terça-feira, 20 de setembro de 2005
por
Sofia
on
terça-feira, setembro 20, 2005
publicado em
Curia
,
pensamentos
,
Sofia Raposo de Almeida
|
sem comentários
por
Sofia
on
terça-feira, setembro 20, 2005
Hoje em dia a Humanidade começa a colocar-se a questão se deveremos ou não viver para sempre. Isto porque a imortalidade começa a parecer possível, tendo em conta os mais recentes avanços da ciência. Os geneticistas procuram freneticamente o gene do envelhecimento, o gene ou grupo de genes responsáveis por interromperem a vida de cada criatura viva. Mas talvez, quando o encontrarem, descubram que esses genes são multi-funções e que não podem manipulá-los, sem consequências. Tenho a certeza absoluta de que assim será. Tenho a certeza absoluta de que o Homem está muito longe desse tipo de imortalidade. O código genético é, de facto, fascinante. Mas o porquê, o porquê desse código genético, como foi escrito, o que é que leva a que determinados genes sejam activados e outros desactivados, ainda o é mais. Podemos ter em nós os genes das asas, por exemplo, e penso que os temos, no entanto, o Homem não tem asas. Podemos ter em nós os genes das barbatanas e das folhas das árvores e dos olhos das águias e das corolas das flores e da produção das teias de aranha e dos dentes do tigre, e no entanto, não temos barbatanas, nem abanamos ao vento, verdes como esmeraldas, nem vemos o que as águias vêm, nem as abelhas pousam em nós em busca do pólen que não produzimos, nem andamos a fazer teias de aranha durante a noite nem roemos ossos como o tigre. Mas temos em nós todos esses genes. Tomemos os genes das asas, por exemplo. Michio Kaku escreve que não é assim tão simples, termos asas como os anjos e continuarmos humanos. Para termos asas, provavelmente perderíamos as pernas e a figura longilínea que hoje temos, e os nossos ossos teriam de ser ocos. Quem toma estas decisões? Quem decidiu que vivíamos melhor fora de água? Quem decidiu que tínhamos que envelhecer e morrer? Quem decidiu que a melhor forma de não haver desperdício era comermo-nos uns aos outros? Quem decidiu ter pernas e não ter asas? Ou são fruto do acaso, do ambiente, das circunstâncias?
E o que aconteceria, se o Homem se tornasse Imortal? O que aconteceria às crianças? Deixaria de haver crianças? Quanto tempo aguentaria uma pessoa viva? O que faria com a sua imortalidade?
Woody Allen diria que não se importa. Ele diz que não quer sobreviver nas suas obras, que apenas quer sobreviver, ponto final. E o que aconteceria, se o Woody Allen vivesse para sempre? Estaríamos condenados a ver o mesmo tipo de filme para toda a eternidade, ou poderia o Woody Allen vir a fazer filmes como o Cinema Paradiso ou como Le Grand Bleu? Evoluiríamos? O que aconteceria aos nossos genes? Experimentariam as asas?
Claro que me dói, com graus diferentes de dor, quando morrem os meus ou quando morre uma poetisa como a Sophia de Mello Breyner.
Mas eu não quero a imortalidade. Não a minha. Prefiro ser uma chama, que arde e depois se apaga, uma estrela que acaba, o risco de um voo, a espuma de uma onda que nunca se repete. Eu não sou eu. Eu não sou um indivíduo. Eu não sou apenas um indivíduo, tal como as partículas não são apenas partícula, mas partícula e onda, ao mesmo tempo. Eu sou nós, sou parte de um tudo, sou a chama que não arde e as asas que não voam e a espuma que não rebenta na praia e os olhos da águia que não são. Sou a estrela que já implodiu e a chuva que já caiu e o vento que já soprou e a abelha que já morreu. Sou a terra e o mar e a árvore, sou a pedra na areia e também sou o pombo envenenado e o lince extinto e o dinossauro e a formiga e um diamante na rocha.
E voltarei a sê-lo um dia.
Prefiro a Eternidade à Imortalidade.
publicado em
pensamentos
,
prosas
,
Sofia Raposo de Almeida
|
sem comentários
quinta-feira, 20 de setembro de 2001
por
Sofia
on
quinta-feira, setembro 20, 2001
Uma das minhas frases preferidas do livro Gone with the wind, de Margaret Mitchell:
She said we could give ourselves airs and get ourselves all rigged up and we were like race horses and we were just mules in horse harness and we didn't fool anybody. (na voz de Scarlett O'Hara)
publicado em
autores preferidos
,
Margaret Mitchell
|
sem comentários
domingo, 20 de setembro de 1992
por
Sofia
on
domingo, setembro 20, 1992
Se fosses uma ave, eras coruja, eu, um albatroz.
