as almas, os pássaros

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sexta-feira, 22 de maio de 2009

Hoje percorri toda a cidade a pé. Uma cidade cheia de colinas. Gostei de imaginar-me invisível entre a multidão. Colina abaixo, colina acima, os edifícios, como árvores mutantes de betão, o céu azul e branco, por cima, o céu, a voar sobre a minha cabeça, a voar sobre a cidade, a voar sobre as árvores mutantes de betão, a voar sobre a multidão, eu invisível, de pés leves, quase sem tocarem o chão, o vento de norte a brincar-me com os cabelos, a puxar-me pelas roupas, leves, como os pés. Hoje passeei na cidade e procurei-te por toda a parte, mesmo sabendo que não ia encontrar-te, se te encontrasse, não me verias. Passeei invisível, os pés flutuantes, serias mais um na multidão que me não veria, sentirias apenas um sopro no pescoço, como uma refrega mais quente. Caminhei e caminhei, quase dancei e cheguei à avenida cheia de plátanos, caminhei mais devagar sob eles como quem caminha na floresta, caminhei sob os plátanos centenários e cumprimentei-os a todos, como velhos amigos, as árvores de prata e oiro, agora de prata, vestidas de verde, minhas companheiras de sombra e claridade. Desci a avenida em direcção ao rio, sempre por entre os plátanos, a cidade e os carros e o barulho desapareceram, levantei voo até às copas de folhas pentalobadas, o verde a brincar com o oiro da luz, misturei-me com elas, com as folhas verdes e douradas, com os dedos esguios dos plátanos de tronco prateado e desfiz-me.

quinta-feira, 21 de maio de 2009



Aimer tout son amour
Vivre toute sa vie
Mourir toute sa mort

[George Bernanos]

Porque a única coisa que podemos realmente dar aos outros, é quem nós somos… nada mais nos pertence, realmente. Se pensarmos bem, nem pertencemos a nós próprios, a vida muda-nos mas, em cada momento, em cada espaço-tempo, existimos, somos quem somos nesse espaço e nesse tempo, e são esses estados de alma que podemos partilhar.

Para celebrar o primeiro encontro do fórum Art(em)ovimento, que vai ser passado no mar, deixo aqui um conto antigo meu, muito antigo mesmo, do tempo em que a Inês era ainda uma criança despreocupada e feliz.

O Barco

Aquele barco deixou-me, desde a primeira vez que o vi, uma impressão de familiaridade, como se o conhecesse há muitos anos. Estava atracado na doca, a proa afilada virada para pontão, o corpo largo, sólido, uma expressão de aborrecimento emanava dele.
Olá!
Agarrei-lhe a proa e subi-lhe para cima.
Quem és?, perguntou-me, com um ar de despeito.
Chamo-me Inês. E tu?
Tenho o meu nome escrito à popa, se te quiseres dar ao trabalho, vai ver.
Percorri o convés de fibra. A capa da vela grande estava suja e gasta. O estai com enrolador não tinha a genoa. Via-se que era um pobre barco, ali parado e todo desprezadinho há imenso tempo. O nome lá estava, via-se mal, as letras quase sumidas, a côr quase irreconhecível: T nu el.
Tnuel!, exclamei eu. É um nome como outro qualquer. Em troca, só um silêncio pesado e ofendido.
Tnuel, estás muito aborrecido. Porquê?
Novo silêncio, ainda mais denso.
Se não te apetece falar, não fales. Andava simplesmente aqui, a passear pelas docas e vi-te com um ar tão enfastiado… pensei que gostasses de desabafar.O silêncio tornou-se menos denso.
Não és pessoa, pois não?, acabou por me perguntar, com uma voz mais levezinha.
Não. Não sou pessoa.
Então o que és? Tens nome de pessoa…
Sorri.
Não te chamas Tnuel, realmente, pois não? O que é que aconteceu ao resto do teu nome e a que é que ele soava? Tens dono? Porque é que estás com ar de quem não larga daqui há imenso tempo?O barco suspirou, o corpo a estremecer.
Por onde é que queres que comece? O meu nome completo é Tinúviel. Acho que tenho dono, mas ele abandonou-me. E por isso é que tenho este aspecto tão degradado e não saio daqui há anos. Nem o fundo me têm limpo e estou meio consumido pela osmose.
Tossiu ligeiramente, para exemplificar.
Viajei bastante, nos meus tempos áureos. Sou francês.
Parecia dizer aquilo com um certo orgulho.
Os meus primeiros donos eram francêses. E esses gostavam de mim. Mais tarde, quando mudei de dono, não foi mau. Diverti-me um bom bocado e percorri o Mediterrâneo todo. Visitei muitas ilhas…. Depois….
Suspirou profundamente e senti a vela grande a estremecer, dentro da capa velha.
Não sei que se passou. O meu dono desapareceu e fiquei para aqui aparvalhado…
Estava vento. Um vento forte de norte, fresco. As adriças do Tinúviel tilintavam no mastro.
Queres dar uma volta?
A sua expressão foi de espanto.
Tu não és pessoa, não podes sair comigo.
Dei-lhe uma palmada na retranca.
Posso. Com uma condição. Tens de mudar de nome e esquecer o passado..
Como é que eu faço isso?
Querendo., respondi.
E como é que me iria chamar?
Quando pronunciei o nome mágico, o vento soprou mais forte. As palavras soaram magicamente na manhã. Vi o barco concentrar-se com tanta força, que a vela grande e o casco se enrugaram ligeiramente e, de repente, a genoa grande e branca, orlada de azul, surgiu enrolada no estai. A côr do barco, de um creme sujo, transformou-se num branco nevado. A capa da vela grande desapareceu e a vela estava solta, também muito branca, meio descaída da retranca. Uma listra azul percorria-lhe o corpo e as letras do novo nome brilhavam ao sol da manhã. Os cabos de amarração soltaram-se e enrolaram-se devidamente. Como que conduzido por uma mão mágica, o barco deslizou para fora da doca. Quando chegámos ao rio, icei as velas e largámos em direcção à foz. O sol subia no céu, aquecendo o ar. O barco fez ouvir a sua voz, transformada, alegre:
Nada há como o vento! Nada há como o vento!
E berrámos os dois, de puro contentamento.


