Odeio gravatas. Ainda bem que não tenho que as usar. Olho para elas e vejo uma trela. Nem os meus cães usam trela. Considero a trela algo de humilhante, além de que eu própria não suporto nada enrolado à volta do pescoço. Olho para as gravatas e apetece-me puxá-las ou rasgá-las.
Odeio fardas, odeio fatos, odeio planos de negócios e orçamentos. Odeio analistas e economistas. Odeio planos de contingência. Odeio armas. Odeio carros. Odeio betão e alcatrão. Odeio rentabilidades e EBITDAs. Odeio o poder exercido em egoísmo. Odeio conversas de circunstância. Odeio o que fazem às crianças. Odeio a forma como o dinheiro é utilizado. Odeio os falsos sorrisos, as falsas amizades e as perguntas que não estão interessadas nas respostas.
Odeio chefes, directores e administradores e presidentes do conselho de administração. Odeio accionistas e planos de poupança.
Odeio agendas e relógios, odeio emparedamentos no tempo. Odeio grades e fechaduras e portas e janelas fechadas. Odeio modas e ditos politicamente correctos. Odeio perfumes artificiais e fast-food.
Odeio gravatas. Trelas. Mesmo as de seda. Ainda bem que não tenho que as usar.
sexta-feira, 9 de janeiro de 2009
segunda-feira, 15 de dezembro de 2008
As paredes, não se leia paredes, medem-se pelo número de humanos, não se leia humanos, a quem conseguem suportar o esforço sem ruir. Neste sentido, científico e sistematicamente estruturado, ignorem-se duas vírgulas e três pontos, o mesmo que consolidou enquanto objecto de estudo dinâmico a interoperabilidade entre dunas de fraca consolidação, particularmente atreitas às rachadas tempestades, acrescente-se água, vindas do mais brusco e estúpido oceano, escolha-se um deles, a que a vossa memória profunda, medir a profundidade por meio de sistema hidráulico que comporte uma régua e um nível, possa aceder, virados a leste sempre que os cardeais, que não os padres, antes os pontos, que seria absurdo falar da religiosidade dos cardeais considerando-os referenciais da rosa-dos-ventos, use-se uma outra flor qualquer, assim o permitem, as paredes, não se leia as paredes, consolidam-se estrutura plana e côncava que suporta e abriga a humanidade, ignore-se a humanidade, leia-se outra palavra começada por h que não humidade. As paredes não são náufragos da história; espreguiçam-se em todo o esplendor quando há rasto de olhar humano, franzir a sobrancelha, que é quase uma constante, tão constante quão constante pode ser a constância da ida e volta, ida e volta, ida e volta das marés de gente, repetir sem parar. Paredes a olhar olhos humanos, usar ditongo, olhos humanos a olhar paredes, usar não ditongo. Tão antiga é a parede que não se sabe quem primeiro chegou, se a parede se o olhar, que a obra é anterior ao olhar, mas antes de ser parede já o olhar. Se o olhar forma a parede, é a solidez da rocha que lhe consolida o carácter, substituir por uma outra palavra que não use do verbo ser, e esse, não obstante o peso do olhar, use-se uma balança de pesar-olhares, não se compadece com a tecedura, sentir o tecido a escorrer pela mão esquerda, de olhar verde, azul, castanho, preto, amarelo, vermelho, multicolor: as paredes não se medem pelo olhar, ignore-se a letra h duas vezes consecutivas, nem pela cor dos olhos que as olham: as paredes medem-se pelo número de humanos a quem conseguem suportar o esforço sem ruir com ruído ou com ruído sem ruir. Chegar ao final e não recomeçar.
Paulo Melo Lopes
segunda-feira, 1 de dezembro de 2008
E sem medo nem dó nos destruímos,
Se morremos em tudo o que sentimos
E podemos cantar, é porque estamos
Nus em sangue, embalando a própria dor
Em frente às madrugadas do amor.
Quando a manhã brilhar refloriremos
E a alma possuirá esse esplendor
Prometido nas formas que perdemos.
segunda-feira, 24 de novembro de 2008
segunda-feira, 20 de outubro de 2008
quinta-feira, 21 de agosto de 2008
Há muitas eras atrás, vivia no Ribatejo um Rei foragido. Ele era um foragido, porque embora tivesse nascido Rei, nunca o tinha querido ser. E assim, quando a ocasião se proporcionou, pela calada de uma certa noite, aparelhou e montou o cavalo que havia pertencido a seu Pai, o Rei-Surdo e cavalgou, cavalgou, até chegar ao Ribatejo. Aí, soltou o cavalo, que imediatamente se sentiu em casa com os seus amigos Lusitanos selvagens, e refugiou-se numa pequena casa de cal, abandonada.
E durante anos e anos, alimentado por uma fada e inspirado pela Musa branca, prosseguiu com a sua Poesia, ao ritmo de apenas dois poemas por mês, porque não conseguiu esquecer totalmente a sua educação de Rei e tudo tinha de ser perfeito, poderoso e brilhante, como o trono e coroa que rejeitara. Não foi Rei-Poeta, mas foi Poeta-Rei.
quinta-feira, 12 de junho de 2008
domingo, 20 de abril de 2008
De uma terra à outra o azul profundo. Ondas de prata correm de terra a terra e entre elas e o céu sopram os ventos. Batem nos rochedos, de terra a terra, ilha a ilha, peito a peito. Os rios desistem e transbordam. Derretem as neves nos limites da vida, o oxigénio precipita-se no espaço por entre a aurora boreal. As árvores queimadas, os pulmões param. Dói respirar, as asas partidas no chão. Pois agora ergo-me e danço, rodopio no vento, recolho as folhas e as asas e os olhos dourados dos lobos mortos, salto de onda em onda, atravesso o mar todo e vejo-me nas estrelas.
