as almas, os pássaros

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terça-feira, 30 de junho de 2009


Ainda não parti, mas a minha viagem já começou. A alma lança-se primeiro para a frente, na antecipação do vôo. A mente segue-a, receosa, medrosa, ainda hesitante. Assim se vai abrindo o caminho que me vai separar de ti. Colocar o meu pé físico nos primeiros centímetros desse caminho vai ser uma das coisas mais difíceis que já fiz. O meu corpo não quer separar-se de ti. Nem a alma, mas essa, essa anda sempre a esvoaçar de um lado para o outro. Vai e volta, vai e volta. Nem sabe que vai para sempre. Sabe o quê, a alma? A alma é uma tonta. Feita apenas de voo, emoção e luz e sombras, sabe lá para onde vai, ela. Vai para onde a mandam, ora essa. Vai com o corpo, porque está presa a ele. A mente é que tem medo, mas foi a mente que decidiu. A mente protege em primeiro lugar o corpo. E o corpo, ultimamente, fora muito atacado pelas bicadas da alma, que se queria libertar. A alma enterrou-lhe o bico e as garras e começou a destruir o corpo. O corpo não se mexe. Ou melhor, não se mexia. Mas a mente começou a ver que a coisa estava a ir longe demais. Sentiu o corpo a falhar, as células a avariarem e a errarem a programação, a respiração cada vez mais ofegante, a visão a nublar-se, a circulação a interromper-se em vários pontos. Por isso, olhou no futuro e mudou-o imperceptivelmente. Poucos sabem, mas quando o presente acontece, não é causado pelo passado. É causado pelos nossos pensamentos colocados no futuro. O tempo, ao contrário do que se pensa, tem dois sentidos. O corpo pode percorrer apenas um, mas a mente percorre os dois, infindavelmente, sem mesmo se dar conta. Quando a mente olhou para o futuro e viu a morte do corpo, assustou-se e criou um futuro diferente. Do futuro para o presente chegaram então novos acontecimentos, devagar, ao princípio, depois numa sucessão cada vez mais rápida. Embateram um a um, primeiro como cascalho, depois pedras, depois pedregulhos, contra os muros que rodeavam o corpo, até que estes caíram. O caminho abriu-se. O caminho que me separa de ti. Onde irei dar em breve o primeiro passo. A alma é uma tonta, mas acaba por conseguir sempre o que quer. O corpo prende a alma, a mente é que decide, mas afinal a alma é que manda. Essa tonta. Não sabe para onde vai, só sabe que não quer ficar. Sofre e nem sabe porquê. Morde e arranha, quando enlouquece e pouco lhe importa o mal que faz ao corpo, porque afinal, para ela, o corpo não passa de uma prisão. Não fosse a mente e a alma matava o corpo em três tempos. Talvez num tempo apenas. Como um traço de pincel flutuante ou um lenço de seda puxado pelo vento na direcção de um caminho que ainda mal se abriu, branco, tão branco, como uma fina tela pousada no chão, mal sabe a alma o que a espera. Quando sentir a tua falta, quererá voltar. Mas será tarde demais. O corpo só pode percorrer o tempo num sentido e também os caminhos abertos pela vida não têm regresso. Não sei como a mente e o corpo irão conseguir acalmá-la, à tonta da alma, quando ela perceber que se quebraram os laços entre ela e a tua alma. Neste momento ainda está entrelaçada na tua. Não sabe que vai separar-se. Chilreia, alegremente, numa estúpida emoção sem sentido, que a minha mente se apressa a tentar esmagar. Em vão. A mente é mais densa do que a alma, tal como o corpo é mais denso que a mente. Mas enquanto a mente tenta acertar com um tabefe na alma tonta, esta vai-se distraindo e por vezes, até já se separa da tua, esvoaçando para um lado e para o outro. A tua alma está presa em ti, mas a minha alma não corre para mim, que ainda aqui estou, traça pinceladas coloridas no caminho branco e canta. À medida que o caminho se vai abrindo, com pinceladas e mais pinceladas de vôo, o meu corpo prepara-se para partir também. Eu também vou ter de ir com ele. Estou presa à minha alma. Sou ainda menos densa que ela. Pensam que ela é tonta? Parece tonta, mas não é, sou eu que a controlo. Mas nada decido e nunca intervenho. Nem sei quem sou. Desdobro-me em multiplicidades infinitas. Interrogo-me. Tão sómente.