terça-feira, 19 de maio de 2009

Sempre estiveram vazias, as mãos. Por isso, não posso atirar nada. Mas posso desligar a luz. A minha luz. De qualquer forma, a luz desligou-se sozinha. Sei que é temporário. Ilumino-me facilmente. Aliás, é preciso muito para que a luz se apague em mim. Muito ou pouco. Tanto ou tão pouco como para me iluminar. Quando olho para trás, sei que é pouco. Agora parece muito. Parece o mundo inteiro contra mim ou eu contra o mundo inteiro. Ainda bem que posso andar para a frente e olhar para trás. Não gosto de estar onde estou agora. Dói. É um mau sítio. Por isso, por vezes recuo, depois avanço, olho para a frente, olho para trás, agora está escuro, a luz apagou-se, mas a alma acender-se-à de novo no futuro, quer queira quer não. Não há opção. É assim mesmo. Olho para a frente e para trás e sei como tudo isto é ridículo, como estou a desperdiçar tempo. Aprende. Mas nunca aprendi nada quando a luz se desliga. Aprende o que é a escuridão. Já sei. Sempre o soube. Porque tenho que regressar sempre a este ponto? Conheço o abismo, caí nele vezes sem conta. O que falta, de que é que me esqueci? Não sei. Neste estado, não vejo nada. Fecha os olhos e sente. Tê-los abertos, de facto, de nada serve. Sentir o quê? Não quero sentir isto. Tens medo. Admite-o. Simplesmente, não quero. É medo. E se for? Sabes o que é ser queimada viva? Sabes o que é ser entregue por aquele em quem mais confiavas? A luz apaga-se. Toda a luz. Tens de ser mais discreta. Isso já aprendi. Confronta as memórias. 

Inês não respondeu. Mas murmurou: a escuridão é luz suspensa, inerte, como pulmões que pararam de respirar. Não respira. Onde há um respirar, há luz. A escuridão espera, dela nascem as coisas. Mas há lugares na escuridão que estão demasiado quietos. Adormecidos, estagnados, nesses lugares não nasce nada, são abismais. Não quero ir a esses lugares. Não queres saber o que se passa lá? Está a crescer, nada se move lá. Não quero.