Sou a vida. Sobreviverei no átomo, respirarei no vazio, sem pulmões.
sexta-feira, 8 de fevereiro de 2008
Lembro-me também muito bem de como era ser adolescente. O tempo começava a encurtar. As férias acabavam mais depressa. Os adultos, afinal, não sabiam tudo. Pior, mentiam-nos muitas vezes e tentavam manipular-nos. Havia demasiadas regras, todas elas duvidosas e, no mínimo, questionáveis. Havia afinal muitos deuses diferentes. Cresciam paredes à nossa volta. Víamos a máquina dos adultos a girar, a roncar, a deitar fumo. Víamos as vidas estúpidas que eles levavam e pensávamos: eu não, eu nunca serei assim, do trabalho para casa, da casa para o trabalho, sentada diante da televisão nas horas vagas, deprimida e sem sentido para a vida. Eu vou ser diferente, vou ser vagabunda, artista, diletante, eremita. Vou viver no campo com os animais e ter uma quinta. Vou-me casar com um padeiro, vou ser amante dum pescador e ele vai levar-me com ele no barco.
Lembro-me também muito bem de como era ter 20 anos. O tempo começara a apanhar-nos. Os adultos tinham os melhores empregos e todos pareciam ter mais oportunidades do que nós. Eram agora nossos competidores e éramos nós que tentávamos usá-los e manipulá-los. Deus já não era nem resposta, nem mesmo pergunta. As férias eram insuportavelmente curtas. Fazíamos as nossas próprias regras e aceitávamos algumas outras, para que não nos incomodassem muito. O tempo livre era utilizado sôfrega e intensamente. Ainda quase tudo era possível: ia-me casar, ter cinco filhos, uma casa enorme com piscina, jardim e court de ténis (porque ele gostava de ténis), quando nos apetecesse íamos jantar a Paris no nosso avião particular... Ia ser empresária, colocar as crianças na minha escola, tinha nomes e caras e côres para elas.
Lembro-me muito bem de ter chegado aos 30. Então, o que estava em questão era toda a minha vida. Já não tinha férias, o tempo deixara de existir porque nunca havia tempo para nada, o mundo tornara-se insuportavelmente pequeno, todas as cidades iguais umas às outras, as pessoas eram uma desilusão, tudo era mentira, interesse, falsidade... Ilhas, éramos todos ilhas a navegar não sabíamos muito bem para onde. A navegar... muitos de nós ilhas ancoradas, presas. Não há comunicação. Não há sentido. Tudo é por acaso.
Foi aos 30 anos que me comecei a consolar com a ideia de envelhecer. Comecei a criar um ideal de mim própria assim velhinha: magra, os cabelos curtos e grisalhos, ainda elegante, enfiada em jeans desbotados, de docksides, com uma bengalinha de mogno com punho de prata, a passear na praia com os meus dois cães, com o motorista à espera no meu velho Mercedes. Isto de manhãzinha cedo. À tarde, escreveria os meus livros, sentada à minha escrivaninha de madeira de cerejeira, no meu velho computador, enquanto os cães ressonavam, refastelados no tapete persa, já tão velho que se desfiava. Nessa altura percebi que tinha que mudar de vida. A vida tecera a sua teia à minha volta, mas eu já não me iludia mais com grandes sonhos e sabia onde tudo ia dar. Fiquei subitamente lúcida, aos trinta anos. Encontrara tudo aquilo com que sonhara (aos 10? aos 20? aos 30?), mas nada me podia pertencer. Dei de caras com a felicidade tarde demais. Perdera demasiado tempo. Restava-me a lucidez e o sentido de humor. Mudei de vida.
O meu mal sempre foi ser rápida demais no trabalho e lenta demais na vida pessoal. Mas isso é, de facto, uma característica minha: rápida a pensar e a agir, lenta a sentir e a confiar. Foi a vida que me ensinou a ser prudente.
Neste momento, tudo o que quero é paz. Apenas PAZ. Serena utopia num mundo que se desmorona, sem que ninguém dê por isso...
quinta-feira, 20 de setembro de 2007
Ela está na árvore, de calções de ganga e blusa cor-de-rosa, quase invisível. Porque cresceu com elas, com as árvores, porque um dia adormeceu abraçada aos troncos rugosos com a música suave do vento a brincar com as folhas, porque arrancou as folhas, e as flores e os frutos, e rasgoub as primeiras, para as conhecer por dentro e por fora, e esmagou as pétalas das outras, para lhes sentir a fragrância e os óleos e abriu os últimos, para lhes ver o caroço e os saborear, porque sentiu nas suas pequenas mãos e nos joelhos e na parte interior das pernas todas as pequenas saliências e texturas, que arranhavam, por vezes feriam, numa retribuição de curiosidade e amor, e porque aprendeu tudo sobre a força dos troncos, inquebráveis e a fragilidade dos ramos, que arrancou com um só puxão, para sentir a seiva escorregar-lhe por entre os dedos, um dia ela amará as árvores. Como só uma criança que as trepou e conheceu por dentro e por fora pode amar as árvores. Será uma dríade.
folhas soltas
cinco mais
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Todas as árvores nascem de uma semente. Menos a primeira árvore, cuja semente se transformou em semente por força de um sonho. É isso que ...
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