as almas, os pássaros

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domingo, 19 de julho de 2009


After great pain, a formal feeling comes—
The Nerves sit ceremonious, like Tombs—
The stiff Heart questions was it He, that bore,
And Yesterday, or Centuries before?

The Feet, mechanical, go round—
Of Ground, or Air, or Ought—
A Wooden way
Regardless grown,
A Quartz contentment, like a stone—

This is the Hour of Lead—
Remembered, if outlived,
As Freezing persons, recollect the Snow—
First—Chill—then Stupor—then the letting go—


Tradução:

Após grande dor, surge um sentimento formal
As Têmperas sentam-se cerimoniais, como Túmulos
O rígido Coração questiona, foi Ele, que suportou,
E Ontem, ou Séculos atrás?

Os Pés, mecânicos, rodam
Da Terra, ou Ar, ou Dever
Num caminho Lenhoso
Descortesmente aberto,
Um contentamento de Quartzo, como uma pedra

Esta é a Hora do Chumbo
Memória, se prolongado,
Como pessoas que Gelam, recolhem a Neve
Primeiro—Arrepio—depois Torpor—depois o deixar ir—

sábado, 18 de julho de 2009


Porque há dias assim, em que me sinto cansada e arrasto a alma fendida pelo chão, com a fúria a gritar na outra mão, quando vejo o que fazem aos meus irmãos.


quinta-feira, 16 de julho de 2009


A desidratação torna-nos quebradiços. Podemos partir-nos em milhões de pedaços e nem dar por isso ou tal ser extremamente doloroso. Para lidar com a desidratação temos de a enfrentar como uma desconstrução e não aproveitar nenhum pedaço daquilo que se partiu. O cálice parte-se, sim. Mas era um cálice de terra, Inês. Barro. Era um cálice imperfeito. Temos de reconstruir-nos, agora, e sim, podes usar o barro, mas tens de o amassar com luz. Inês escutava Alaïs atentamente, o corpo trémulo e dorido, tinha frio e tinha medo, mas escutava-a. Sabia tudo o que tinha de largar e não era fácil. Já não tinha mais lágrimas, rios e mar estavam secos. A luz existe na escuridão, tal como a eternidade existe no tempo. Com o teu corpo formas uma cruz, abraças e colhes, abraça e colhe, mas lembra-te, o que colhes não é aquilo que abraçaste. Abraças no plano do barro e colhes no plano da luz. Só assim poderás construir o cálice perfeito. Pois é assim que se amassa o barro com a luz.


quarta-feira, 15 de julho de 2009


Outrora as palavras corriam líquidas, de uma ilha para outra, de oceano em oceano, no dorso dos golfinhos, luziam no orvalho matinal dos mastros, de alga em alga abraçadas, em canto espraiado de coral para coral, saíam do meu peito como cavalos marinhos, altivas, espuma prateada e branca, pérolas libertas nas penas húmidas das gaivotas em vôos picados, conchas abertas, búzios secretos, sal e plancton, seios em seixos, brilho nocturno fértil na superfície das águas, tinham um destino, as palavras, o teu peito fortificado.

O mar morreu de assalto e as palavras secaram, fossilizadas, jazem num leito de pedra à espera do dilúvio de uma memória que singelamente lhes degole a sede.

domingo, 12 de julho de 2009


Não há calor nem frio neste sítio onde me encontro,
nem luz nem escuridão. Apenas breves sombras
acinzentadas, como pálidos braços
de nevoeiro ondulantes, talvez serpentes adormecidas,
cujos dentes se tenham enterrado no sangue


outrora vermelho, agora igualmente cinzento,
espesso, enlameado.
Não há sentimento ou emoção,
apenas uma espécie de anestesia,
paralisia ou desaceleração, quase morte.
Não existe sequer peso ou leveza,
ou chão, ou caminho ou horizonte ou paisagem,
nem mesmo o tempo aqui sobreviveu.
Não existe vida. No entanto, existe algo.
Eu estou aqui e não estou morta.
Mas não há som, nem tacto, nem cheiro,
apenas a memória do sabor numa certa humidade
na boca e os restos de uma visão queimada.
Não estou adormecida. Não estou acordada.
Nada sinto. Estou mortalmente cansada.
Pedra vegetal. Dormente.