Sempre estiveram vazias, as mãos. Por isso, não posso atirar nada. Mas posso desligar a luz. A minha luz. De qualquer forma, a luz desligou-se sozinha. Sei que é temporário. Ilumino-me facilmente. Aliás, é preciso muito para que a luz se apague em mim. Muito ou pouco. Tanto ou tão pouco como para me iluminar. Quando olho para trás, sei que é pouco. Agora parece muito. Parece o mundo inteiro contra mim ou eu contra o mundo inteiro. Ainda bem que posso andar para a frente e olhar para trás. Não gosto de estar onde estou agora. Dói. É um mau sítio. Por isso, por vezes recuo, depois avanço, olho para a frente, olho para trás, agora está escuro, a luz apagou-se, mas a alma acender-se-à de novo no futuro, quer queira quer não. Não há opção. É assim mesmo. Olho para a frente e para trás e sei como tudo isto é ridículo, como estou a desperdiçar tempo. Aprende. Mas nunca aprendi nada quando a luz se desliga. Aprende o que é a escuridão. Já sei. Sempre o soube. Porque tenho que regressar sempre a este ponto? Conheço o abismo, caí nele vezes sem conta. O que falta, de que é que me esqueci? Não sei. Neste estado, não vejo nada. Fecha os olhos e sente. Tê-los abertos, de facto, de nada serve. Sentir o quê? Não quero sentir isto. Tens medo. Admite-o. Simplesmente, não quero. É medo. E se for? Sabes o que é ser queimada viva? Sabes o que é ser entregue por aquele em quem mais confiavas? A luz apaga-se. Toda a luz. Tens de ser mais discreta. Isso já aprendi. Confronta as memórias. Porque é que ainda o queres? 

Inês não respondeu. Mas murmurou: a escuridão é luz suspensa, inerte, como pulmões que pararam de respirar. Não respira. Onde há um respirar, há luz. A escuridão espera, dela nascem as coisas. Mas há lugares na escuridão que estão demasiado quietos. Adormecidos, estagnados, nesses lugares não nasce nada, são abismais. Não quero ir a esses lugares. Não queres saber o que se passa lá? Está a crescer, nada se move lá. Ainda o quero, porque ele e eu somos um só.


sábado, 28 de fevereiro de 2009


Um mar assim
de beber, vida
após vida
sem princípio nem fim
quando me quebra em maremoto
oxigena as células
da alma, fogo ignoto
quero lá saber a dor
se o espelho do céu
bojador
és tu

sábado, 24 de janeiro de 2009



Um filme de Luc Besson com música de Eric Serra. Um filme sensível e visualmente belo, que retrata a diferença e o isolamento que ela provoca, a amizade e a obsessão para além da vida.