segunda-feira, 29 de junho de 2009


Por vezes saio do rio, trepo pelas margens da Cidade acima, escorrendo água doce. Ninguém parece surpreendido, talvez porque nas cidades, nestas metrópoles que são como manicómios ou gigantescas masmorras ao ar livre, nada seja estranho demais. Nunca me afasto muito da margem, não posso perder de vista o Mar, a Floresta, desencarno longe deles. Gosto apenas de observar as pessoas, enquanto descanso. O cheiro da maresia chega até mim. A chuva limpa-me, cai no verão, agora, em grandes chapadas de água fresca, nessas alturas não há ninguém na rua, porque é verão, não há guarda-chuvas, refugiam-se nas portas das lojas e dos cafés, nas paragens de autocarro, não houve tempo para se adaptarem. Quando vem o sol, algumas vêem para perto do rio, homens com canas de pesca, pares de jovens namorados, adolescentes de patins, skate ou bicicleta, joggers obcecados com a boa forma física, homens a passearem os cães, as trelas a penderem displicentemente da mão direita, alguns casais idosos, o rio está ali, uma longa serpente prateada ou cor de safira ou uma enorme chapa de oiro rubro ao crepúsculo, cavou aquele enorme, profundíssimo leito ao longo das eras, poucos apreciam a sua força, a sua determinação, a sua paixão, água a perfurar terra, a rebentar com pedra, a galgar colinas, nasceu algures, tão frágil, o rio é assim, se não chegar ao mar morre algures, num pântano como a maior parte das pessoas, não encontram o seu mar, perderam toda a chuva, descruzaram-se de todos os riachos, quebraram com cada obstáculo. O rio devia ensiná-las, como cada gota de chuva é um ensinamento, cada riacho que se cruza connosco nos fortalece, como as pedras e troncos que surgem no percurso nos ajudam a derrubar montanhas, o rio sabe para onde vai. Choro as minhas lágrimas para dentro do rio, ele já não precisa delas, mas é o melhor lugar para as lágrimas, um rio assim. Depois mergulho nele uma vez mais, digo adeus à Cidade, e flutuo de novo, também sei para onde quero ir, mas de nada me vale toda a chuva que me choveu por dentro e por fora, nem todos os outros riachos, nem os pedregulhos e troncos das minhas marés interiores, por vezes, penso, enganei-me no mar, não era este mar, que me foge. Penso, pelo menos tenho o rio.

terça-feira, 19 de maio de 2009

Sempre estiveram vazias, as mãos. Por isso, não posso atirar nada. Mas posso desligar a luz. A minha luz. De qualquer forma, a luz desligou-se sozinha. Sei que é temporário. Ilumino-me facilmente. Aliás, é preciso muito para que a luz se apague em mim. Muito ou pouco. Tanto ou tão pouco como para me iluminar. Quando olho para trás, sei que é pouco. Agora parece muito. Parece o mundo inteiro contra mim ou eu contra o mundo inteiro. Ainda bem que posso andar para a frente e olhar para trás. Não gosto de estar onde estou agora. Dói. É um mau sítio. Por isso, por vezes recuo, depois avanço, olho para a frente, olho para trás, agora está escuro, a luz apagou-se, mas a alma acender-se-à de novo no futuro, quer queira quer não. Não há opção. É assim mesmo. Olho para a frente e para trás e sei como tudo isto é ridículo, como estou a desperdiçar tempo. Aprende. Mas nunca aprendi nada quando a luz se desliga. Aprende o que é a escuridão. Já sei. Sempre o soube. Porque tenho que regressar sempre a este ponto? Conheço o abismo, caí nele vezes sem conta. O que falta, de que é que me esqueci? Não sei. Neste estado, não vejo nada. Fecha os olhos e sente. Tê-los abertos, de facto, de nada serve. Sentir o quê? Não quero sentir isto. Tens medo. Admite-o. Simplesmente, não quero. É medo. E se for? Sabes o que é ser queimada viva? Sabes o que é ser entregue por aquele em quem mais confiavas? A luz apaga-se. Toda a luz. Tens de ser mais discreta. Isso já aprendi. Confronta as memórias. 

Inês não respondeu. Mas murmurou: a escuridão é luz suspensa, inerte, como pulmões que pararam de respirar. Não respira. Onde há um respirar, há luz. A escuridão espera, dela nascem as coisas. Mas há lugares na escuridão que estão demasiado quietos. Adormecidos, estagnados, nesses lugares não nasce nada, são abismais. Não quero ir a esses lugares. Não queres saber o que se passa lá? Está a crescer, nada se move lá. Não quero.



