Um dia renasceu e tinha um irmão. Por causa desse irmão, esqueceu-se também de quem era. Cresceram juntos. Nas horas livres, corriam pelas praias atrás das gaivotas e dos caranguejos, deslizavam nas rochas cobertas de algas verdes e macias, coleccionavam conchas. Viviam na ponta mais ocidental da terra, para além da qual só havia mar. Uma terra ainda livre e intocada. O povo era rude e taciturno, a paisagem agreste, a comida escassa. À medida que crescia, recuperava os seus dons. Aprendeu a curar com mãos e plantas. Os campos tornaram-se férteis e a água doce brotou das rochas. As flores desabrochavam nos caminhos que pisava. Não havia lobo que comesse uma ovelha na sua presença. Quando atingiu os quinze anos, tal como a água brotara das rochas, também três rios prateados nasceram entre os seus cabelos negros. E foi então que chegaram os padres. Vinham vestidos de escuro, com capuzes e cruzes e rodeados de cavaleiros vestidos de ferro. Quando os viu pela primeira vez, mil pássaros enlouqueceram dentro dela e a sua energia estilhaçou-se, como vidro quebrado.
- O que tens? Perguntou Idevor, a remexer na areia com um pau.
Viria limitou-se a abraçar os joelhos com as mãos e nada disse. O mar espraiava-se diante dos seus olhos, prateado, ondas brancas quebravam-se lá mais longe, o céu carregado a ameaçar temporal. Mas os olhos escuros do irmão fitavam apenas a areia revolta nervosamente pelo pau.
- Não queres ir à missa, no domingo? Mas o pai diz que tens de ir.
- Não percebo nada do que eles dizem., respondeu Viria finalmente. Falam em latim. Porque é que tu vais? Também não percebes nada.
Tentou abraçar o irmão, mas este levantou-se, subitamente, rejeitando os seus braços magros e atirando furiosamente o pau na direcção das ondas.
- Dizem que és bruxa!, atirou-lhe, a voz alterada. E afastou-se rapidamente, deixando-a completamente só. Como quase sempre estivera.
O traje de serapilheira feria-lhe a pele delicada. Os longos cabelos negros tinham sido primeiro cortados e depois arrancados com ódio, mas nem mesmo assim tinham desaparecido os três rios de prata que lhe tinham nascido um dia da alma, que mais pareciam agora três cordões de estrelas. Olhou para trás uma última vez, para o irmão.
- Idevor… a voz falhou-lhe, espantada, na garganta.
- Esse já não é o meu nome!, respondeu-lhe o irmão, a voz seca, os olhos negros a espreitarem por entre o capuz de monge. Os dois soldados, vestidos de ferro da cabeça aos pés, torceram-lhe os dois braços, arrastando-a tão violentamente que lhe deslocaram um dos braços. Mas ela não tirava os olhos do irmão. Pensou Viria também nunca foi o meu nome. Murmurou para si mesma, uma vez mais, o nome do irmão. Idevor. Mas nenhum som saiu da sua garganta. O irmão atirou o capuz para trás, fitando-a e, para seu grande espanto, fitava-a com um profundo amor, como se fosse o seu salvador. Um amor rasgado pela dor. Como estás errado, Idevor… meu Tômâ… nem com espadas, nem com palavras, nem com cruzes ou fogueiras… não adivinhaste ainda o único caminho para a Luz? Tu, que és Luz? E foi este o seu último pensamento, pois um dos guardas deu-lhe um pontapé tão forte na cabeça, que desmaiou. O que sofreu de seguida distorceu-lhe a alma, que só despertaria de novo passados mais de mil anos.