De repente fui despertada por guinchos horríveis. Só então me apercebi de que adormecera também. Os guinchos provêm da alma, que se contorce, perdendo gradualmente a forma, enquanto o punhal se crava no ser. As asas já não existem. Os guinchos são como os de uma criatura recém nascida, abandonada, esfomeada. Tento não ouvir. O tempo restabelece-se, toda a paisagem se desfaz, cores violentas invadem a minha sensibilidade. Tento ainda segurar o cabo do punhal, mas em vão, pois o cabo desfaz-me uma parte da mão. Enterra-se cada vez mais firmemente na alma, que se parece cada vez mais com um trapo sujo. O punhal desaparece e tudo fica silencioso. Em estado de choque, fito o que sobrou, na luz cinzenta. Fiapos negro-azulados de uma qualquer coisa. A coisa rasteja agora, em direcção ao corpo. Continua viva. Cobre todo o corpo, enquanto a mente enlouquece por um instante, e a coisa penetra nele, no corpo, pela pele, sem dor. À medida que o corpo cai, lentamente, na neve, a luz regressa. O tempo faz-se ouvir de novo. A mente adormece. Estamos no cimo de uma montanha gelada. Vejo o sol a rosar o horizonte. Não há caminho. As pálpebras erguem-se devagar. O olhar do corpo é triste. Vejo-o ficar azulado com o frio, braços, mãos, pernas, pés, nádegas enterrados na neve branca. A coisa está viva dentro dele. A mente desperta e começa a trabalhar. Mas é inútil. O corpo está nú, na neve gelada. Não há caminho. Preparo-me para partir. É então que ele surge, Raziel, sob a forma de esfinge ardente, do outro lado do cume, de ocidente. Desenhou uma estrada na encosta da montanha e traz um manto sobre o dorso. Com espanto, vejo o corpo erguer-se e precipitar-se na direcção do querubim e aninhar-se sob as suas patas dianteiras. Raziel baixa a enorme cabeça e o manto escorrega-lhe do pescoço para cima do corpo. Sussurra um nome, que não consegui escutar. O corpo adormece de novo, enrolado no manto. Raziel parte. Durante sete dias e sete noites, o corpo não se move, mas respira, e ouço a mente a trabalhar. No amanhecer do oitavo dia, o corpo ergue-se, enrolado no manto e vira-se para trás, o olhar gelado fixo em mim. Com voz rouca, murmura: Vens? Sem palavras, volto a fundir-me com o corpo e a mente e desço com eles a montanha, pela estrada calcinada que Raziel deixou aberta. Da alma, nem sinal.

sábado, 11 de julho de 2009


Senhor das Palavras, não te quero aqui.
As palavras que te roubei estão mortas.
Eu também.

Recebeu, no seu regaço, as palavras que não lhe eram destinadas. Por elas se apaixonou perdidamente, embalou-as, deu-lhes peito, beijou-as, acariciou-as, explorou-as, bebeu delas, fez amor com elas uma noite atrás da outra, como louca que era, como uma ladra, como uma perdida. As palavras definharam no seu colo, nunca se transmutaram, nunca cresceram, nem sequer falaram. Pertenciam a outra, uma qualquer, pouco lhe interessava, apenas a queria desviva, a essa outra, a bruxa dele.

Até que a realidade a trespassou de lança, como a um estafermo de barro fresco, ao ver as palavras secas a corromperem-se entre os dedos famintos. Pegou então no que restava delas, pedaço a pedaço, e devorou-as, mastigou-as raivosamente, rasgou-as com os dentes caninos, triturou-as com os molares, desfez o resto em papa com a acidez da saliva e tentou cuspi-las. As palavras, vingativas, invadiram-lhe as entranhas e penetraram-lhe no sangue. Agora, deliciadas, vampirizam-lhe o corpo e a vida, devagar, muito devagar, com o prazer deleitoso, profundo e egoísta das mortas-vivas.



sexta-feira, 10 de julho de 2009


Ezequiel 10:14


E cada um deles tinha quatro rostos:
o primeiro, era o rosto de um touro
e o segundo o rosto de um humano,
e o terceiro o rosto de um leão
e o quarto o rosto de uma águia.