Sempre estiveram vazias, as mãos. Por isso, não posso atirar nada. Mas posso desligar a luz. A minha luz. De qualquer forma, a luz desligou-se sozinha. Sei que é temporário. Ilumino-me facilmente. Aliás, é preciso muito para que a luz se apague em mim. Muito ou pouco. Tanto ou tão pouco como para me iluminar. Quando olho para trás, sei que é pouco. Agora parece muito. Parece o mundo inteiro contra mim ou eu contra o mundo inteiro. Ainda bem que posso andar para a frente e olhar para trás. Não gosto de estar onde estou agora. Dói. É um mau sítio. Por isso, por vezes recuo, depois avanço, olho para a frente, olho para trás, agora está escuro, a luz apagou-se, mas a alma acender-se-à de novo no futuro, quer queira quer não. Não há opção. É assim mesmo. Olho para a frente e para trás e sei como tudo isto é ridículo, como estou a desperdiçar tempo. Aprende. Mas nunca aprendi nada quando a luz se desliga. Aprende o que é a escuridão. Já sei. Sempre o soube. Porque tenho que regressar sempre a este ponto? Conheço o abismo, caí nele vezes sem conta. O que falta, de que é que me esqueci? Não sei. Neste estado, não vejo nada. Fecha os olhos e sente. Tê-los abertos, de facto, de nada serve. Sentir o quê? Não quero sentir isto. Tens medo. Admite-o. Simplesmente, não quero. É medo. E se for? Sabes o que é ser queimada viva? Sabes o que é ser entregue por aquele em quem mais confiavas? A luz apaga-se. Toda a luz. Tens de ser mais discreta. Isso já aprendi. Confronta as memórias. Porque é que ainda o queres? 

Inês não respondeu. Mas murmurou: a escuridão é luz suspensa, inerte, como pulmões que pararam de respirar. Não respira. Onde há um respirar, há luz. A escuridão espera, dela nascem as coisas. Mas há lugares na escuridão que estão demasiado quietos. Adormecidos, estagnados, nesses lugares não nasce nada, são abismais. Não quero ir a esses lugares. Não queres saber o que se passa lá? Está a crescer, nada se move lá. Ainda o quero, porque ele e eu somos um só.


sábado, 10 de janeiro de 2009

Um dos seus fornecedores tinha-lhe deixado, nessa manhã, o pequeno calendário, em formato de cartão de crédito. O seu primeiro impulso fora deitá-lo fora, mal o fornecedor virara as costas. Mas, sem saber porquê, acabara por colocá-lo no bolso do casaco. Chegado a casa, um pequeno estúdio no último andar de um prédio debruçado sobre o mar, tirara o casaco e a data surgira-lhe diante dos olhos, a dançar, como uma visão. Vinte e oito de Abril de dois mil e oito. Retirou o calendário do bolso do casaco, enquanto descalçava os sapatos. Não o largou enquanto se dirigia ao pequeno bar, retirava um copo e o enchia de Jack Daniels. Duas pedras de gelo retiradas do congelador. O copo numa das mãos, o calendário na outra, dirigiu-se à varanda, que era o melhor que a casa tinha e abriu as janelas de par em par. O mar era todo ele marés vivas e as nuvens rolavam pelo céu a alta velocidade, como fardos prateados, brancos e cinzentos de algodão. Sentou-se na cadeira, bebeu meio copo e fitou de novo a data. Tinham-se passado quinze anos e Tomás não sabia como. O que é que interessa o que pode ou não acontecer? O tempo não perdoa. Após se ter ultrapassado o cume da montanha a que chamamos vida, para baixo é sempre a escorregar. É tão rápido, que mal temos tempo de respirar entre o cair dos anos. Este ano tinha ido às Caraíbas, mas só conseguira pensar no sonho de ambos, do qual ambos se tinham afastado, seguindo caminhos diferentes. Escrever, precisava de escrever, há anos que não escrevia. Continuava a precisar do mar. Aprendera a sobreviver sem quase tudo o que era importante, mas não sobreviveria sem o mar. Nada o prendia. Nem mulher, nem filhos, nenhum compromisso, sempre achara que esse tipo de responsabilidade não convinha à sua loucura. Mas a vida dera-lhe a volta. Começara por colocar uma pedra no caminho, depois agarrara-lhe um calcanhar. Quando dera por ele, já estava envasado.
Os neurologistas dizem hoje que o amor não passa de química cerebral. Uma cientista dizia outro dia num programa televisivo: “Não é suposto durar. Faz-nos sentir maravilhosamente bem. É uma maravilhosa descarga de hormonas, o objectivo é o acasalamento com a pessoa certa (os genes certos). Mais tarde, as hormonas mudam e surge apenas uma sensação calma de bem estar. É o que chamamos amor. Não passa de um truque…” Claro que a cientista era americana…
Se assim é, pensava Tomás, o olhar vagueando entre o mar e o calendário, o céu e as memórias, porque é que há amor sem bem estar? Amor que dura anos e anos e cujos momentos de bem-estar se tornam cada vez mais raros, mais fugidios… A última vez que estivera com ela não sentira nada, nenhum deslumbramento, nenhuma descarga hormonal. Apenas amargura, desilusão. No entanto, continuava a preferir estar ao lado dela do que ao lado de outra pessoa qualquer. Pertenciam um ao outro, percebia-o agora claramente, com uma precisão e nitidez de gume. Há quinze anos que viviam separados. Não havia estímulo hormonal. Não havia recompensas. Já não partilhavam nada. Tinham mudado tanto os dois que às vezes se interrogava se ainda sabia quem ela era. Mas que o amor existia ainda, não tinha nesse momento dúvida alguma. Bebeu o resto do whisky de um só trago e lembrou-se daquela cena do filme Le Grand Bleu: “O que é o amor?”, perguntou um amigo a outro. “Amor é aquilo que nos mantém juntos.” Love is what keeps us together. Dito por um siciliano, claro. Mantém-nos juntos, apesar de separados. Apesar da falta de estímulos, da falta de recompensas. Um amor destes nunca morre. Por vezes transforma-se. Por vezes, na impossibilidade de ser canalizado, pela ausência, para aquela mulher, estende-se para os outros e começa a crescer como um rio por esse mundo fora… abrangendo tudo e todos, mas nunca esquecendo onde está a sua nascente.
Afinal, neste mundo, sussurrara ela uma vez, a única coisa capaz de nos salvar é o amor. Não interessa que tipo de amor é, se é o de um pai pelo seu filho ou o de um homem por uma mulher, ou o amor por todas as coisas, o amor pela vida, o amor universal. Amar, amar, não importa o quê, não importa a quem.
Só o amor cura tudo, como água do mar.