Se fosses um mamífero, eras um urso pardo, eu, uma orca.
Se fosses uma pedra, eras sílex, eu, berilo.
Se fosses uma cidade, eras Séforis, eu, Atenas.
Se fosses um elementar, eras furacão, eu, nascente.
Se fosses um instrumento, eras uma maça, eu, uma ânfora.
Se fosses um sentimento, eras fúria, eu, serenidade.
Se fosses uma árvore, eras um carvalho, eu, um teixo.
Se fosses um mistério, eras mirra, eu, canela.
Se fosses um aroma, eras bergamota, eu, sândalo.
Se fosses um metal, eras titânio, eu, magnésio.
Se fosses uma paisagem, eras Mauna Loa, eu, o Atlântico.
Se fosses um pensamento, eras precipício, eu, vôo.
Se fosses dois, eras tu, eu, o outro.
Se fosses uma casa, eras uma torre de menagem, eu, uma ruína.
Se fosses um impulso, eras traição, eu, ternura.
Se fosses um filósofo, eras Sartre, eu, Platão.
Se fosses um amante, eras cruel, eu, doce.
Se fosses humano, eras homem, eu, mulher.
Então diz-me? O que poderia ligar-nos? Perguntou o Hidrogénio ao Oxigénio.
Respondeu a Estrela: perguntem ao Mar.
Se fosses um mamífero, eras um urso pardo, eu, uma orca.
Se fosses uma pedra, eras sílex, eu, berilo.
Se fosses uma cidade, eras Séforis, eu, Atenas.
Se fosses um elementar, eras furacão, eu, nascente.
Se fosses um instrumento, eras uma maça, eu, uma ânfora.
Se fosses um sentimento, eras fúria, eu, serenidade.
Se fosses uma árvore, eras um carvalho, eu, um teixo.
Se fosses um mistério, eras mirra, eu, canela.
Se fosses um aroma, eras bergamota, eu, sândalo.
Se fosses um metal, eras titânio, eu, magnésio.
Se fosses uma paisagem, eras Mauna Loa, eu, o Atlântico.
Se fosses um pensamento, eras precipício, eu, vôo.
Se fosses dois, eras tu, eu, o outro.
Se fosses uma casa, eras uma torre de menagem, eu, uma ruína.
Se fosses um impulso, eras traição, eu, ternura.
Se fosses um filósofo, eras Sartre, eu, Platão.
Se fosses um amante, eras cruel, eu, doce.
Se fosses humano, eras homem, eu, mulher.
Então diz-me? O que poderia ligar-nos? Perguntou o Hidrogénio ao Oxigénio.
Respondeu a Estrela: perguntem ao Mar.
publicado em
poemas
,
Sofia Raposo de Almeida
|
sem comentários
quarta-feira, 22 de agosto de 1990
por
Sofia
on
quarta-feira, agosto 22, 1990
Tombam as saudades
no vento que vem...
Trapos de luz em azul recortados,
Tenho os meus olhos cansados
de não ver o mar.
no vento que vem...
Trapos de luz em azul recortados,
Tenho os meus olhos cansados
de não ver o mar.
publicado em
poemas
,
Sofia Raposo de Almeida
|
sem comentários
sexta-feira, 20 de novembro de 1987
por
Sofia
on
sexta-feira, novembro 20, 1987
Toda aquela prata, ali, espalhada no corpo da areia, toda aquela luz pelo corpo do mar fora e todo aquele azul por entre o vento. Todo aquele vento, ali, espalhado no corpo das dunas.
E era no meu corpo de areia que rebentava em espuma todo aquele mar. Era do meu corpo de vento que brotavam macias todas aquelas dunas, era o meu corpo de água que batia na areia, sôfrego.
E as mãos pesaram, tombaram ao longo dos corpos cansados, e a alma ficou leve, empurrou a areia no vento de encontro ao corpo das dunas. Foi quando todos os dias e anos pesaram, e soltaram-se, ali, espalhados sobre o corpo cansado e dorido da última praia deserta.
Na última praia as dunas inclinaram-se no vento, sorvendo o mar e o inverno, e eu deitei-me no chão de braços abertos, respirando aquele último verão que morria devagar, e sonhei, e senti e, pela primeira vez, amei.