sábado, 10 de janeiro de 2009

Um dos seus fornecedores tinha-lhe deixado, nessa manhã, o pequeno calendário, em formato de cartão de crédito. O seu primeiro impulso fora deitá-lo fora, mal o fornecedor virara as costas. Mas, sem saber porquê, acabara por colocá-lo no bolso do casaco. Chegado a casa, um pequeno estúdio no último andar de um prédio debruçado sobre o mar, tirara o casaco e a data surgira-lhe diante dos olhos, a dançar, como uma visão. Vinte e oito de Abril de dois mil e oito. Retirou o calendário do bolso do casaco, enquanto descalçava os sapatos. Não o largou enquanto se dirigia ao pequeno bar, retirava um copo e o enchia de Jack Daniels. Duas pedras de gelo retiradas do congelador. O copo numa das mãos, o calendário na outra, dirigiu-se à varanda, que era o melhor que a casa tinha e abriu as janelas de par em par. O mar era todo ele marés vivas e as nuvens rolavam pelo céu a alta velocidade, como fardos prateados, brancos e cinzentos de algodão. Sentou-se na cadeira, bebeu meio copo e fitou de novo a data. Tinham-se passado quinze anos e Tomás não sabia como. O que é que interessa o que pode ou não acontecer? O tempo não perdoa. Após se ter ultrapassado o cume da montanha a que chamamos vida, para baixo é sempre a escorregar. É tão rápido, que mal temos tempo de respirar entre o cair dos anos. Este ano tinha ido às Caraíbas, mas só conseguira pensar no sonho de ambos, do qual ambos se tinham afastado, seguindo caminhos diferentes. Escrever, precisava de escrever, há anos que não escrevia. Continuava a precisar do mar. Aprendera a sobreviver sem quase tudo o que era importante, mas não sobreviveria sem o mar. Nada o prendia. Nem mulher, nem filhos, nenhum compromisso, sempre achara que esse tipo de responsabilidade não convinha à sua loucura. Mas a vida dera-lhe a volta. Começara por colocar uma pedra no caminho, depois agarrara-lhe um calcanhar. Quando dera por ele, já estava envasado.
Os neurologistas dizem hoje que o amor não passa de química cerebral. Uma cientista dizia outro dia num programa televisivo: “Não é suposto durar. Faz-nos sentir maravilhosamente bem. É uma maravilhosa descarga de hormonas, o objectivo é o acasalamento com a pessoa certa (os genes certos). Mais tarde, as hormonas mudam e surge apenas uma sensação calma de bem estar. É o que chamamos amor. Não passa de um truque…” Claro que a cientista era americana…
Se assim é, pensava Tomás, o olhar vagueando entre o mar e o calendário, o céu e as memórias, porque é que há amor sem bem estar? Amor que dura anos e anos e cujos momentos de bem-estar se tornam cada vez mais raros, mais fugidios… A última vez que estivera com ela não sentira nada, nenhum deslumbramento, nenhuma descarga hormonal. Apenas amargura, desilusão. No entanto, continuava a preferir estar ao lado dela do que ao lado de outra pessoa qualquer. Pertenciam um ao outro, percebia-o agora claramente, com uma precisão e nitidez de gume. Há quinze anos que viviam separados. Não havia estímulo hormonal. Não havia recompensas. Já não partilhavam nada. Tinham mudado tanto os dois que às vezes se interrogava se ainda sabia quem ela era. Mas que o amor existia ainda, não tinha nesse momento dúvida alguma. Bebeu o resto do whisky de um só trago e lembrou-se daquela cena do filme Le Grand Bleu: “O que é o amor?”, perguntou um amigo a outro. “Amor é aquilo que nos mantém juntos.” Love is what keeps us together. Dito por um siciliano, claro. Mantém-nos juntos, apesar de separados. Apesar da falta de estímulos, da falta de recompensas. Um amor destes nunca morre. Por vezes transforma-se. Por vezes, na impossibilidade de ser canalizado, pela ausência, para aquela mulher, estende-se para os outros e começa a crescer como um rio por esse mundo fora… abrangendo tudo e todos, mas nunca esquecendo onde está a sua nascente.
Afinal, neste mundo, sussurrara ela uma vez, a única coisa capaz de nos salvar é o amor. Não interessa que tipo de amor é, se é o de um pai pelo seu filho ou o de um homem por uma mulher, ou o amor por todas as coisas, o amor pela vida, o amor universal. Amar, amar, não importa o quê, não importa a quem.
Só o amor cura tudo, como água do mar.

sexta-feira, 9 de janeiro de 2009

Odeio gravatas. Ainda bem que não tenho que as usar. Olho para elas e vejo uma trela. Nem os meus cães usam trela. Considero a trela algo de humilhante, além de que eu própria não suporto nada enrolado à volta do pescoço. Olho para as gravatas e apetece-me puxá-las ou rasgá-las.

Odeio fardas, odeio fatos, odeio planos de negócios e orçamentos. Odeio analistas e economistas. Odeio planos de contingência. Odeio armas. Odeio carros. Odeio betão e alcatrão. Odeio rentabilidades e EBITDAs. Odeio o poder exercido em egoísmo. Odeio conversas de circunstância. Odeio o que fazem às crianças. Odeio a forma como o dinheiro é utilizado. Odeio os falsos sorrisos, as falsas amizades e as perguntas que não estão interessadas nas respostas.

Odeio chefes, directores e administradores e presidentes do conselho de administração. Odeio accionistas e planos de poupança.

Odeio agendas e relógios, odeio emparedamentos no tempo. Odeio grades e fechaduras e portas e janelas fechadas. Odeio modas e ditos politicamente correctos. Odeio perfumes artificiais e fast-food.