segunda-feira, 20 de outubro de 2008

Bateu à porta. Mais um sarcasmo. Como se necessitasse que lhe abrissem a porta. A um sinal de Sophia, a luz desapareceu. Dirigiu-se à porta, os olhos escuros a emitirem uma ténue luz violeta, e abriu-a. O seu único filho estava diante dela, num corpo humano alto, belo, o rosto perfeito, os lábios talvez demasiado grossos, demasiado encarnados.
- Mãe… murmurou, com a sua voz rouca e sedutora.
O lobo negro ergueu-se, o pelo eriçado, a rosnar. Pedro olhou-o, com desprezo.
- Controla a tua criatura. Ou não sabes tu que eu, se quisesse, a destruiria num nanossegundo?
- Sim, Pedro., respondeu Sophia, calando Omael com o pensamento. Poderias fazê-lo. Mas surgiria outro no seu lugar. E mais outro. E ainda outro. Não podes tocar-me.
Um esgar de ódio contorceu-lhe a expressão. Ele sabia.
- Como queiras. No entanto, vê-lo sofrer não seria agradável para ti. – E, mudando habilmente de assunto – Onde está o teu Arcanjo?
- O Arcanjo morreu, quando me traiu.
- Mãe… Sophia interrompeu-o, cansada.
– És um falso deus, Pedro. Nada sabes da luz, dos éons ou dos arcanjos, embora estes últimos tenham sido iniciados por ti. Nem tens compreensão alguma do que seja a morte. Quanto aos Humanos, tens-te esforçado, filho, mas em vão. Viraste-os uns contra os outros, vezes sem conta, mas ainda não conseguiste controlá-los.
- Como te enganas, minha Mãe. Olha à tua volta. Usaram os cadáveres dos anjos caídos como energia. Libertaram de novo a escuridão. Quase toda a água do planeta está envenenada. Quando não tiverem água nem comida, virar-se-ão para mim. Duvidas? Não os conheces ainda?
Sophia estremeceu e preparou-se. Viera, como habitualmente, só para a atormentar.
- Queres que enumere quantas criaturas foram extintas o ano passado? Quanto caos foi criado? Tirou do bolso interior do casaco um enorme charuto, cortou-lhe a ponta com os dentes e acendeu-o com vagar. Inspirou profundamente e, deixando que o fumo lhe saísse voluptuosamente pelo nariz, boca e orelhas, continuou:
- As florestas morrem, a comida e água já está envenenada e não sei se reparaste, agora culpam os fumadores… como eu, dos tumores que lhes crescem no corpo. Farão o que eu disser, Mãe. Como fizeram outros no passado. Pertencem-me, de corpo e alma.
- Ao fim de todos estes milhões de anos, Pedro, não capturaste um único pedaço de espírito, um só micrograma de luz.
Os olhos de Pedro escureceram ainda mais, quando viu o corpo de sua Mãe desaparecer e fundir-se com a luz, emanando raios violeta, dourados e brancos. Estendeu a mão e Omael ganiu. Desfez-se em chamas demasiado rapidamente. Assim que Pedro desapareceu, Sophia regressou, os longos cabelos cheios de chuva, os braços carregados de sementes e, sobre os tições retorcidos de Omael, nasceu mais um lobo negro. Com um longo suspiro, preparou-se para mais uma discussão, desta vez com Miguel.