Escrevi um nome na areia.
Faz-se tarde. Se não me encontrarem, procurem-me no vento.
Fotografia de Dale Durfee
publicado em
Memórias
,
Sofia Raposo de Almeida
|
sem comentários
quarta-feira, 14 de outubro de 1987
por
Sofia
on
quarta-feira, outubro 14, 1987
Sinto-me como esta estação que morre. É sempre assim em setembro. Mas este ano é particularmente dolorosa para mim, esta morte do verão. Ontem, sentada num banco de madeira no jardim que não é meu, olhava as folhas secas das árvores, que se soltarão com o primeiro sopro de vento, os limões ressequidos - o limoeiro também morreu, este ano - sentia aquele calor estúpido, aquela secura na alma, aquela angústia, aquela fúria de tudo parecer perdido, terminado. Quando a Maria telefonou, só lhe disse: Esta noite já não faço mais nada, vou dormir, se saio de casa ainda me cai uma árvore em cima, estou péssima. Não, também não gostei do último da Duras. Concordo que é patológico, por isso mesmo não gostei. Não estava em condições de o ler. Sentiste-te gozada? Talvez fosse essa a intenção dela. Ou talvez ela seja doente. Pouco depois, telefonou-me o Pedro. O sono não vinha. Estava eléctrica como aquela atmosfera doentia. Fomos beber umas cervejas e isso fez-me bem. O Pedro é tão normal, tão saudável. Tem planos, sonhos, futuro. Rimo-nos imenso. Rir faz bem. A noite, ali passada ao ar livre, no Rossio, no meio do povo, deixou de me parecer sufocante. As ruas estavam molhadas dos carros da limpeza, levantara-se uma humidade fresca do chão. Havia ainda imensos estrangeiros de férias com cara triste, desiludida. Tinham vindo atrás de um sonho e chegado à conclusão de que todas as cidades são cidades e são sujas e são barulhentas e, assim, nada melhor que a nossa cidade natal, que ao menos é nossa, é familiar, criamos-lhe um certo amor enraivecido, apesar de tudo. Conhecemos os cheiros, a sujeira, o barulho e já não nos chocam e até são de graça. São nossos, como talvez seja nossa a nossa alma. Não sei. Gostei de estar ali com o Pedro. Gostava que ele fosse meu amigo mas nestas idades já não se chega a conhecer ninguém. As crianças dormem, a partir dos vinte anos, às vezes mais cedo, às vezes mais tarde. Sobra nas pessoas aquele ar igual, a noite das almas, à noite todos os gatos são pardos. Furar os medos, abrir um pequeno buraco na desilusão, é quase impossível. Penso agora no Pedro, no perfil dele. Quem é a pessoa que está por detrás do seu sorriso? Como é que eu chego lá? Mais difícil ainda, como é que eu me descubro, me abro, me revelo? Porque não vem chuva da montanha para nos molharmos? E onde ficam todas essas lágrimas reveladoras que não são choradas? Às vezes, sou eu que não ouço. Escuto-me a mim mesma, às conversas dos bêbedos, ao barulho dos carros, aos silêncios da minha alma que se escapa para longe da rua iluminada, além das estrelas. Outras vezes, é ele que não ouve. Não sei onde está a alma dele, talvez mais perto da minha do que posso imaginar, também lá, longe dos telhados, atrás das estrelas. Bebemos a cerveja fresca e rimos dos turistas, conscientes de que também somos turistas na nossa própria cidade natal. Tudo é sempre terrivelmente desconhecido. Não é um abismo. É um silêncio por detrás do barulho, a verdade atrás das palavras, as almas encavalitadas na mesma lua, as mãos separadas, ouvimos palavras diferentes e nem nos lembramos das palavras faladas. Um homem forte, de tronco nú e barba escura, está debruçado a uma janela. Espreita a rua e não olha para nós. Tem um ar encalorado de insónia. Gostava de saber o que está por detrás do homem, como é o quarto. Não sei como é que sei que por detrás do homem está um quarto. Sei-o, muito simplesmente. Imagino um quarto pequeno, uma cama estreita encostada à parede, um armário do outro lado, de madeira velha, com um espelho, pouca luz, as paredes amarelas da pouca luz e da sujidade. Imagino que o homem não consegue dormir e nem tem saudades de nenhuma mulher. Está apenas ali, à janela, à espera que o barulho acabe. Não tem vontade de se misturar com os bêbedos ou com os turistas. O mais provável é que não pense em nada. Se eu lesse a alma dele atrás dos olhos que mal se vêem, escrevia um livro, parecido com isto que estou a escrever. Escrevia a história do homem