as almas, os pássaros

as almas, os pássaros

as almas, os pássaros

as almas, os pássaros

quarta-feira, 29 de julho de 2009


Compreendo cada vez melhor que cada um de nós cria o seu próprio mundo. Ligados. estamos todos ligados, mas somos como Ilhas. não conseguimos chegar ao que nos liga: amor, separados por: ódio, medo, barro. o meu mundo é diferente do Teu e vivemos lado a lado. não consigo ligar-me à tua Ilha, crio Uma, esta é diferente, Ideal, não és Tu, Tu não estás mais aqui. é de madrugada, quando me refugio no sono-sonho onde te encontro, a Ti. estás sempre comigo em todas as Madrugadas esvaziadas da matéria-fronteira, sombras, onde apenas o meu Desejo impera, falo Contigo, sorrio para Ti, Tu sorris para mim, Tu, que mal sorris, sorris, adormecemos abraçados, Um. os dias, as horas, os anos, já nada me dizem, vivo para as madrugadas Contigo, onde o meu Mundo se torna real e o meu Mundo és Tu: aí, Mulher-plena, deslizo pela Foz e saio para a Luz do Mar. regressar à foz é-me cada vez mais difícil, um dia abandono-me à Loucura, tão frágil a fronteira, prefiro as sombras, idealizo-Te? não, és Tu sem mácula, sem dor, como vieste ao mundo a primeira vez, não nesta vida, a primeira de todas, o que vejo em Ti e desejo absolutamente e está fora do meu alcance, Tômâ. e no entanto, todas as madrugadas, chego lá, a Ti, e não há mácula nenhuma, é apenas Fogo e Terra a derramar-se na Água, que então se ergue e dança no Vento, Um.

terça-feira, 28 de julho de 2009


Quando passa o tempo, as coisas
retornam aos elementos. E as cria-
turas. Para a transformação
final. Mas nem o fim
permanece. O cardume dos lagos
que morre embranquecido
por fim é de água. Os boquilobos
multicolores na beira das áleas
caem na terra e são terra.


Fiama Hasse Pais Brandão, in Três Rostos - Ecos


O rio não dialoga senão pela alma
de quem o olha e embebeu a sua alma
de olhares ribeirinhos no passado
ou à flor do pensamento no futuro.

É um país que fala dentro da fronte,
olhando as naus, navios, barcos pesqueiros
e o trilho das famintas aves pintoras
de riscos negros, que perseguem o odor
das redes cheias, as outrossim poéticas
familiares gaivotas. É uma costa inteira
de imagens de gaivotas dentro dos olhos.
São bocas a pensar razões da vida,
gargantas já caladas pela nascença e morte,
quando entre si se vêem ou juntas olham
o mar dos seus próprios dias. São cabeças
velhas de labutar, entre dentes cerrados,
as palavras mudas de um ofício no mar,
antigas de silêncio, como se no esófago
guardassem há muito a sabedoria de ir
enfrentar o mar, transpor o mar, estar.

Tal como um rio o mar só quer falar
pela dor e alegria de alma com que o chama,
há séculos na orla, um povo mudo,
com as palavras presas, guturais sem fôlego,
dentro de si, tão firmes no palato, articuladas
na língua interior. E o mar é quieto ou bravo,
e a alma tensa de uma paixão secreta,
escondida atrás da boca, e sempre aberta,
tal como as pálpebras diante desta água.

Só a alma sabe falar com o mar,
depois de chamar a si o Rio, no imo
de cada um, recordações, de todos
os que cumprem na linha da costa o seu destino.
O de crianças, berços nascidos à beira-mar,
aleitadas por água marinha bebida por rebanhos,
alimentadas por frutos regados pela bruma.
Mesmo quando petroleiros, se olharmos o mar,
passam sem som na glote, para nós mesmos dizemos
que o tempo já findou das caravelas outrora
e dentro do nosso sangue passa o tempo de agora.

Também as varinas, fenícias áfonas no poema
que as canta, sabem as formas, pelo olhar,
de serem mulheres com peixes à cabeça.
E os pregões que eu calo, revendo-as, eram outra
língua do mar, os nomes com que nos chamam
para o seu modo de levar entre as casas o mar.
Mas as dores não as ecoa o mar, nem mesmo
as de poetas, só as pancadas das palavras
no encéfalo parecem ser voz do mar.