domingo, 20 de abril de 2008

Atlântico oceano, mãe, pai.

De uma terra à outra o azul profundo. Ondas de prata correm de terra a terra e entre elas e o céu sopram os ventos. Batem nos rochedos, de terra a terra, ilha a ilha, peito a peito. Os rios desistem e transbordam. Derretem as neves nos limites da vida, o oxigénio precipita-se no espaço por entre a aurora boreal. As árvores queimadas, os pulmões param. Dói respirar, as asas partidas no chão. Pois agora ergo-me e danço, rodopio no vento, recolho as folhas e as asas e os olhos dourados dos lobos mortos, salto de onda em onda, atravesso o mar todo e vejo-me nas estrelas.

Sou a vida. Sobreviverei no átomo, respirarei no vazio, sem pulmões.



domingo, 20 de setembro de 1987


Flutuo para trás e para a frente na corrente, como uma folha arrancada da árvore-raíz. A foz e a luz aproximam-se e afastam-se consoante as luas e as marés, suspiro pelo mar limpo, é outono no meio do verão e perdi-me, o mar não chega, não chego ao mar. Recordo-me do espaço e tempo mais dolorosos desta vida que não quis ou será que quis? Dezassete anos. Estava só. Antes, durante e depois da minha morte, estava só. Sei o que senti naquela noite. Foi a noite em que deixei de confiar. Não estava só, simplesmente não estava ninguém ali. O mais estranho para mim agora é que nunca ninguém me fez pergunta alguma. Nunca ninguém perguntou: porque fizeste isso? Foi como se nunca tivesse acontecido. Depois as memórias apagam-se e regressaram as outras, as não-memórias, preencheram o vazio que ficou. Preferia não as ter. No meio do rio, olho para as margens, do lado direito a Cidade, do esquerdo a Floresta. Flutuo com a espada na mão, sempre a espada, aquela com que vim ao mundo, não posso largá-la. Quando descobri que era diferente, era tarde demais para falar no assunto fosse a quem fosse. Quando era muito criança, limitava-me a berrar a plenos pulmões até que certas pessoas saíssem da casa onde cresci. Mais tarde, fugia, fugia para os ramos das árvores, onde ficava escondida até que as pessoas saíssem. Depois aprendi a controlar a... visão. Tornei-me sábia e silenciosa. Passei a invocar nos outros apenas respeito, em alguns inveja, um pouco de medo, talvez. Estava só, nunca esteve ninguém neste sítio onde estou ou em nenhum dos sítios onde estive anteriormente. Como agora, na foz deste rio, estou só. Às vezes é tão grande o peso da espada que sinto que vou afundar-me nas águas turvas. Outras vezes, é a espada que me mantém à superfície. O seu peso varia. Olho para a Cidade, tantas pessoas de um lado para o outro, quase nunca olham para o Rio, pequenas, apressadas, silenciosas, umas alegres, principalmente as mais jovens, crianças, estudantes, outras tristes, algumas tão tristes que dói olhar para elas. Quase que fico feliz por estar aqui e não estar no lugar delas. Evito olhar para a Floresta. A Floresta, vejo-me a subir a margem esquerda do rio e a desistir de sair a foz, a desistir do mar. Não olho para a Floresta, ainda. No entanto, já não acredito, simplesmente já não acredito que algum dia chegue ao mar ou que o mar venha até mim, buscar-me ao rio, onde flutuo para a frente e para trás, eternamente até dizer basta, basta de luas, de marés, de esperas infinitas. O mar não vem. Porque estou aqui?

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