à janela com o verão a morrer, escritor falhado, trabalha num escritório num prédio velho da baixa lisboeta. E está farto, farto, farto. As histórias são todas iguais. A Maria diz que as pessoas tão patológicas como as pessoas da Duras deviam suicidar-se. Só assim ela poderia perdoar à Duras aquela sensação de nojo que ela lhe deixou. Ela ficou assim enojada por ter lido o livro. As pessoas não deviam escrever livros que deixassem as outras com nojo. Mas nojo de quê? Só sei que também fiquei enojada. Enojada da dor. Há dores que são nojo, como a dor do luto, ou esta última dor das feridas que arrefecem, das cicatrizes a sararem mal, sem bálsamo algum, ao ar, com a infeção dentro como restos que apodrecem. O nojo é nosso. De alguma dor que sentimos, de algum monstro que existe dentro de nós, prestes a devorar-nos. Não me suicidei. Estou no controlo. Pelo menos à superfície, o mar foi encarcerado, poderosamente encarcerado e o que se passa lá no fundo, não quero saber, é cedo demais para saber, também não interessa. A opção é a vida, o melhor é olhar em frente ou para o lado. Ao lado estava o Pedro, bem-disposto, falávamos das peles que ligam e das peles que não ligam, de Curaçao e de Itaparica. Eu, só posso falar de mim, cada pessoa que fala, diga o que disser, fala sempre e apenas de si mesma, eu sentia a minha juventude a saltitar-me entre as mãos. Como pássaros. Estava contente com essa juventude mas, como qualquer jovem, não sabia bem como usá-la, o que fazer com ela. Já quase a destruíra uma e outra vez, agora olhava-a, desconfiada, enquanto ela pulava nas minhas mãos e me fazia cócegas atrás das orelhas. Como fazer para não a estragar, para não a partir aos pedaços? Em primeiro lugar, não a entregar a ninguém. Nem mesmo ao Pedro. Fiquei com medo das almas cegas. São profundamente estúpidas na sua cegueira e atiram aos pássaros, geralmente acertando, embora ao acaso. Eu sei, eu sei que o Pedro talvez possivelmente não tenha uma alma cega, mas posso apenas falar de mim mesma, porque uma pessoa consegue única e exclusivamente conhecer-se a si própria em absoluto mais ou menos. Sei uma coisa, que este pássaro agora é só meu. Claro que um pássaro partilhado noutro vento podia - e digo, poderia - ser qualquer coisa mais bela. Mas não arrisco um novo encontro naquele deserto onde vivem as almas cegas. Posso guardar este pássaro só para mim. Manter-me sempre afastada, distante. Rir dos atiradores ao acaso. Podes atirar, não chegas cá! Agora, os céus são altos e imensos, claro que me sinto perdida e só, mas longe, longe, e é bom estar longe quando o perto foi quase morte. Não disse por isso ao Pedro que a pele dele ligava com a minha, até ligava muito bem. Deixei ficar isso no ar, como outro pássaro a rir-se empoleirado num ramo distante de um gato espantado. Não vale a pena trepar. Eu fujo. Tenho asas e tu não. Foi a Mélita que primeiramente me falou na teoria amena e sensual das peles. Da humidade, do calor, da textura das peles. Talvez retractem a violência das paixões ou os sentimentos virginais de certos desencontros. E também há peles sem personalidade nenhuma, como a pele daqueles pseudo-gigolos atrás das árvores, olhando as estrangeiras velhas com um ar guloso de dólares, marcos e francos suíços. De repente, alheei-me daquilo tudo. Já não estava assim tanto calor. A cerveja estava fresca e eu sentia-me bem com aquele pássaro desconhecido e perigoso entre as mãos e a proximidade do pássaro do Pedro, que espreitava nos olhos dele, menos rebelde, fluindo com as palavras, como a música de Mozart tocada num velho caramanchão numa noite de luar, com rosas e um perfume doce a canteiros molhados. Cada alma é uma interrogação universal. Quando cheguei a casa, dormi bem. Tinha deixado a morte do verão atrás das costas, o pássaro era eu, agora, debaixo dos lençóis frescos, a dormir embalada na esperança da manhã fresca. Enquanto houver manhãs.
publicado em
as almas os pássaros
,
Memórias
,
prosas
,
Sofia Raposo de Almeida
|
3
comentários
domingo, 20 de setembro de 1987
por
Sofia
on
domingo, setembro 20, 1987
publicado em
contos
,
Sofia Raposo de Almeida
,
Uma Mulher na Foz de um Rio
|
2
comentários
por
Sofia
on
domingo, setembro 20, 1987
Aquela ave estava rubra de (a)mar.
