segunda-feira, 1 de dezembro de 2008


No dia 17 de Agosto de 1914 foi publicada a edição nº 17 de uma revista entitulada La Science et La Vie. A revista pertencia ao meu avô, que à data tinha 10 anos, a caminho dos 11. Assim, deve ter sido comprada pelo meu bisavô. Encontrei-a outro dia, por acaso, ainda em excelentes condições. As primeiras oito páginas estão todas cheias de publicidade a produtos e serviços inovadores do início do século XX, tais como máquinas de escrever da L.C. Smith & Bros., telégrafos sem fios da G. Péricaud, propulsores a petróleo para barcos da MM. G. Trouche, um dos primeiros aromatizadores da história, que é descrito como um “aparelho de repetição para a vaporização de líquidos e essências necessários para a limpeza das habitações, para a purificação do ar, desodorização, desinfecção e prevenção das epidemias”, da firma Swiss Hygienical, uma máquina rotativa para gelo e frio, chamada Frigogène, placas fotográficas Guilleminot, oferta de serviços de arquitectura e decoração de um gabinete que se chamava Le Bien-être Chez Soi, binóculos Stelar da Georges Hinstin e da Zeiss, fornos de cozinha e radiadores da C. Ducharme, um anúncio da Escola Bréguet-Electricidade e Mecânica, máquinas de costura da Singer, flutuadores Papillon (uma espécie de braçadeira para ajudar adultos a nadar, só que era colocada… no traseiro), um cachimbo aprovado pela Société d’Hygiène de France… mas esta publicidade tem algo de bastante diferente. Em todos os pés de página, está escrito, numa letra de tamanho normal (permitam-me que traduza): “Todas as afirmações contidas nos nossos anúncios são inteiramente garantidas pela La Science et la Vie.” Algo que seria impensável hoje. Já imaginaram os processos e falências? Na página 10 é apresentado o sumário:

O eclipse do sol de 21 de Agosto de 1914
O que é necessário gastar para matar um homem na guerra
De que forma a água modelou os peixes
O fabrico de diamantes em forno eléctrico
A lontra do Hudson, demasiado prolífica, ameaça invadir a Boémia
Prepare-se para os acidentes
A crise do Cacutchouc e o futuro do Congo francês
Alguns aspectos do circuito de Lyon
A marcha é o melhor dos desportos
E por aí fora. O papel macio envelhecido da revista encantava-me. Os anúncios eram deliciosos. Diverti-me a ler as críticas de um tal Dr. Breuillard aos saltos altos que as senhoras usavam e que, segundo ele, “deformam e martirizam o pé” e impediam as mulheres de praticar o salutar exercício da marcha. No final da revista, nova preocupação com as mulheres, mais anúncios com afirmações garantidas pela revista, mas desta vez com produtos de interesse exclusivamente feminino, tais como o Creme Simon, único para amaciar e embranquecer a pele, o sabão de beleza Erasmic que, além da garantia da revista, vem ainda com o testemunho da Mlle. Colonna Romano, do Teatro Francês, que afirma que a pele fica mais fina e aveludada, uma máquina de lavar roupa a vapor Titania… um dos últimos capítulos eram invenções dos leitores: um disco de celulóide, que se coloca no auscultador do telefone e que amplifica o som; uma engenhoca para apagar automaticamente a vela, quando ela estiver parcialmente consumida; uma rede para se poderem lavar as janelas em segurança… Continuo a folhear a revista, cheiro-a (aquele cheiro a cera de papel antigo), imagino o meu avô com 10 anos a lê-la, com aqueles olhos verde-água que ele tinha, o espírito curioso e irrequieto de auto-didacta, volto ao sumário e desta vez, a segunda história chama-me a atenção: Ce qu’il faut dépenser pour tuer un homme à la guerre. Leio de novo: O que é necessário gastar para matar um homem na guerra. Estranho o título. Seria tão politicamente incorrecto hoje… Vou para a página 158 e vejo que foi escrito pelo General Percin, antigo membro do Conselho Superior de Guerra. O artigo destaca-se, tanto pelo título, como pelo tema. O que tem a guerra a ver com ciência e vida? Bem, tem, com ciência e vida, ou como acabar com a vida de outro, neste caso, e quanto isso custa. É um artigo curto, de página e meia.