É uma nação única de memórias do mar,
que não responde senão em nós. Glórias, misérias,
que guardámos por detrás do olhar lírico
e da língua, a silabar dentro da boca.
Nunca chamámos o mar nem ele nos chama
mas está-nos no palato como estigma.


Fiama Hasse Pais Brandão in Cena Vivas, Relógio d´Água

domingo, 26 de julho de 2009


Nos traços quentes e perecíveis de um rosto a água deixa sulcos profundos e escuros, antiga perenidade gravada no vivo dos ossos malares, que os dedos frios tentam apagar. Não tem conserto, a água não pára, jorra de um abismo antigo, sem memória, vai desfazendo os ossos, a carne, a pele, vem de dentro, do fundo, do antes, corroendo o que respira, os ossos ardem? não sei, são duzentos e seis, a água é travada nos ombros, como se estes fossem dunas rebeldes, poderias consertar-me agora? dos ombros para cima, onde as dunas travaram a água, poderias consertar-me? não. o estrago é tão perene quanto a alma. por isso, com tudo o que sobrevive para lá das dunas danço, com tudo o que morre, canto.


sábado, 25 de julho de 2009



Um dia renasceu e tinha um irmão. Por causa desse irmão, esqueceu-se também de quem era. Cresceram juntos. Nas horas livres, corriam pelas praias atrás das gaivotas e dos caranguejos, deslizavam nas rochas cobertas de algas verdes e macias, coleccionavam conchas. Viviam na ponta mais ocidental da terra, para além da qual só havia mar. Uma terra ainda livre e intocada. O povo era rude e taciturno, a paisagem agreste, a comida escassa. À medida que crescia, recuperava os seus dons. Aprendeu a curar com mãos e plantas. Os campos tornaram-se férteis e a água doce brotou das rochas. As flores desabrochavam nos caminhos que pisava. Não havia lobo que comesse uma ovelha na sua presença. Quando atingiu os quinze anos, tal como a água brotara das rochas, também três rios prateados nasceram entre os seus cabelos negros. E foi então que chegaram os padres. Vinham vestidos de escuro, com capuzes e cruzes e rodeados de cavaleiros vestidos de ferro. Quando os viu pela primeira vez, mil pássaros enlouqueceram dentro dela e a sua energia estilhaçou-se, como vidro quebrado.

- O que tens? Perguntou Idevor, a remexer na areia com um pau.
Viria limitou-se a abraçar os joelhos com as mãos e nada disse. O mar espraiava-se diante dos seus olhos, prateado, ondas brancas quebravam-se lá mais longe, o céu carregado a ameaçar temporal. Mas os olhos escuros do irmão fitavam apenas a areia revolta nervosamente pelo pau.
- Não queres ir à missa, no domingo? Mas o pai diz que tens de ir.
- Não percebo nada do que eles dizem., respondeu Viria finalmente. Falam em latim. Porque é que tu vais? Também não percebes nada.
Tentou abraçar o irmão, mas este levantou-se, subitamente, rejeitando os seus braços magros e atirando furiosamente o pau na direcção das ondas.
- Dizem que és bruxa!, atirou-lhe, a voz alterada. E afastou-se rapidamente, deixando-a completamente só. Como quase sempre estivera.

O traje de serapilheira feria-lhe a pele delicada. Os longos cabelos negros tinham sido primeiro cortados e depois arrancados com ódio, mas nem mesmo assim tinham desaparecido os três rios de prata que lhe tinham nascido um dia da alma, que mais pareciam agora três cordões de estrelas. Olhou para trás uma última vez, para o irmão.
- Idevor… a voz falhou-lhe, espantada, na garganta.
- Esse já não é o meu nome!, respondeu-lhe o irmão, a voz seca, os olhos negros a espreitarem por entre o capuz de monge. Os dois soldados, vestidos de ferro da cabeça aos pés, torceram-lhe os dois braços, arrastando-a tão violentamente que lhe deslocaram um dos braços. Mas ela não tirava os olhos do irmão. Pensou Viria também nunca foi o meu nome. Murmurou para si mesma, uma vez mais, o nome do irmão. Idevor. Mas nenhum som saiu da sua garganta. O irmão atirou o capuz para trás, fitando-a e, para seu grande espanto, fitava-a com um profundo amor, como se fosse o seu salvador. Um amor rasgado pela dor. Como estás errado, Idevor… meu Tômânem com espadas, nem com palavras, nem com cruzes ou fogueiras… não adivinhaste ainda o único caminho para a Luz? Tu, que és Luz? E foi este o seu último pensamento, pois um dos guardas deu-lhe um pontapé tão forte na cabeça, que desmaiou. O que sofreu de seguida distorceu-lhe a alma, que só despertaria de novo passados mais de mil anos.