As suas asas batiam contra um rio de pedra, o corpo tremia, os olhos fechados.
Havia uma luz matinal, clara, por entre a chuva,
havia um canto no ar, doce ou azul, ou amargo.
Do vôo dos navios, sobrara um sulco profundo na pedra.
Nem vento, nem mastro, nem vela, apenas fundo.
Aquela ave, esta manhã, ardeu contra a pedra sulcada.
Dela, apenas sobraram cinzas ou a luz de um canto azul, ou doce, ou amargo,
como gritos ou rios de março,
pelo chão.
As suas asas batiam contra um rio de pedra, o corpo tremia, os olhos fechados.
Havia uma luz matinal, clara, por entre a chuva,
havia um canto no ar, doce ou azul, ou amargo.
Do vôo dos navios, sobrara um sulco profundo na pedra.
Nem vento, nem mastro, nem vela, apenas fundo.
Aquela ave, esta manhã, ardeu contra a pedra sulcada.
Dela, apenas sobraram cinzas ou a luz de um canto azul, ou doce, ou amargo,
como gritos ou rios de março,
pelo chão.
publicado em
poemas
,
rios de março
,
Sofia Raposo de Almeida
|
sem comentários
sábado, 22 de agosto de 1987
por
Sofia
on
sábado, agosto 22, 1987
abrindo o corpo azul a este mar.
Estas, são as velas duras do meu barco,
cheias do rosto branco deste vento.
O barco desperta as águas
(e já nem choram pedras: choveram, até arder).
Agora, até as aves soltaram as asas,
como mãos, de encontro ao mastro alto.
Este é o meu barco, branco,
que acendeu o vento norte.
Agora,
até a delicada agulha da bússola estremeceu
e um novo rumo se inscreveu,
na luz matinal do meu corpo,
largando amarras do teu.
publicado em
poemas
,
Sofia Raposo de Almeida
|
3
comentários
domingo, 1 de março de 1987
por
Sofia
on
domingo, março 01, 1987
Escorrem as saudades, como água, pelas pedras. Uma ave a arder contra um rio de pedra [do cais]. Iluminemos todas as manhãs de água. Uma pedra chora no vento e tomba na proa do teu barco, com um ruído surdo, de agonia. Recusemos o medo, de mãos dadas, sobre a pedra mais alta. No cimo da montanha estamos sós, mas respiramos o corpo do mar, solto no vento. Cala-te e deixa-me chover, o rosto contra esta espada. Tenho frio. Mas o amor é azul, como o céu por detrás das nuvens, a paixão dói quando chega ao mar, como um barco, de proa aberta, ferida [vingado que foi, o leito do rio, por cada brisa ou boca que nele tocou, solta, louca, antecipando o vento que nunca foi]. Sobrou apenas um canto, também azul, ou doce, ou amargo, como gritos ou rios de março, pelo chão.
Ficou um homem no cais, as mãos vazias, morre lentamente, os olhos a devorarem o rio. O barco, o barco, será que o barco parte?
