estes mortos, os lémures, eram muito aborrecidos, pois se não fossem pranteados, tornavam-se incómodos. Creio que estes mortos eram os espíritos dos lamuriadores.

Há os que sofrem e calam e se tornam mais fortes, há os que sofrem e lutam e ultrapassam a dor, há os que sofrem e passam a vida a lamuriar-se. São os lamuriadores. Esses vivem em constante sofrimento e comiseração por si próprios. Os lamuriadores têm comportamentos facilmente identificáveis. Para começar, gostam de confraternizar com outros lamuriadores. E quando os lamuriadores se juntam, é sempre aos pares, até porque não há muitos. Dois lamuriadores só se lamuriam se não houver nenhum não-lamuriador entre eles, pois as suas lamúrias só não são ridículas para eles próprios e correm o risco, caso um não-lamuriador interfira nas suas lamúrias com um pouco de bom-senso, de serem deslamuriados definitivamente. Isso seria um enorme inconveniente, pois os lamuriadores vivem unica e exclusivamente para as suas lamúrias, não saberiam viver sem elas e correriam até perigo de vida, se fossem subitamente deslamuriados. Os lamuriadores aparentam ser pessoas normais até se encontrarem com outro lamuriador. Aí começam as lamúrias. Lamuriam tudo, as escolhas que fizeram na vida e de que tanto se arrependem, os empregos que têm e que os reprimem, a cidade onde vivem, que devia ser outra, os vizinhos impossíveis de aturar, os cônjuges que não os amam nem compreendem, os filhos que não queriam ter e tiveram, as virtudes escondidas que ninguém vê e que o "mundo", tal como é, não deixa que se desenvolvam, os pais que os não entendiam, o tempo que não têm... nós não podemos escutar estas conversas, mas podemos adivinhá-las, porque quando dois lamuriadores se lamuriam, as expressões deles mudam, trocam gestos e sussurros secretos e saem dessas conversas mais lamurientos do que nunca, prontos a matar quem quer que se aproxime deles com um sorriso no rosto. Odeiam sorrisos e não têm nenhum sentido de humor. Perdem todas as oportunidades de alegria e felicidade que o universo lhes oferece, só para poderem lamuriar-se disso mais tarde. Os únicos momentos de satisfação que sentem é durante as suas lamúrias com outro compreensivo lamuriador.

É por isso que, quando morrem, obrigam outros a lamuriar-se por eles. Já não podem lamuriar-se eles próprios. Vão para o inferno dos lamuriadores.


 

Não se perdeu nenhuma coisa em mim.
Continuam as noites e os poentes
Que escorreram na casa e no jardim,
Continuam as vozes diferentes
Que intactas no meu ser estão suspensas.
Trago o terror e trago a claridade,
E através de todas as presenças
Caminho para a única unidade.


Sophia de Mello Breyner Andresen

segunda-feira, 18 de setembro de 2023

terça-feira, 28 de fevereiro de 2023

... e da sua chegada a um outro lugar.

quinta-feira, 6 de setembro de 2018

a mim bastava-me um raio de sol, a sombra das árvores do meu jardim nos dias de verão, uma brisa morna, o perfume das flores da laranjeira, tocar com a ponta do meu nariz nos narizes húmidos e frescos dos meus cães, uma cerveja fresca no final do dia, um bom livro nas mãos deitada na cama de rede no telheiro e a minha alma rejubilava como se em despertar de páscoa. uma música suave ou intensa, o cheiro e ronronar do mar, a areia quente no corpo, a espuma do mar. bebedeiras e bebedeiras de luz. bebedeiras de alegria. pequenas e profundas e enormes alegrias.
tu roubaste-me tudo isso e estou cansada de dizer a mim mesma que fui eu. não fui eu. foste tu. ninguém faria isso a si próprio. tu pegaste-me como quem pega num stradivarius e rebentaste-me as cordas uma a uma e não contente com isso partiste-me o braço e roeste a madeira com os teus dentes famintos. deixaste-me tão quebrada que a música do universo não voltará a vibrar no meu corpo. quebraste a alma, afugentaste-a.
tudo o que eu quero é a minha alma de volta. de ti, só quero a maior distância possível.

domingo, 6 de dezembro de 2015

Outro. O outro?

I'm the queen of my own land, 
Facing tempests of dust, I'll fight until the end.
Creatures of my dreams raise up and dance with me! 
Now and forever I am queen.

terça-feira, 20 de outubro de 2015

Foi num Outubro quente que ouvi isto a primeira vez, da boca da minha avó Jorseth. No Inverno seguinte, houve temporais. Lembro-me disso e lembro-me também de que não havia melhor boletim meteorológico do que o do meu avô Manuel. Os antigos não eram alienados, como os de hoje. Ditados populares, crendices ou um conhecimento profundo da natureza, o que é certo é que quando falavam, as coisas aconteciam, assim como se - tal como nos livros de fantasia de hoje - eles conhecessem o nome verdadeiro das coisas. Este é o segundo Outubro quente de que me lembro e eles, os avós, já não estão comigo. Lembro-me deles e das suas palavras e da casa sempre cheia de pessoas e dos poemas e dos contos lidos em voz alta, do cheiro do arroz doce e do leite creme, o meu avô a apanhar romãs para a minha avó. Não sei se este Outubro também traz o diabo no ventre, mas agradeço ao Verão ter esperado pelas minhas férias. Assim, posso ainda andar descalça pela casa e pelo jardim, a apanhar as últimas amêndoas e romãs, enquanto espero pelos meus novos óculos para poder voltar a ler. Pela primeira vez desde há três anos e meio, sinto uma grande tranquilidade nestas férias, quase como se fossem férias grandes. Digo todos os dias a mim mesma que não mereço o que a vida me tem dado. Porquê a mim? E se não é a vida que me dá tudo isto, a minha casa, a minha família, o meu novo trabalho, as pessoas que me rodeiam e se preocupam comigo, como e porquê? A minha avó teria uma resposta simples: nasceste no segundo dia de lua nova, vais ter sempre sorte na vida.