Odeio gravatas. Trelas. Mesmo as de seda. Ainda bem que não tenho que as usar.

segunda-feira, 15 de dezembro de 2008

As paredes, não se leia paredes, medem-se pelo número de humanos, não se leia humanos, a quem conseguem suportar o esforço sem ruir. Neste sentido, científico e sistematicamente estruturado, ignorem-se duas vírgulas e três pontos, o mesmo que consolidou enquanto objecto de estudo dinâmico a interoperabilidade entre dunas de fraca consolidação, particularmente atreitas às rachadas tempestades, acrescente-se água, vindas do mais brusco e estúpido oceano, escolha-se um deles, a que a vossa memória profunda, medir a profundidade por meio de sistema hidráulico que comporte uma régua e um nível, possa aceder, virados a leste sempre que os cardeais, que não os padres, antes os pontos, que seria absurdo falar da religiosidade dos cardeais considerando-os referenciais da rosa-dos-ventos, use-se uma outra flor qualquer, assim o permitem, as paredes, não se leia as paredes, consolidam-se estrutura plana e côncava que suporta e abriga a humanidade, ignore-se a humanidade, leia-se outra palavra começada por h que não humidade. As paredes não são náufragos da história; espreguiçam-se em todo o esplendor quando há rasto de olhar humano, franzir a sobrancelha, que é quase uma constante, tão constante quão constante pode ser a constância da ida e volta, ida e volta, ida e volta das marés de gente, repetir sem parar. Paredes a olhar olhos humanos, usar ditongo, olhos humanos a olhar paredes, usar não ditongo. Tão antiga é a parede que não se sabe quem primeiro chegou, se a parede se o olhar, que a obra é anterior ao olhar, mas antes de ser parede já o olhar. Se o olhar forma a parede, é a solidez da rocha que lhe consolida o carácter, substituir por uma outra palavra que não use do verbo ser, e esse, não obstante o peso do olhar, use-se uma balança de pesar-olhares, não se compadece com a tecedura, sentir o tecido a escorrer pela mão esquerda, de olhar verde, azul, castanho, preto, amarelo, vermelho, multicolor: as paredes não se medem pelo olhar, ignore-se a letra h duas vezes consecutivas, nem pela cor dos olhos que as olham: as paredes medem-se pelo número de humanos a quem conseguem suportar o esforço sem ruir com ruído ou com ruído sem ruir. Chegar ao final e não recomeçar.

Paulo Melo Lopes


segunda-feira, 1 de dezembro de 2008

Se todo o ser ao vento abandonamos
E sem medo nem dó nos destruímos,
Se morremos em tudo o que sentimos
E podemos cantar, é porque estamos
Nus em sangue, embalando a própria dor
Em frente às madrugadas do amor.
Quando a manhã brilhar refloriremos
E a alma possuirá esse esplendor
Prometido nas formas que perdemos.



No dia 17 de Agosto de 1914 foi publicada a edição nº 17 de uma revista entitulada La Science et La Vie. A revista pertencia ao meu avô, que à data tinha 10 anos, a caminho dos 11. Assim, deve ter sido comprada pelo meu bisavô. Encontrei-a outro dia, por acaso, ainda em excelentes condições. As primeiras oito páginas estão todas cheias de publicidade a produtos e serviços inovadores do início do século XX, tais como máquinas de escrever da L.C. Smith & Bros., telégrafos sem fios da G. Péricaud, propulsores a petróleo para barcos da MM. G. Trouche, um dos primeiros aromatizadores da história, que é descrito como um “aparelho de repetição para a vaporização de líquidos e essências necessários para a limpeza das habitações, para a purificação do ar, desodorização, desinfecção e prevenção das epidemias”, da firma Swiss Hygienical, uma máquina rotativa para gelo e frio, chamada Frigogène, placas fotográficas Guilleminot, oferta de serviços de arquitectura e decoração de um gabinete que se chamava Le Bien-être Chez Soi, binóculos Stelar da Georges Hinstin e da Zeiss, fornos de cozinha e radiadores da C. Ducharme, um anúncio da Escola Bréguet-Electricidade e Mecânica, máquinas de costura da Singer, flutuadores Papillon (uma espécie de braçadeira para ajudar adultos a nadar, só que era colocada… no traseiro), um cachimbo aprovado pela Société d’Hygiène de France… mas esta publicidade tem algo de bastante diferente. Em todos os pés de página, está escrito, numa letra de tamanho normal (permitam-me que traduza): “Todas as afirmações contidas nos nossos anúncios são inteiramente garantidas pela La Science et la Vie.” Algo que seria impensável hoje. Já imaginaram os processos e falências? Na página 10 é apresentado o sumário:

O eclipse do sol de 21 de Agosto de 1914
O que é necessário gastar para matar um homem na guerra
De que forma a água modelou os peixes
O fabrico de diamantes em forno eléctrico
A lontra do Hudson, demasiado prolífica, ameaça invadir a Boémia
Prepare-se para os acidentes
A crise do Cacutchouc e o futuro do Congo francês
Alguns aspectos do circuito de Lyon
A marcha é o melhor dos desportos
E por aí fora. O papel macio envelhecido da revista encantava-me. Os anúncios eram deliciosos. Diverti-me a ler as críticas de um tal Dr. Breuillard aos saltos altos que as senhoras usavam e que, segundo ele, “deformam e martirizam o pé” e impediam as mulheres de praticar o salutar exercício da marcha. No final da revista, nova preocupação com as mulheres, mais anúncios com afirmações garantidas pela revista, mas desta vez com produtos de interesse exclusivamente feminino, tais como o Creme Simon, único para amaciar e embranquecer a pele, o sabão de beleza Erasmic que, além da garantia da revista, vem ainda com o testemunho da Mlle. Colonna Romano, do Teatro Francês, que afirma que a pele fica mais fina e aveludada, uma máquina de lavar roupa a vapor Titania… um dos últimos capítulos eram invenções dos leitores: um disco de celulóide, que se coloca no auscultador do telefone e que amplifica o som; uma engenhoca para apagar automaticamente a vela, quando ela estiver parcialmente consumida; uma rede para se poderem lavar as janelas em segurança… Continuo a folhear a revista, cheiro-a (aquele cheiro a cera de papel antigo), imagino o meu avô com 10 anos a lê-la, com aqueles olhos verde-água que ele tinha, o espírito curioso e irrequieto de auto-didacta, volto ao sumário e desta vez, a segunda história chama-me a atenção: Ce qu’il faut dépenser pour tuer un homme à la guerre. Leio de novo: O que é necessário gastar para matar um homem na guerra. Estranho o título. Seria tão politicamente incorrecto hoje… Vou para a página 158 e vejo que foi escrito pelo General Percin, antigo membro do Conselho Superior de Guerra. O artigo destaca-se, tanto pelo título, como pelo tema. O que tem a guerra a ver com ciência e vida? Bem, tem, com ciência e vida, ou como acabar com a vida de outro, neste caso, e quanto isso custa. É um artigo curto, de página e meia.