Que sonho, o do barco, de querer arrancar o cais de terra e largar com ele! Agora, até as aves soltaram as mãos, como asas, de encontro ao mastro alto. Agora, um novo rumo se inscreveu, na luz matinal do meu corpo, largando amarras, do teu. Porque nem as tuas mãos cresceram nem a minha alma diminuiu. Mas o amor é azul, a paixão escalda, de luz. Azul era o mar na tua mão, em junho. Azuis eram as minhas mãos sobre o teu peito e a tua boca na minha. Azul foi Sesimbra, em março, o meu barco fundeado ao largo, na luz da tarde, transformou o homem em criança no meio dos destroços [da minha vida?]. Não devia ter olhado para trás, riu-se de mim. Ou será antes um pedido de socorro? A criança chora ou ri. O homem sofre. A vida é assim, a espreitar por entre os teus cabelos brancos, a tua pele a arder na minha, os olhos fechados. Já nem choram pedras. Choveram, até arder. As aves também ardem. Ou partem. Não olhes para mim com esses olhos. Porque é que tinhas que ser apenas cais? O cais não pode navegar. E o barco largou, ó esqueci-me das velas no cais! E a maré enche, até quando? Brisa a brisa, beber a pele poro a poro, não queiras agora vencer a corrente dos rios de março, vastos, tumultuosos. Lembras-te de como o amor era para ti um lago sombrio? Para mim era uma cascata. Podia ter sido um outro rio [levar-te comigo]. De qualquer forma, havia uma foz e, para além da foz, o mar. Como querias conquistar-me, preso ao cais? Amar não basta. Cada vez menos, quando os beijos são como mastros sem velas ou velas sem mastros, as palavras, ficaram pousadas do outro lado das mãos. E a maré enche, até quando? Porque olhos nos olhos, nunca! O medo nas tuas mãos macias! O medo no teu corpo a tremer no meu! Porque é que te refugiaste no ventre da terra? O sol nasce todos os dias, agora morreu nos nossos olhos, que nunca se cruzam. E a minha cor é azul, fundamentalmente no vento, quando o azul é branco, de luz. O vento, agora procuras-me no vento, mas fez-se tarde. Ficou a sede no coração das nascentes, entorpecidas, estonteadas [além de ti, é sempre o mesmo mar e eu sou barco]. E toda aquela prata, ali, espalhada no corpo da areia, era novembro. As falésias e a luz na água. E o vento a ensinar-me a amar. Nessa altura, ainda podia olhar para os teus olhos. Fascinavam-me. Nessa altura, os teus olhos eram ainda brilhantes e intensos rios de luz, em abril. A chuva esquecera-se de aparecer e o desejo pode despir-se. Fascinou-me a candura no teu olhar, a agressividade nas palavras, que mordiam o meu ventre. E a vida, a vida assim a espreitar por entre os teus cabelos brancos, o barco sonhou e sangrou. Mesmo assim, apesar das lágrimas e do caos, talvez o cais seja barco e seja ave, como a mulher que o amou, talvez a piedade abra ainda o seu caminho através dos escolhos, segundo Schopenhauer. Não sei. Naquela tarde, o cão da Berlenga, cego, pousou o focinho nos meus joelhos. Mais tarde. Mais tarde, pensei, construirei algo com ele. De forte e sólido. Como esta ilha. Como esta pedra. Como um barco. Naquele dia, de madrugada, choveram-me todos os cantos na boca vazia da tua. Um outro abril, a chuva, afinal, não está esclerosada. Mas sobrou ainda aquele canto azul, ou doce, ou amargo. Da ave ardida contra o rio de pedra. E as tuas mãos, pequenas, mas doces.
Março de 1987
2º Prémio DN Jovem
Ficou um homem no cais, as mãos vazias, morre lentamente, os olhos a devorarem o rio. O barco, o barco, será que o barco parte?