terça-feira, 21 de julho de 2015

Não prometo nada.

quinta-feira, 8 de novembro de 2012

Na minha família os animais domésticos não eram cães nem gatos nem pássaros; na minha família os animais domésticos eram pobres. Cada uma das minhas tias tinha o seu pobre, pessoal e intransmissível, que vinha a casa dos meus avós uma vez por semana buscar, com um sorriso agradecido, a ração de roupa e comida.

Os pobres, para além de serem obviamente pobres (de preferência descalços, para poderem ser calçados pelos donos; de preferência rotos, para poderem vestir camisas velhas que se salvavam, desse modo, de um destino natural de esfregões; de preferência doentes a fim de receberem uma embalagem de aspirina), deviam possuir outras características imprescindíveis: irem à missa, baptizarem os filhos, não andarem bêbedos, e sobretudo, manterem-se orgulhosamente fiéis a quem pertenciam. Parece que ainda estou a ver um homem de sumptuosos farrapos, parecido com o Tolstoi até na barba, responder, ofendido e soberbo, a uma prima distraída que insistia em oferecer-lhe uma camisola que nenhum de nós queria:

- Eu não sou o seu pobre; eu sou o pobre da minha Teresinha.

O plural de pobre não era «pobres». O plural de pobre era «esta gente». No Natal e na Páscoa as tias reuniam-se em bando, armadas de fatias de bolo-rei, saquinhos de amêndoas e outras delícias equivalentes, e deslocavam-se piedosamente ao sítio onde os seus animais domésticos habitavam, isto é, uma bairro de casas de madeira da periferia de Benfica, nas Pedralvas e junto à Estrada Militar, a fim de distribuírem, numa pompa de reis magos, peúgas de lã, cuecas, sandálias que não serviam a ninguém, pagelas de Nossa Senhora de Fátima e outras maravilhas de igual calibre. Os pobres surgiam das suas barracas, alvoraçados e gratos, e as minhas tias preveniam-me logo, enxotando-os com as costas da mão:

- Não se chegue muito que esta gente tem piolhos.

Nessas alturas, e só nessas alturas, era permitido oferecer aos pobres, presente sempre perigoso por correr o risco de ser gasto

(- Esta gente, coitada, não tem noção do dinheiro)

de forma de deletéria e irresponsável. O pobre da minha Carlota, por exemplo, foi proibido de entrar na casa dos meus avós porque, quando ela lhe meteu dez tostões na palma recomendando, maternal, preocupada com a saúde do seu animal doméstico

- Agora veja lá, não gaste tudo em vinho

o atrevido lhe respondeu, malcriadíssimo:

- Não, minha senhora, vou comprar um Alfa-Romeu

Os filhos dos pobres definiam-se por não irem à escola, serem magrinhos e morrerem muito. Ao perguntar as razões destas características insólitas foi-me dito com um encolher de ombros

- O que é que o menino quer, esta gente é assim

e eu entendi que ser pobre, mais do que um destino, era uma espécie de vocação, como ter jeito para jogar bridge ou para tocar piano.

Ao amor dos pobres presidiam duas criaturas do oratório da minha avó, uma em barro e outra em fotografia, que eram o padre Cruz e a Sãozinha, as quais dirigiam a caridade sob um crucifixo de mogno. O padre Cruz era um sujeito chupado, de batina, e a Sãozinha uma jovem cheia de medalhas, com um sorriso alcoviteiro de actriz de cinema das pastilhas elásticas, que me informaram ter oferecido exemplarmente a vida a Deus em troca da saúde dos pais. A actriz bateu a bota, o pai ficou óptimo e, a partir da altura em que revelaram este milagre, tremia de pânico que a minha mãe, espirrando, me ordenasse

- Ora ofereça lá a vida que estou farta de me assoar

e eu fosse direitinho para o cemitério a fim de ela não ter de beber chás de limão.

Na minha ideia o padre Cruz e a Saõzinha eram casados, tanto mais que num boletim que a minha família assinava, chamado «Almanaque da Sãozinha», se narravam, em comunhão de bens, os milagres de ambos que consistiam geralmente em curas de paralíticos e vigésimos premiados, milagres inacreditavelmente acompanhados de odores dulcíssimos a incenso.

Tanto pobre, tanta Sãozinha e tanto cheiro irritavam-me. E creio que foi por essa época que principiei a olhar, com afecto crescente, uma gravura poeirenta atirada para o sótão que mostrava uma jubilosa multidão de pobres em torno da guilhotina onde cortavam a cabeça aos reis.

António Lobo Antunes

 


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