Árvore da vida
irmã, guardo-te com a flama,
quatro nomes e quatro rostos, terra,
mar, fogo e vento.
Onde está o meu irmão?
Não há abraço
na mentira.
Sobra o fogo:
keruvim araiot.
Cálice de luz, sei
todos os nomes, encontrarei
o que te perdeu,
será teu,
na tua
mão.

A alma não acorda. Já tentei várias vezes arrancar-lhe o punhal que tem cravado entre as frágeis asas, mas em vão. O punhal é estranho. Parece cristal, mas não é sólido. Cada vez que tento puxá-lo, enterra-se mais e estende pelas costas da alma uma espécie de pequenos tentáculos de água, que seguram as asas de encontro às margens delicadas do ser etéreo. Retiro a mão e os tentáculos desaparecem. Não são realmente água. Já tentei senti-los. Estão muito quentes e emitem luz, como se fossem de matéria plasmática. O corpo e a mente já acordaram. Só me falta acordar a alma, mas sem tirar o punhal, não consigo. Pela primeira vez, não sei o que fazer. Preciso compreender como surgiu este punhal e de que material ou energia é feito. Sem a alma, não sei para onde vamos. Já descansámos o suficiente. Posso abandoná-los aos três e partir, mas sei que ainda não chegou o tempo. Estou agora aqui confinada a este espaço, onde existe apenas uma estranha mistura de penumbra e claridade. Senti-a sonhar, a noite passada. Invocou Raziel. Não faço ideia o que pretende do querubim. Não se devem invocar os querubins sem mais nem menos. Mas como a tonta, como de costume, não sabe o que está a fazer, resta-me esperar. O corpo recupera devagar, mas de forma segura. A mente, a mais cobarde de todas, ainda treme. Aqui o tempo foi silenciado, o que ainda me preocupa mais, pois sem a música do tempo não faço ideia se isto pode ter um fim. Isto, este intervalo forçado num buraco do tempo, com a alma a dormir, o punhal cristalino enterrado entre as asas. Não que esteja desconfortável. Só me sinto incomodada. A maior parte da luz que aqui existe vem do punhal. Não gostava que ele se apagasse. Mas sei que tenho de arranjar uma forma de o arrancar ou de o enterrar de vez dentro da alma. Só que não sei se ela poderá voar com o punhal enterrado lá dentro. É importante compreender primeiro as coisas antes de lhes tocar ou de as forçar a algo. E a única forma absoluta de compreensão é através do amor. Tento amar o punhal, mas não consigo. É demasiado estranho. Nunca vi tal coisa. Vou ter de aguardar. Sento-me e dou pequenos toques na alma. Nada. No sítio onde depositei os toques, surgiram pequenos jasmins brancos. Suspiro. Sinto pela primeira vez com dor a ausência da música. O silêncio dói. Mas isso já eu sabia.