“Li, num jornal americano, que, para matar um homem na guerra moderna, é necessário gastar mais ou menos 75.000 francos. Esta cifra pareceu-me exagerada, por isso procurei verificá-la. As minhas pesquisas mostraram-me que o jornal americano estava aquém da verdade. A soma a gastar para matar um homem na guerra é com efeito o quociente de uma divisão, onde o dividendo é o que custa a guerra a um dos beligerantes e onde o divisor é o número de homens mortos do outro lado. Ora, a França gastou em 1870-1871 dois milhões de francos, mais ou menos, em custos de guerra propriamente ditos. Gastou mais um milhão para recuperar o seu material e para prestar socorro às vítimas da guerra, despesas que é apenas justo se incorporem no dividendo com os custos da guerra propriamente ditos. A França gastou ainda cinco milhões em indemnizações de guerra e mais dois milhões em juros deste valor, para pagamento e juros de dívidas, perdas de impostos, contribuições impostas pelo inimigo e manutenção do exército de ocupação da Alemanha. Mas esta terceira categoria de despesas é pouco provável que se repita em todas as guerras, por isso não entrará no dividendo. Pela mesma ordem de ideias, exponho a seguir as despesas relativas a outras guerras: guerra entre a Rússia e a Turquia (1877-1878), turcos: dois milhões; guerra entre a Rússia e o Japão (1905), russos: seis milhões. Por outro lado, o número de homens mortos ou que morreram dos ferimentos foram os seguintes: guerra entre a França e a Alemanha, alemães 28.600; guerra entre a Rússia e a Turquia, russos 16.600; guerra entre a Rússia e o Japão, japoneses 58.600. Donde resulta, que o preço de matar um homem foi: em 1870-1871, 105.000 francos; em 1877-1878, 75.000 francos; em 1905, 102.000 francos. Números iguais ou superiores aos comunicados pelo jornal americano. Quando iniciei esta pesquisa, esperava que os resultados fossem crescentes, entre 1870 e 1905. Com efeito, por um lado, os engenhos de guerra foram-se aperfeiçoando e o seu custo aumentou. Por outro lado, os progressos na arte de matar têm vindo a ser sempre ultrapassados pelos progressos na arte de defesa, de modo que a proporção de homens mortos ou feridos num hora de combate sem dúvida que diminuiu. Esta proporção era de 6%, sob Frederico O Grande, 3% sob Napoleão, 2% em 1870, 0,5% em Mandehouric. Mas, em 1870, não houve senão uma dezena de grandes batalhas. Os exércitos imperiais combateram pouco entre Sedan e Coulmiers. A luta foi retomada em Dezembro, mas com muito menos empenho que no início. Durante estas acalmias, os homens gastavam, mas não matavam. Em Mandehouric, pelo contrário, batalhavam quase todos os dias. As batalhas duraram 15 dias em Moukden, 12 dias em Cha-Ho, 8 dias em Liao-Yang. Este aumento da duração das batalhas compensou a diminuição do número de homens mortos ou feridos numa hora de combate. Por isso é que o preço de custo de matar um homem não foi mais elevado em 1905 do que em 1870. É por isso impossível prever com exactidão o que será necessário gastar para matar um homem na próxima guerra. A soma depende da fisionomia da luta. Se houver batalhas quase todos os dias, como em Mandehouric ou nos Balcãs, o preço de custo de um homem morto será próximo do indicado pelo jornal americano. Se as batalhas forem como em 1870, com intervalos mais raros, esse preço poderá aumentar numa proporção apreciável. E certamente que não diminuirá. Aquilo que mais matará e que reduzirá realmente os efectivos na guerra, não será nem o fuzil nem o canhão, será a fadiga, o tifo ou a cólera. Em 1870, entraram nos hospitais 380.000 alemães os quais, mesmo que não tenham morrido de doenças, não deixaram de ficar indisponíveis durante um certo tempo. A guerra da Crimeia custou aos exércitos aliados quase quatro vezes mais mortos pela doença do que pelo fogo das armas. Esta proporção foi de 3 para 1 com os russos em 1877-1878; não passou de 1 para 2 entre os japoneses, graças à sua excelente higiene durante a guerra de Mandehouric. Por isso conto mais que, na próxima guerra, se façam progressos na higiene e na arte de evitar as mortes sob fogo, do que com progressos na área da balística e meios de destruição.”

Será que o General ainda estava vivo, quanto as bombas caíram sobre Hiroxima e Nagasaki? E surpreende-me que não tenha somado ao dividendo os homens mortos do seu lado. Mas o mais surpreendente é o texto em si. A franqueza, crueza e mesmo brutalidade do texto, das preocupações expressas no texto. Leva-me a interrogar-me sobre quem seriam os leitores da revista. A revista custava 1 franco francês. Era, em primeiro lugar, para leitores e haveria muitos, em 1914? A Revolução Francesa não tinha em século. Logo, era para uma elite. Velha? Nova? Um misto de ambas? Este texto seria impensável hoje. Porquê? Porque as pessoas lêem. Será que lêem? Bem, alguns lêem, os suficientes, ainda, para que ainda seja impensável um texto destes nos nossos dias. Era também uma chamada de atenção aos curiosos da ciência e tecnologia emergentes, daí aparecer numa revista científica. Procura subtil de novos talentos? Não tão subtil assim. A guerra de 1914-1918 tem início oficial no dia 1 de Agosto, com a Alemanha a declarar guerra à Rússia e esta revista foi publicada a 17 do mesmo mês. No dia 3 de Agosto a Alemanha declara guerra à França e invade a Bélgica. No final, esta guerra provocou 10 milhões de mortos e 20 milhões de feridos. Foi utilizado armamento químico pela primeira vez. Só do lado da França morreram 1,4 milhões de soldados e 3 milhões de feridos. O que diria destes números o General Percin? Bem, dele não reza a história. Ou morreu ou foi dispensado.

O que é que mudou, de 1914 para hoje? Para além do General Percin se ter enganado redondamente em relação aos meios de destruição, só vejo uma outra diferença significativa: os leitores. Isto deveria fazer-nos reflectir a todos. E talvez, em nome de todos os mortos franceses, turcos ou russos que não entraram em cima nas contas do General, devêssemos, de uma vez por todas, acabar com todas as guerras.


folhas soltas

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