“Li, num jornal americano, que, para matar um homem na guerra moderna, é necessário gastar mais ou menos 75.000 francos. Esta cifra pareceu-me exagerada, por isso procurei verificá-la. As minhas pesquisas mostraram-me que o jornal americano estava aquém da verdade. A soma a gastar para matar um homem na guerra é com efeito o quociente de uma divisão, onde o dividendo é o que custa a guerra a um dos beligerantes e onde o divisor é o número de homens mortos do outro lado. Ora, a França gastou em 1870-1871 dois milhões de francos, mais ou menos, em custos de guerra propriamente ditos. Gastou mais um milhão para recuperar o seu material e para prestar socorro às vítimas da guerra, despesas que é apenas justo se incorporem no dividendo com os custos da guerra propriamente ditos. A França gastou ainda cinco milhões em indemnizações de guerra e mais dois milhões em juros deste valor, para pagamento e juros de dívidas, perdas de impostos, contribuições impostas pelo inimigo e manutenção do exército de ocupação da Alemanha. Mas esta terceira categoria de despesas é pouco provável que se repita em todas as guerras, por isso não entrará no dividendo. Pela mesma ordem de ideias, exponho a seguir as despesas relativas a outras guerras: guerra entre a Rússia e a Turquia (1877-1878), turcos: dois milhões; guerra entre a Rússia e o Japão (1905), russos: seis milhões. Por outro lado, o número de homens mortos ou que morreram dos ferimentos foram os seguintes: guerra entre a França e a Alemanha, alemães 28.600; guerra entre a Rússia e a Turquia, russos 16.600; guerra entre a Rússia e o Japão, japoneses 58.600. Donde resulta, que o preço de matar um homem foi: em 1870-1871, 105.000 francos; em 1877-1878, 75.000 francos; em 1905, 102.000 francos. Números iguais ou superiores aos comunicados pelo jornal americano. Quando iniciei esta pesquisa, esperava que os resultados fossem crescentes, entre 1870 e 1905. Com efeito, por um lado, os engenhos de guerra foram-se aperfeiçoando e o seu custo aumentou. Por outro lado, os progressos na arte de matar têm vindo a ser sempre ultrapassados pelos progressos na arte de defesa, de modo que a proporção de homens mortos ou feridos num hora de combate sem dúvida que diminuiu. Esta proporção era de 6%, sob Frederico O Grande, 3% sob Napoleão, 2% em 1870, 0,5% em Mandehouric. Mas, em 1870, não houve senão uma dezena de grandes batalhas. Os exércitos imperiais combateram pouco entre Sedan e Coulmiers. A luta foi retomada em Dezembro, mas com muito menos empenho que no início. Durante estas acalmias, os homens gastavam, mas não matavam. Em Mandehouric, pelo contrário, batalhavam quase todos os dias. As batalhas duraram 15 dias em Moukden, 12 dias em Cha-Ho, 8 dias em Liao-Yang. Este aumento da duração das batalhas compensou a diminuição do número de homens mortos ou feridos numa hora de combate. Por isso é que o preço de custo de matar um homem não foi mais elevado em 1905 do que em 1870. É por isso impossível prever com exactidão o que será necessário gastar para matar um homem na próxima guerra. A soma depende da fisionomia da luta. Se houver batalhas quase todos os dias, como em Mandehouric ou nos Balcãs, o preço de custo de um homem morto será próximo do indicado pelo jornal americano. Se as batalhas forem como em 1870, com intervalos mais raros, esse preço poderá aumentar numa proporção apreciável. E certamente que não diminuirá. Aquilo que mais matará e que reduzirá realmente os efectivos na guerra, não será nem o fuzil nem o canhão, será a fadiga, o tifo ou a cólera. Em 1870, entraram nos hospitais 380.000 alemães os quais, mesmo que não tenham morrido de doenças, não deixaram de ficar indisponíveis durante um certo tempo. A guerra da Crimeia custou aos exércitos aliados quase quatro vezes mais mortos pela doença do que pelo fogo das armas. Esta proporção foi de 3 para 1 com os russos em 1877-1878; não passou de 1 para 2 entre os japoneses, graças à sua excelente higiene durante a guerra de Mandehouric. Por isso conto mais que, na próxima guerra, se façam progressos na higiene e na arte de evitar as mortes sob fogo, do que com progressos na área da balística e meios de destruição.”

Será que o General ainda estava vivo, quanto as bombas caíram sobre Hiroxima e Nagasaki? E surpreende-me que não tenha somado ao dividendo os homens mortos do seu lado. Mas o mais surpreendente é o texto em si. A franqueza, crueza e mesmo brutalidade do texto, das preocupações expressas no texto. Leva-me a interrogar-me sobre quem seriam os leitores da revista. A revista custava 1 franco francês. Era, em primeiro lugar, para leitores e haveria muitos, em 1914? A Revolução Francesa não tinha em século. Logo, era para uma elite. Velha? Nova? Um misto de ambas? Este texto seria impensável hoje. Porquê? Porque as pessoas lêem. Será que lêem? Bem, alguns lêem, os suficientes, ainda, para que ainda seja impensável um texto destes nos nossos dias. Era também uma chamada de atenção aos curiosos da ciência e tecnologia emergentes, daí aparecer numa revista científica. Procura subtil de novos talentos? Não tão subtil assim. A guerra de 1914-1918 tem início oficial no dia 1 de Agosto, com a Alemanha a declarar guerra à Rússia e esta revista foi publicada a 17 do mesmo mês. No dia 3 de Agosto a Alemanha declara guerra à França e invade a Bélgica. No final, esta guerra provocou 10 milhões de mortos e 20 milhões de feridos. Foi utilizado armamento químico pela primeira vez. Só do lado da França morreram 1,4 milhões de soldados e 3 milhões de feridos. O que diria destes números o General Percin? Bem, dele não reza a história. Ou morreu ou foi dispensado.

O que é que mudou, de 1914 para hoje? Para além do General Percin se ter enganado redondamente em relação aos meios de destruição, só vejo uma outra diferença significativa: os leitores. Isto deveria fazer-nos reflectir a todos. E talvez, em nome de todos os mortos franceses, turcos ou russos que não entraram em cima nas contas do General, devêssemos, de uma vez por todas, acabar com todas as guerras.


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