terça-feira, 7 de julho de 2009


Amanhã vejo-te de novo. Se não for amanhã, em breve. Se não for em breve, um dia qualquer. Haverá mais um dia, pelo menos. Assim espero. Procuro-te. Em todos os carros, em todas as ruas, em todas as janelas, em todas as cidades por onde viajo. Procurei-te debaixo das pedras. Não. Não morreste. Não podes ter morrido. Mais uma vez. Só mais uma vez. Ausente, apenas. Ainda não procurei nos caixotes do lixo. Devia ter procurado nos caixotes do lixo. Olho para as árvores. Todas as folhas caem, e os frutos. Vê-se bem que não estás nas árvores. Tenho a noção vaga de que já passaram muitos dias e muitas noites. Não consigo dormir. Não te encontro. Os caixotes do lixo cheiram mal. Sei que não posso continuar à espera, nesta procura, nesta desorientação, preciso de dormir. Porque é que não estás aqui? Todos os carros, ruas, janelas, cidades, vazios. Debaixo das pedras, areia. Apenas um buraco negro à minha frente, um túnel estreito e circular. Entra nele. Não quero. Não quero entrar, mas não há outro caminho. Tenho medo das alturas, das pontes, das falésias carcomidas. Não há outro caminho. Entro. Sou levada por águas profundas e subterrâneas. Tento manter-me à tona de água. A raiva mantem-me acordada. Não quero morrer, não quero. Onde estás, grandessíssimo idiota? Esmurro a água com os punhos fechados, esmurro as paredes do túnel, duro como granito. O sangue mistura-se com a água. Cada vez que dou murros, afogo-me. Desisto de os dar. Concentro-me só em manter-me à superfície. Ao fundo do túnel não há luz. Mas as águas desaparecem e estou sentada na lama. Preciso de luz, preciso de dormir. A noite parece ser eterna. Sem sono. Levanta-te e anda. Estou cansada. Sinto a falta do sol. Reconheço que morreste. Não. Reconheço que nunca exististe. À minha frente surge agora o espaço e o tempo onde pareceste real. Há apenas ar contido dentro das delicadas paredes da minha imaginação, incham até ocuparem todo o espaço e tempo de uma alma, a minha, paredes essas que agora ruiram, silenciosamente, depois de lhes dar um pequeno corte com a unha do meu indicador direito. Ou terá sido o esquerdo? Não me recordo. Ruíram com uma simples unhada. O ar foi-se todo. Ouço um ruído estranho. Vem do meu peito. Fico quieta, a olhar para o que sobrou. Apesar do silêncio, apesar da quietude, parece que uma qualquer bomba passou por aqui. Nada está onde devia estar. Nada ficou inteiro. O túnel desapareceu. A destruição é total. Onde está a minha vida? Tantas cabeças de olhos abertos e ouvidos espetados a flutuar à minha volta. Onde estão os corpos? Onde estão as mãos, os abraços? Grito e não me ouvem. As cabeças estão zangadas comigo, não têm bocas, a certa altura deixo de as ver. Cansei-me de olhar para a destruição. Cansei-me de estar em pé. Primeiro o joelho esquerdo no chão, depois o direito. Tenho a certeza de que primeiro foi o esquerdo. Depois todo o peso do tronco apoiado sobre os pés cruzados, as mãos em forma de lua pousadas nas coxas, a cabeça pende um pouco para a frente e adormeço. Descanso. Não descanso, acho que me apago. Vêm os rios, outra vez. Deixo-os passar por mim, não me levam, os olhos fechados. Reabro-os quando a água se silencia. Esta é a tua nova casa. Esta? Por onde começar? Não vejo nada. Reconheço agora que não voltarei a ver-te. Reconheço que morreste. Reconheço que me enganei, nunca exististe. Não és. Amanhece. Está frio. À frente, o mar, a luz rosada nas minhas costas. Debaixo de mim, as pedras, grandes, pequenas. Doem-me os joelhos. Pego numa pedra pequena e macia, do tamanho da concha da minha mão esquerda. Ou será da direita? Não sei bem. Quero viver. Seguro a pedra com toda a força, é branca, aperto-a na mão. A brisa agita-me os cabelos, soltos, desalinhados, gotas de espuma aterram-me no rosto. O que sobrou das águas subterrâneas e dos rios nasce-me agora brevemente no olhar. O teu cadáver estava no caixote do lixo. Por entre as últimas gotas de água, amanhece outra vez, um sorriso rente ao mar. O pesadelo acabou. O mar existe.


Todas as madrugadas se afundam no vórtice de uma noite sem fim. Madrugadas, como flores de lótus azuis, impedidas de emergir pelo peso cruel de pesadelos alheios, incolores, que escorrem em sangue espesso dos teus cortes para as minhas feridas, raízes de metal irracionais, fractais de guilhotinas microscópicas cortando o ser. As mãos procuram desesperadamente sarar o que não tem cura. As guilhotinas que rasgam os dedos não perdoam, as palmas, folhas de nenúfares embriagadas, desflutuam no lodo desidratado, quase fóssil.

Ancorada a uma espera de refracção impossível, luz devorada pela própria sombra, pulsão de irreversibilidade, inexisto. Até que a única imperfeição da flor, rebelde e gelada, me liberte, sem som algum ou compaixão.


No man is an island, entire of itself;
every man is a piece of the continent, a part of the main.
If a clod be washed away by the sea,
Europe is the less, as well as if a promontory were,
as well as if a manor of thy friend's or of thine own were.
Any man's death diminishes me, because I am involved in mankind;
and therefore never send to know for whom the bell tolls; it tolls for thee...