Que sonho, o do barco, de querer arrancar o cais de terra e largar com ele! Agora, até as aves soltaram as mãos, como asas, de encontro ao mastro alto. Agora, um novo rumo se inscreveu, na luz matinal do meu corpo, largando amarras, do teu. Porque nem as tuas mãos cresceram nem a minha alma diminuiu. Mas o amor é azul, a paixão escalda, de luz. Azul era o mar na tua mão, em junho. Azuis eram as minhas mãos sobre o teu peito e a tua boca na minha. Azul foi Sesimbra, em março, o meu barco fundeado ao largo, na luz da tarde, transformou o homem em criança no meio dos destroços [da minha vida?]. Não devia ter olhado para trás, riu-se de mim. Ou será antes um pedido de socorro? A criança chora ou ri. O homem sofre. A vida é assim, a espreitar por entre os teus cabelos brancos, a tua pele a arder na minha, os olhos fechados. Já nem choram pedras. Choveram, até arder. As aves também ardem. Ou partem. Não olhes para mim com esses olhos. Porque é que tinhas que ser apenas cais? O cais não pode navegar. E o barco largou, ó esqueci-me das velas no cais! E a maré enche, até quando? Brisa a brisa, beber a pele poro a poro, não queiras agora vencer a corrente dos rios de março, vastos, tumultuosos. Lembras-te de como o amor era para ti um lago sombrio? Para mim era uma cascata. Podia ter sido um outro rio [levar-te comigo]. De qualquer forma, havia uma foz e, para além da foz, o mar. Como querias conquistar-me, preso ao cais? Amar não basta. Cada vez menos, quando os beijos são como mastros sem velas ou velas sem mastros, as palavras, ficaram pousadas do outro lado das mãos. E a maré enche, até quando? Porque olhos nos olhos, nunca! O medo nas tuas mãos macias! O medo no teu corpo a tremer no meu! Porque é que te refugiaste no ventre da terra? O sol nasce todos os dias, agora morreu nos nossos olhos, que nunca se cruzam. E a minha cor é azul, fundamentalmente no vento, quando o azul é branco, de luz. O vento, agora procuras-me no vento, mas fez-se tarde. Ficou a sede no coração das nascentes, entorpecidas, estonteadas [além de ti, é sempre o mesmo mar e eu sou barco]. E toda aquela prata, ali, espalhada no corpo da areia, era novembro. As falésias e a luz na água. E o vento a ensinar-me a amar. Nessa altura, ainda podia olhar para os teus olhos. Fascinavam-me. Nessa altura, os teus olhos eram ainda brilhantes e intensos rios de luz, em abril. A chuva esquecera-se de aparecer e o desejo pode despir-se. Fascinou-me a candura no teu olhar, a agressividade nas palavras, que mordiam o meu ventre. E a vida, a vida assim a espreitar por entre os teus cabelos brancos, o barco sonhou e sangrou. Mesmo assim, apesar das lágrimas e do caos, talvez o cais seja barco e seja ave, como a mulher que o amou, talvez a piedade abra ainda o seu caminho através dos escolhos, segundo Schopenhauer. Não sei. Naquela tarde, o cão da Berlenga, cego, pousou o focinho nos meus joelhos. Mais tarde. Mais tarde, pensei, construirei algo com ele. De forte e sólido. Como esta ilha. Como esta pedra. Como um barco. Naquele dia, de madrugada, choveram-me todos os cantos na boca vazia da tua. Um outro abril, a chuva, afinal, não está esclerosada. Mas sobrou ainda aquele canto azul, ou doce, ou amargo. Da ave ardida contra o rio de pedra. E as tuas mãos, pequenas, mas doces.
Março de 1987
2º Prémio DN Jovem
publicado em
O sal das lágrimas
,
prosas
,
Sofia Raposo de Almeida
|
sem comentários
Subscrever:
Mensagens
(
Atom
)
folhas soltas
a tua alma apontada
(1)
A viagem da alma
(28)
Agnieszka Kurowska
(1)
Agostinho da Silva
(2)
Agustina Bessa-Luís
(1)
Aida Cordeiro
(1)
Al Berto
(1)
Alexandre Herculano
(1)
Alisteir Crowley
(1)
Almada Negreiros
(2)
Amanda Palmer
(1)
amigos
(1)
Ana Cristina Cesar
(1)
Ana Hatherly
(1)
Anne Stokes
(1)
Antero de Quental
(1)
António Lobo Antunes
(2)
António Ramos Rosa
(2)
Apocalyptica
(1)
apócrifos
(2)
Arte Virtual
(1)
as almas os pássaros
(1)
As Arqui-inimigas
(1)
Ashes and Snow
(1)
Auguste Rodin
(1)
autores preferidos
(88)
avós