terça-feira, 21 de julho de 2009



Esta é a Hora do Chumbo—
Memória, se prolongado,
Como pessoas que Gelam, recolhem a Neve—
Primeiro—Arrepio—depois Torpor—depois o deixar ir—


[Emily Dickinson]

Entre o torpor e o deixar ir
existe um limbo de sinsépalos cálices
como mãos geladas
Estéril perianto de folhas maceradas

domingo, 19 de julho de 2009


Pain has an element of blank;
It cannot recollect
When it began, or if there were
A day when it was not.

It has no future but itself,
Its infinite realms contain
Its past, enlightened to perceive
New periods of pain.


Tradução:

A dor tem um elemento de branco;
Não consegue recordar-se
Quando começou, ou se houve
Um tempo em que não era.

Não tem futuro a não ser ela própria,
Os seus reinos infinitos contêm
O seu passado, iluminado para reconhecer
Novas eras de dor.


There's a certain slant of light,
On winter afternoons
That oppresses, like the weight
Of cathedral tunes.
Heavenly hurt it gives us;
We can find no scar,
But internal difference
Where the meanings, are.

None may teach it anything,
'T is the seal, despair,
An imperial affliction
Sent us of the air.

When it comes, the landscape listens,
Shadows hold their breath;
When it goes, 't is like the distance
On the look of death.

Tradução:

Há uma certa inclinação na luz,
Nas tardes de inverno
Que oprime, como o peso
Da música das catedrais.
Uma dor celestial nos traz;
Não deixa cicatriz,
Mas uma mudança interior
No lugar dos significados.

Ninguém lhe pode ensinar algo,
É o selo, desespero,
Uma aflição imperial
Que nos cai do ar.

Quando chega, a paisagem escuta,
As sombras sustêm a respiração;
Quando se vai, é como a distância
No olhar da morte.


After great pain, a formal feeling comes—
The Nerves sit ceremonious, like Tombs—
The stiff Heart questions was it He, that bore,
And Yesterday, or Centuries before?

The Feet, mechanical, go round—
Of Ground, or Air, or Ought—
A Wooden way
Regardless grown,
A Quartz contentment, like a stone—

This is the Hour of Lead—
Remembered, if outlived,
As Freezing persons, recollect the Snow—
First—Chill—then Stupor—then the letting go—


Tradução:

Após grande dor, surge um sentimento formal
As Têmperas sentam-se cerimoniais, como Túmulos
O rígido Coração questiona, foi Ele, que suportou,
E Ontem, ou Séculos atrás?

Os Pés, mecânicos, rodam
Da Terra, ou Ar, ou Dever
Num caminho Lenhoso
Descortesmente aberto,
Um contentamento de Quartzo, como uma pedra

Esta é a Hora do Chumbo
Memória, se prolongado,
Como pessoas que Gelam, recolhem a Neve
Primeiro—Arrepio—depois Torpor—depois o deixar ir—

sábado, 18 de julho de 2009


Porque há dias assim, em que me sinto cansada e arrasto a alma fendida pelo chão, com a fúria a gritar na outra mão, quando vejo o que fazem aos meus irmãos.


quinta-feira, 16 de julho de 2009


A desidratação torna-nos quebradiços. Podemos partir-nos em milhões de pedaços e nem dar por isso ou tal ser extremamente doloroso. Para lidar com a desidratação temos de a enfrentar como uma desconstrução e não aproveitar nenhum pedaço daquilo que se partiu. O cálice parte-se, sim. Mas era um cálice de terra, Inês. Barro. Era um cálice imperfeito. Temos de reconstruir-nos, agora, e sim, podes usar o barro, mas tens de o amassar com luz. Inês escutava Alaïs atentamente, o corpo trémulo e dorido, tinha frio e tinha medo, mas escutava-a. Sabia tudo o que tinha de largar e não era fácil. Já não tinha mais lágrimas, rios e mar estavam secos. A luz existe na escuridão, tal como a eternidade existe no tempo. Com o teu corpo formas uma cruz, abraças e colhes, abraça e colhe, mas lembra-te, o que colhes não é aquilo que abraçaste. Abraças no plano do barro e colhes no plano da luz. Só assim poderás construir o cálice perfeito. Pois é assim que se amassa o barro com a luz.


folhas soltas

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