John Donne, Meditation 17, Devotions upon Emergent Occasions


Quando não tenho que lidar com os teus temporais, tudo no meu universo fica mais tranquilo. A minha dança apazigua a tua eterna deslealdade. Mãos como raízes, braços como ramos, pés como frutos. A dança é fluida. Véus de vento, água e luz cobrem a terra. Pequenas línguas de fogo despertam no núcleo; a sua extrema intensidade transforma os metais e regula os pólos; a sua delicadeza poupa as árvores.

Talvez um dia consiga despertar-te desse sono profundo. Melhor ainda... talvez um dia despertes por ti e por aqueles que precisam de ti. E esqueças as meras questões mundanas que nos separam.

As aves marinhas voam à altura do meu olhar, agora sereno. Como cenário de fundo, uma cidade ao crepúsculo, uma foz, um rio, o mar cor de prata, os tons azuis, roxos e rosa do sol que desaparece na orla do planeta, que por vezes parece perdido... As luzes vão-se acendendo uma a uma, ofuscando as estrelas, e os sinos tocam. São dezoito horas e trinta e dois minutos. Porque tocarão os sinos? Talvez por mim, como tão bem escreveu John Donne. Não deixa de ser uma hora estranha para eles tocarem. Agora, que me sentei a escrever, enquanto anoitece. Tocam por mim, com certeza.

Hoje não sei qual de mim sou. Estou numa cidade estranha, mas ao mesmo tempo familiar, onde não há táxis. As aves continuam a voar à altura dos meus olhos, assim levam-me com elas, estou precisamente no sétimo piso, no plano exacto do vôo tranquilo do crepúsculo, antes que adormeça tudo o que é natural e ao dia pertence. É um óptimo plano para se estar. Mas continuo sem saber qual de mim sou e que partes de mim estão acordadas e quais dormem. Talvez seja por estar numa cidade estranha, talvez nada em mim durma ou nada em mim esteja acordado, se quando viajo estou sempre no plano do sonho, afinal no plano do vôo, afinal longe, até de mim.

Estou rodeada de mogno, seda, cabedal, aço, de tons castanhos, creme e côr de vinho maduro. Quente e confortável. Sólido. Não era necessário tanto para voar. Mas por vezes acontece. Talvez ainda não esteja pronta para voltar a andar de pés descalços. Ainda tenho as plantas dos pés queimadas. Talvez por isso os sinos toquem. Talvez pela morte de alguém. De alguém que sou. Pois sou todos os que já existiram e existem e virão a existir. Ou talvez apenas pelas plantas dos meus pés.


Tudo dorme. Escuto agora este silêncio que parece ter coberto todo o universo. Similar a um coração que pulsa, mas sem som. Não sinto nenhuma vibração. Os laços estão rompidos. Flutuam à minha volta como fitas de organza de um branco sujo, as pontas chamuscadas. Parecem agora tão frágeis. Isolei-me num oceano de tranquilidade. O oceano brilha e nele foi traçado um caminho de luar. As últimas memórias tombam sobre o silêncio, como folhas de inverno. Foi tudo em vão.

Vou reaprender a dança do leque no fim do silêncio. Serão os primeiros sons que escutarei. Durmo. Sei que durmo, aninhada no peito de alguém. Talvez no meu próprio. O leque aberto rasga, fechado é punhal. O leque é vermelho. Visualizo o leque a rasgar o ar, aberto. O leque torna-se o centro de gravidade do corpo. Estou dentro do leque, por isso o corpo dança à volta dele desenhando formas improváveis. O leque liga o céu e a terra. É um leque muito bonito. Sim, durmo. Sonho. O corpo à volta do leque, sem música, porque este silêncio nasceu da última lágrima. Vou ter de me habituar a escutá-lo, ao silêncio. Será o coração que pulsa sem som dentro da música do leque. Os movimentos do corpo são belos.

Vou para um nível de sono mais profundo. O oceano brilha e flutuo, adormecida, sobre os braços nele traçados do luar. Até as estrelas se silenciaram. Este é o silêncio do verdadeiro princípio. Ventre.

folhas soltas

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