(1)
Bocelli
(1)
Bon Jovi
(1)
Buda
(1)
Carl Sagan
(1)
Carolina
(3)
Caroline Hernandez
(1)
Catarina Nunes de Almeida
(1)
ce qu’il faut dépenser pour tuer un homme à la guerre
(1)
Cheyenne Glasgow
(1)
Chiyo-ni
(1)
Chogyam Trungpa Rinpoche
(1)
cinema
(6)
Cinema Paradiso
(1)
Clarice Lispector
(1)
Coldplay
(1)
Colin Horn
(1)
Constantin Brancusi
(1)
contos
(28)
Contos para crianças
(6)
Conversas com os meus cães
(2)
Curia
(1)
Daniel Faria
(2)
David Bohm
(1)
David Doubilet
(1)
Dítě
(1)
Do Mundo
(32)
Dylan Thomas
(1)
Eça de Queiroz
(1)
Eckhart Tolle
(1)
Edgar Allan Poe
(1)
Edmond Jabès
(1)
Elio Gaspari
(1)
Emily Dickinson
(4)
Ennio Morricone
(1)
Eric Serra
(1)
escultura
(2)
Federico Mecozzi
(1)
Fernando Pessoa
(3)
Fiama Hasse Pais Brandão
(3)
Fiona Joy Hawkins
(1)
Física
(1)
fotografia
(9)
Francesco Alberoni
(1)
Francisca
(2)
Fynn
(1)
Galileu
(1)
Gastão Cruz
(2)
Georg Szabo
(1)
George Bernanos
(1)
Giuseppe Tornatore
(1)
Gnose
(2)
Gonçalo M. Tavares
(1)
Gregory Colbert
(1)
Haiku
(1)
Hans Christian Andersen
(1)
Hans Zimmer
(1)
Henri de Régnier
(1)
Henry Miller
(1)
Herberto Helder
(5)
Hermes Trismegisto
(1)
Hilda Hilst
(3)
Hillsong
(1)
Hipácia de Alexandria
(1)
Igor Zenin
(1)
inteligência artificial
(1)
James Lovelock
(1)
Jean-François Rauzier
(1)
Jess Lee
(1)
João Villaret
(1)
Johannes Hjorth
(1)
Jonathan Stockton
(1)
Jorge de Sena
(1)
Jorge Luis Borges
(2)
Jorseth Raposo de Almeida
(1)
José Luís Peixoto
(2)
José Mauro de Vasconcelos
(1)
José Régio
(1)
José Saramago
(1)
Khalil Gibran
(1)
Krishnamurti
(1)
Kyrielle
(1)
Laura
(1)
Linkin Park
(1)
Lisa Gerrard
(3)
Live
(1)
Livros
(1)
Loukanikos
(1)
Luc Besson
(1)
Ludovico Einaudi
(1)
Luis Fonsi
(1)
Luís Vaz de Camões
(1)
Luiza Neto Jorge
(1)
Lupen Grainne
(1)
M. C. Escher
(1)
M83
(1)
Machado de Assis
(1)
Madalena
(1)
Madan Kataria
(1)
Manuel Dias de Almeida
(1)
Manuel Gusmão
(1)
Marco Di Fabio
(1)
Margaret Mitchell
(1)
Maria Gabriela Llansol
(1)
Memórias
(25)
Michelangelo
(1)
Miguel de Cervantes y Saavedra
(1)
Miguel Esteves Cardoso
(1)
Miguel Sousa Tavares
(1)
Miguel Torga
(1)
Milan Kundera
(1)
música
(25)
Neil Gaiman
(1)
Nick Cave
(1)
Noite de todos os santos
(1)
O sal das lágrimas
(2)
Olavo de Carvalho
(1)
Orações
(1)
Orides Fontela
(1)
Orpheu
(1)
Oscar Wilde
(3)
Palavras preferidas
(1)
Palavras que odeio
(1)
Paolo Giordano
(1)
páscoa todos os dias
(3)
Patrick Cassidy
(1)
Paul Valéry
(1)
Paulo Melo Lopes
(2)
pensamentos
(76)
pintura
(5)
Platão
(1)
poemas
(15)
Poemas Gregos
(2)
Poesia
(2)
prosas
(25)
Prosas soltas
(1)
Radin Badrnia
(1)
Richard Linklater
(1)
rios de março
(1)
Roland Barthes
(1)
Russell Stuart
(1)
Serafina
(2)
Shalom Ormsby
(1)
Sigur Rós
(1)
Simone Weil
(1)
sobrinhas
(5)
Sócrates Escolástico
(1)
Sofia Raposo de Almeida
(176)
Sophia de Mello Breyner
(14)
Stephen Fry
(1)
Stephen Simpson
(1)
Steve Jobs
(1)
Susan J. Roche
(1)
Sytiva Sheehan
(1)
Teresa Vale
(1)
The Cinematic Orchestra
(2)
The Verve
(1)
Thomas Bergersen
(1)
Todd Gipstein
(1)
Tomás Maia
(1)
traduções de poemas
(5)
Uma Mulher na Foz de um Rio
(4)
valter hugo mãe
(1)
Vincent Fantauzzo
(1)
Wayne Roberts
(1)
wikihackers
(1)
William Blake
(2)
Yeshua
(2)
Yiruma
(1)
cinco mais
-
Todas as árvores nascem de uma semente. Menos a primeira árvore, cuja semente se transformou em semente por força de um sonho. É isso que ...
-
São duas e vinte e dois da manhã. Trouxe o portátil para o piso térreo da casa. Aqui não se ouvem cantar os estranhos pássaros nocturnos, q...
-
And death shall have no dominion. Dead men naked they shall be one With the man in the wind and the west moon; When their bones are pic...
-
Não se perdeu nenhuma coisa em mim. Continuam as noites e os poentes Que escorreram na casa e no jardim, Continuam as vozes diferentes Q...