Amanhã vejo-te de novo. Se não for amanhã, em breve. Se não for em breve, um dia qualquer. Haverá mais um dia, pelo menos. Assim espero. Procuro-te. Em todos os carros, em todas as ruas, em todas as janelas, em todas as cidades por onde viajo. Procurei-te debaixo das pedras. Não. Não morreste. Não podes ter morrido. Mais uma vez. Só mais uma vez. Ausente, apenas. Ainda não procurei nos caixotes do lixo. Devia ter procurado nos caixotes do lixo. Olho para as árvores. Todas as folhas caem, e os frutos. Vê-se bem que não estás nas árvores. Tenho a noção vaga de que já passaram muitos dias e muitas noites. Não consigo dormir. Não te encontro. Os caixotes do lixo cheiram mal. Sei que não posso continuar à espera, nesta procura, nesta desorientação, preciso de dormir. Porque é que não estás aqui? Todos os carros, ruas, janelas, cidades, vazios. Debaixo das pedras, areia. Apenas um buraco negro à minha frente, um túnel estreito e circular. Entra nele. Não quero. Não quero entrar, mas não há outro caminho. Tenho medo das alturas, das pontes, das falésias carcomidas. Não há outro caminho. Entro. Sou levada por águas profundas e subterrâneas. Tento manter-me à tona de água. A raiva mantem-me acordada. Não quero morrer, não quero. Onde estás, grandessíssimo idiota? Esmurro a água com os punhos fechados, esmurro as paredes do túnel, duro como granito. O sangue mistura-se com a água. Cada vez que dou murros, afogo-me. Desisto de os dar. Concentro-me só em manter-me à superfície. Ao fundo do túnel não há luz. Mas as águas desaparecem e estou sentada na lama. Preciso de luz, preciso de dormir. A noite parece ser eterna. Sem sono. Levanta-te e anda. Estou cansada. Sinto a falta do sol. Reconheço que morreste. Não. Reconheço que nunca exististe. À minha frente surge agora o espaço e o tempo onde pareceste real. Há apenas ar contido dentro das delicadas paredes da minha imaginação, incham até ocuparem todo o espaço e tempo de uma alma, a minha, paredes essas que agora ruiram, silenciosamente, depois de lhes dar um pequeno corte com a unha do meu indicador direito. Ou terá sido o esquerdo? Não me recordo. Ruíram com uma simples unhada. O ar foi-se todo. Ouço um ruído estranho. Vem do meu peito. Fico quieta, a olhar para o que sobrou. Apesar do silêncio, apesar da quietude, parece que uma qualquer bomba passou por aqui. Nada está onde devia estar. Nada ficou inteiro. O túnel desapareceu. A destruição é total. Onde está a minha vida? Tantas cabeças de olhos abertos e ouvidos espetados a flutuar à minha volta. Onde estão os corpos? Onde estão as mãos, os abraços? Grito e não me ouvem. As cabeças estão zangadas comigo, não têm bocas, a certa altura deixo de as ver. Cansei-me de olhar para a destruição. Cansei-me de estar em pé. Primeiro o joelho esquerdo no chão, depois o direito. Tenho a certeza de que primeiro foi o esquerdo. Depois todo o peso do tronco apoiado sobre os pés cruzados, as mãos em forma de lua pousadas nas coxas, a cabeça pende um pouco para a frente e adormeço. Descanso. Não descanso, acho que me apago. Vêm os rios, outra vez. Deixo-os passar por mim, não me levam, os olhos fechados. Reabro-os quando a água se silencia. Esta é a tua nova casa. Esta? Por onde começar? Não vejo nada. Reconheço agora que não voltarei a ver-te. Reconheço que morreste. Reconheço que me enganei, nunca exististe. Não és. Amanhece. Está frio. À frente, o mar, a luz rosada nas minhas costas. Debaixo de mim, as pedras, grandes, pequenas. Doem-me os joelhos. Pego numa pedra pequena e macia, do tamanho da concha da minha mão esquerda. Ou será da direita? Não sei bem. Quero viver. Seguro a pedra com toda a força, é branca, aperto-a na mão. A brisa agita-me os cabelos, soltos, desalinhados, gotas de espuma aterram-me no rosto. O que sobrou das águas subterrâneas e dos rios nasce-me agora brevemente no olhar. O teu cadáver estava no caixote do lixo. Por entre as últimas gotas de água, amanhece outra vez, um sorriso rente ao mar. O pesadelo acabou. O mar existe.